烏賊 => 幫派
- Marcos Nicolini
- Jul 3, 2022
- 7 min read

O filósofo da ciência John Searle, em seu livro Mente, Cérebro e Ciências no capítulo intitulado Podem os Computadores Pensar? (capítulo II, pg 38 a 55), enfrenta a questão sobre se a IA (Inteligência Artificial) pode chegar a desenvolver um robô (entendendo aqui não o dispositivo mecânico, mas o cérebro artificial, o dispositivo lógico, o conjunto dos algoritmos) é capaz de pensar.
Duas questões emergem daí: a primeira seria em se chegar a uma descrição aceitável sobre o que podemos entender o que seja pensar e a segunda questão toda gira em torno da relação mente-cérebro (software-hardware) e a questão correlata sobre semântica e sintaxe. Para os fins desta leitura, podemos dizer que pensar seria conferir significados. Pensar se aproximaria da semântica levando em conta estados mentais. Por não ser a questão central deste capítulo, não nos esforçaremos em detalhar o possível conceito articulado pelo autor. Ficaremos, assim, com a premissa que pensar passa por um trabalho semântico, conferir sentido.
haveremos aqui de salientar a orientação teórica do autor, ou seja, seu viés teórico. O autor parte da concepção monista-materialista de que a mente e o cérebro, embora estas instâncias não se confundam, fazem parte de em um mesmo organismo biológico, como fazem parte do organismo biológico a relação digestão-estômago. Mente e cérebro, são imanentes, isto é, não se reportam a instâncias não materiais.
Cabe marcar a diferença para o dualismo. Diferente é a crença dualista em que o cérebro é esta massa cinzenta que temos no interior de nossa caixa cefálica, enquanto a mente transcende o campo material, biológico, por assim dizer. O pensamento, para o dualista, é algo mental e não cerebral, o que exige que se explique como algo não material determine ações físicas. Dualista seria descartes para quem pensar é existir, enquanto o corpo é o espaço de ação do gênio maligno que procura nos enganar, nos iludir.
Uma vez chegado a este ponto de fusão (mente-cérebro a partir do viés monista-materialista) Searle procura diferenciar o humano da IA, ou melhor, apontar a impossibilidade da IA pensar. Traz, então, relevância a diferença entre sintaxe e semântica, visando demonstrar que o pensamento diz respeito não apenas à sintaxe, mas como exige uma semântica, não apenas às regras de utilização dos signos, como seus significados, seus sentidos.
A busca por diferenciação intransponível entre o computador e o humano o leva a propor a metáfora da caixa chinesa, por meio da qual entende demonstrar a diferença ente sintaxe e semântica, entre formalismo e pensamento.
A diferenciação entre semântica e sintaxe e a impossibilidade de pensamento para o Computador é feita a partir deste recurso à metáfora da caixa chinesa, chamemo-la assim. Imagine uma caixa que contém dois orifícios, um para entrada de dados e outra para saída de informações; no interior da caixa um humano com um livro de regras escrita em uma língua que possa entender (no caso de Searle, em inglês, mas pensemos que seja em português), que lhe diz como proceder quando receber pelo orifício de entrada um certo signo escrito em um língua que ele não compreende em absoluto (no caso de Searle em Chinês, mas em nosso caso poderia ser em...chinês). O humano no interior da caixa receberia um papel com um símbolo chinês, lê no manual o que deve fazer ao receber tal símbolo específico e lança pelo orifício de saída a resposta que o manual lhe diz que deva dar, utilizando um estoque de símbolos em chinês que ali dentro fora depositado anteriormente. Resumindo: recebe um símbolo em chinês, verifica no manual qual símbolo deve colocar no orifício de saída e que corresponde ao símbolo recebido e coloca no orifício exatamente o símbolo exigido. Diz Searle: ao realizar entre procedimento este indivíduo humano não pensou, pois apenas obedeceu ordens sintáticas, ao cumprir tal procedimento não saiba o que fazia o que continha o dado imputado e não sabia o que significava a informação posta no orifício de saída, isto é, não domina a semântica. De maneira similar devemos dizer que é assim que opera um computador.
Já que não sou um robô e a mim foi dada a possibilidade de pensar, penso eu, veio-me o seguinte pensamento quando estava na página 47 (de minha segunda leitura do livro), e que replicarei sem mediações ou correções. Segue meu pensamento, e que anotei no livro ao lado do texto da página 47, sem correções: “mas este argumento se refere a uma antropologia que toma o humano como ícone de valores. Mas se tomarmos os valores de utilidade, de eficiência e de pragmatismo o que importa é: ao se colocar uma certa questão, o que importa é quem oferecerá respostas mais coerentes, de maneira mais eficiente e com menor custo.” (eu estava acrescentado: “qualidade, eficiência e custo”).
Como esta é uma frase que reflete um susto, uma Gestalt, a qual decidi marcar como um gesto de surgimento, preciso elucidar o que me veio ao pensamento em concomitância a estas marcações gráficas, uma vez que parece fugir do manual do proprietário, a saber, de Searle.
O que eu estava pensando era que Searle parte da proposição que o “homem é a medida de todas as coisas”, o que implica que os dispositivos técnicos devem responder às questões humanas e não às questões de um outro modelo. Estaríamos em um mundo hierarquizado e que em seu ápice reina soberanamente (unicidade e identidade) o humano, subordinando todos os demais entes, naturais e técnicos, a este humano. O modelo humano, isto é, o modelo que os humanos adotam para si e pretendem reproduzir passa pela produção de significados, portanto, por uma semântica humana.
Segundo a minha leitura, para Searle a técnica estaria subordinada a cultura, a sintaxe, a modelação estaria sob a égide da semântica, o modelo. O humano é o produtor de técnicas, mas tais técnicas se subordinam à cultura. Vejamos, o sentido e significados são dados de início e são produzidos e reproduzidos no fazer técnico. As técnicas são os meios pelos quais os sentidos e significados se realizam. Mas estes sentidos o são não como um fazer técnico, mas como sentidos humanos, culturais. O que me pergunto é se o próprio sentido não é dado pelo monismo, isto é, imposto pelo fazer técnico.
Se o sentido é técnico, não são valores culturais até então vigentes que se impõem, mas os novos valores do fazer, das técnicas. O que quero dizer é que a semântica das técnicas não é a semântica humanista, mas os da eficiência, da qualidade, da produtividade, dos custos, etc. Se a semântica das técnicas é fundada nestes valores agora expostos, então o pensar há se ser revisto. Pensar não é o que ocorre numa mente que busca significa, sentido humanista, mas nos sentidos requeridos pelas tecnologias.
O que precisamos perceber que o que está em andamento não é o da equiparação da máquina ao humano, como defenderiam os apologistas da superinteligência e da singularidade na IA, tendo em vista que o modelo que viria a ser perseguido é do humano do humanismo. O que se está perseguindo é uma mudança paradigmática, no sentido de revolução epistêmica e antropológica. Persegue-se a suplantação do modelo antropológico em vista de um modelo técnico, ou tecnológico.
Antecipando o que haveremos de defender, o que se tem como modelo é um tipo de ente (biológico, técnico, sincrético: androide, robótico, etc.) cuja utilidade, sentido, está em sua resposta eficiente, produtiva e qualitativa (qualidade no sentido de não desviar do modelo técnico, que funcione como a técnica requer).
Esta questão do modelo e da modelagem nos parece ser significativa. Imaginemos que nossa premissa, nosso viés ideológico (vamos chamar assim), nos impõe como modelo a Natureza. Poderíamos ter outros modelos heterônomos, mas escolhamos este. A Natureza é o modelo de existência. Passamos a perseguir a Natureza para entender como esta se comporta, assim, descrevemos seu “Modo de Ser”. Uma vez apreendido o Modelo (no caso a Natureza), passamos a modelar, ou, a produzir um Modelo de ser a partir da compreensão do Modelo. Temos o Modelo diante de nós, aquilo que se nos apresenta como excelência, como ápice e uma vez compreendido e apreendido, passamos a Modelar, a produzir modelos, a produzir formulários, algoritmos, representações, heurísticas destes modelos. Reduzimos o modelo ao modelo.
Por exemplo, estamos diante de um corpo pesado que largado a uma altura qualquer cai de maneira cada vez mais rápida, este é o Modelo. A partir da Teoria da Gravitação (modelo 1) e da cinemática (modelo 2), podemos dizer quanto tempo o corpo transpassará uma distância qualquer e qual a velocidade com que chegará ao fim deste percurso. Então, mediremos as ocorrências para verificarmos se de fato isto ocorrerá: se o Modelo corresponde ao modelo.
Outro exemplo podemos tomar da história como Modelo, a história como o advento de eventos e ocorrências. Em dado momento passamos a conferir à história uma razão e a procurar nela sentido para tais eventos e ocorrência, como isto modelamos a história e a impomos como Modelo. A história já não mais será a sucessão de eventos e ocorrências, mas a expectativa de ocorrências com o sentido e significado dados pela modelagem. Tudo que escapa a este sentido modelado não é história.
Assim também parece se dar com a IA. A psicologia, as ciências sociais, as neurociências, a economia, etc., estudam o comportamento não apenas do humano como também o funcionamento do cérebro, tomando-os como Modelos. Uma vez compreendido e apreendido os modelos, passa-se a modelar a IA e o comportamento humano para que correspondam não mais ao Modelo, mas modelem o modelo. Neste sentido é que podemos supor a passagem de uma semântica humanista para uma semântica tecnológica, modelar e o concomitante movimento de abandono de valores humanistas tornados obsoletos, por valores tecnológicos, novos e produtivos.
Os novos dispositivos, biológicos, híbridos e robóticos, serão úteis se pensarem conforme o Modelo determinado pela nova antropologia. Se assim for, pensar tem menos a ver com humano e humanismo e mais com o sentido que se impõe aos dispositivos. Não é a teologia, a poesia, as artes que nos permitem o pensamento, mas o Modelo que perseguimos para modelarmos os dispositivos.
Em dado momento da história era Deus quem era a medida de todas as coisas, contudo a Deus se requereu sua morte e o filho pródigo passou a buscar em si os novos valores. Mais afrente o homem foi tido como medida de todas as coisas, mas suas criações exigem dele que se aposente, antes de sua morte finalmente. Hoje as vozes saudosas ouvem o réquiem ao senhor morto e reclamam sua sobrevida, enquanto novas revoluções sepultam o corpo em decomposição. O sentido da existência não á mais o dado pela cultura, mas pelas técnicas: eficiência, produtividade, qualidade, redução de custo, flexibilidade de produção, etc. Cabe cantar um fado ao som se um software musical.
Talvez o filho ainda se lembre e num suspiro eleve uma oração que diga: na casa de meu Pai...



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