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Da narrativa da proteção à Democracia ao combate ao inimigo de Estado

  • Marcos Nicolini
  • Jun 12
  • 18 min read

Após o fim da II Guerra Mundial a Alemanha foi dividida em dois Estados, assim como se instaurava no mundo uma divisão político-econômica de duas ideologias que se queriam antagônicas. Havia de um lado os países que adotavam o Totalitarismo de linhagem marxista, com a supressão das liberdades individuais e povos aterrorizados por grupos

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militarizados e economias planejadas centralmente, com a liberdade de voto contida por duas possibilidades: ou a favor do governo ou na opção anterior. Por outro lado, havia uma ideologia que levantava a bandeira da democracia liberal (multipartidária), economia de mercado (com planejamento central reduzido ou moderado), instituições republicanas e de Estado de Direito.

 

Nos Estados Totalitários, com ideologia marxista, o terror era estabelecido por controle de condutas que penetravam a intimidade dos indivíduos. Isto é, para aqueles governos o “mito” do indivíduo era um obscurantismo contrário à normalidade legal, perseguido por uma política secreta que contava com a participação de parentes e amigos. Uma rede de informações que contava com o fluxo de delações oriundas das relações sociais. Os afetos humanos eram eclipsados por desconfianças e terror, cuja efetividade contava com instituições de terror baseados em leis terroristas, um judiciário terrorista e uma política secreta que implementava o terror. Na Alemanha Oriental a polícia de repressão respondia por uma sigla peculiar: Stasi.

 

Lembramos que Stasis é a palavra grega que significa sedição, ações internas em uma Polis (Cidade-Estado grega) que têm como intenção desestabilizá-la, arruiná-la. A Stasi alemã foi (como diríamos em matemática: elevando os efeitos à enésima potência) a correlata do nosso SNI e os agentes de repressão brasileiros. Por aqui estima-se algo em torno de 434 mortos e desaparecidos no período do Ditadura/Regime Militar, por lá haveremos de multiplicar este número por 100, pelo menos, até a queda do muro infame. A esta aberração se soma o fato de que possivelmente não houve Comissão da Verdade na Alemanha, ou na Rússia, China, etc. Estima-se que as mortes pelos regimes Totalitários do Leste Europeu, Ásia, África e Caribe se contam em dezenas de milhões de pessoas, mais do que realizado pelos regimes Totalitários de influência hegeliana para a direita fascista e nazista na primeira metade do século XX. Há quem diga que Hegel seja um dos Pais de todos os regimes Totalitários à direita e à esquerda que afloraram no século XX.

 

A Alemanha Totalitária se apressou a adotar como nome, “República Democrática da Alemanha”. Tendo em vista o regime de terror que foi implantado em solo alemão decorrente da ideologia de Marx e seus discípulos, ao que se soma o terror nazista (quando entendemos que Hegel seja o Pai destes dois irmãos, podemos compreender a passagem do nazismo ao comunismo com maior facilidade), sempre tive a dúvida da razão que levou a Alemanha Oriental a adotar tal nome, isto é chamar-se Democracia. Esta dúvida tinha como premissa a contraparte da Democracia Liberal.

 

Pude começar a entender isto quando me deparei com Norberto Bobbio. Este filósofo-politólogo italiano me fez perceber que a palavra democracia não tem um significado dado como plenamente estabelecido, digamos, pela semântica de liberais como John Locke e Montesquieu, entre tantos. Bobbio adota, em certos momentos, uma tradução específica da palavra grega, a qual nos leva a entender a palavra “demos” como denotando a parcela mais desprovida de recursos econômicos de uma sociedade. A palavra “demos” para os liberais é traduzida como a totalidade da população de uma sociedade, ou, o povo. Os liberais entendem que o “povo” (demos) não é um todo homogêneo, mas fragmentado, e esta fragmentação requer um regime político que permita que as demandas de cada parte do povo sejam expressas por meio da liberdade de expressão e/ou de formas de participação política, por exemplo os partidos e o voto popular em um ambiente política multipartidário.

 

Os Totalitários tomam a palavra povo de outro modo. Certos herdeiros do hegelianismo de direita adotam como povo os que compartilhariam ceras características corporais: a materialidade genética, a raça, os traços físicos imprimidos em seus corpos. Com isso podemos perceber a emergência na Alemanha, no início do século XX, dos nazistas e a propaganda sobre a raça alemã, ou ariana. Certos herdeiros do hegelianismo de esquerda adotam como povo os que compartilham certas características econômicas: o desprovimento de propriedade privada, aqueles que apenas têm como seus a força de trabalho e a capacidade reprodutiva, gerar prole. Com isso surgem na URSS, na China, na Alemanha, etc. os regimes Totalitários de esquerda e o terror que os acompanha.

 

Acima pudemos exemplificar o uso da palavra “demos” a partir de três traduções distintas: a liberal, a nazista e a comunista. Parte da compreensão desta pluralidade semântica aplicada a tal palavra nos é possibilitada pelos pensadores que dizem ter feito o que chamam de “virada linguística”, ou seja, perceber a produção de mundo não por idealidade, ou racionalidade, mas por meio da linguagem e suas interpretações, em outros termos, pelas narrativas. O próprio Marx antecipou-se a este giro e propôs “produzir mundo”, a seu modo. Do mundo não mais se obtém um conhecimento fundamental, mas haveremos de produzir interpretações a fim de produzi-lo. A política se tornou Política da Linguagem e a linguagem posta como o locus da política. Tanto George Orwell quanto Antonio Gramsci entenderam isto muito cedo. Também Nietzsche e Wittgeinstein, os quais influenciaram pensadores como Heiddeger, Derrida, Richard Rorty, etc.

 

A democracia é produzida a partir da adoção de uma semântica política. Então, pela porta aberta por Bobbio e tendo contato com o pessoal do “giro linguístico”, pude me aproximar do entendimento sobre o porquê a Alemanha Totalitária se autoproclamou “Democrática”, simplesmente porque diziam ser o regime daqueles que apenas contavam com sua força de trabalho e capacidade de reproduzir a prole. No entanto, nos regimes Totalitário o que temos é um regime Demos-Acrático, posto que o poder é sequestrado por uma elite suportada pelo terror.

 

Ainda não entendia como um regime que se dizia “Democrático” podia reprimir o próprio povo. Teria que haver algo no interior deste povo, deste “demos”, algo que exigiria a ação mais do que profilática, imunizadora e de saúde política, que impedisse e extirpasse esta doença interna chamada de sedição, ou Stasis. Isto é, a doença do questionamento da ideologia do Estado. A probabilidade e potencialidade da sedição, antes que se tornasse ato, fato. Precisava de uma Stasi que extirpasse a Stasis, antes mesmo que ela viesse a se realizar.

 

Se o povo é este ser indiviso, esta homogeneidade orgânica, então, não estaríamos falando de vírus ou bactérias (agentes externos), mas de câncer (agente interno), ou um feto indesejado resultante de estupro. Estaríamos falando de um corpo no qual parte dele seria de tal modo malformado que levaria todo o corpo ao perigo de vida. Algo do corpo que se duplicaria de tal maneira que poderia levar o corpo político à morte. Assim, por meio de uma narrativa justificasse uma ação profilática, antecipadora do fato social.

 

Estaríamos falando, então, de um organismo controlado por um órgão central, uma inteligência organizativa, que produzisse especialistas em combater, eliminar às partes cancerígenas que pudessem vir a pôr em risco a integridade do corpo em suas partes colaborativas. Produzir comunidade por meio de dispositivos de imunização. Por um lado, temos o corpo ordenado por um órgão inteligente e central que conta com partes que contribuem para o bem e sentido comum, de outro, as células cancerígenas, exigindo anticorpos, ou células especialistas em reconhecer e eliminar o câncer, antes mesmo que a célula se transmutasse e se multiplicasse. O que se quer é um corpo de partes especializadas que realizem atividades visando o bem do Todo, que se submetam às normas impostas pelo organismo central, sem questão.

 

Encontramo-nos diante de uma sociedade que de um lado temos o cérebro central e seu sistema nervoso que produz ordenamento e os transmite à totalidade, composto por órgãos especialistas que realizam suas tarefas de modo obediente e eficiente visando o bem do organismo e caminhando por entre células e obedecendo diretrizes centrais, células de localização e extermínio dos inimigos do corpo. Do outro lado, células autorreplicantes, cancerígenas, que colocam em risco a integridade e manutenção do corpo. Células que se querem livres do ordenamento central e agem a despeito do Todo.

 

Este modelo não é novo. Podemos ler isto na República de Platão, assim como os sociobiologistas o veem nos formigueiros, entre os cupins e em outros ordenamentos deste tipo. Este modelo político nos permite ver que o Estado é composto por um povo cuja homogeneidade não é dada por suas atividades especialistas, mas pela totalidade de sua Vontade. A vontade de Todos, ou a Vontade Geral de servir ao Corpo e para o bem do Corpo, prescindindo do indivíduo em sua propriedade. Mais do que isto, eliminando a liberdade do indivíduo, este mito perigoso. O Demos entendido como a expressão da Vontade Geral e o Kratos como a ação que conserva esta Vontade do Cérebro como se fosse Geral. Estes grupos ou indivíduos, as células cancerígenas, que colocam em risco o Corpo devem ser eliminados a fim de garantir a homogeneidade da Vontade Geral. No século XX estas células cancerígenas foram identificadas como sub-raças (no caso da Alemanha nazista), ou como, em meio às sociedades totalitárias marxista, a burguesia; ou entre os pseudo-liberais, com as ideologias de esquerda marxista (como exemplos podemos citar o Macartismo nos EUA ou os regimes de direita militarizada no Brasil, Argentina, Chile, etc.).

 

As diversas maneiras de se interpretar a Democracia conferia alguma legitimidade ao poder para realizar a repressão e o extermínio de seus inimigos internos. E quando estamos falando de extermínio nos referimos às câmaras de extermínio, aos Gulags e à Revolução Cultural, aos porões da Ditadura, por exemplo. Mas, precisamos ainda entender como os Filósofos-Rei e suas Stasis (aqui faço menção à República de Platão e abro caminho para uma possibilidade de entendimento deste fenômeno) lograram êxito ao dar sentido à necropolítica: a política como política de morte aos diferentes, aos indivíduos que ousam questionar os que querem conservar o poder utilizando o terror. Não é sem tempo lembrar que na República de Platão os malformados deviam ser eliminados, serem mortos, de acordo com o texto. Como, em nome da liberdade democrática (que obviamente é repudiada por Platão, por Hegel e seus filhotes), se implantou regimes de repressão e eliminação de células cancerígenas?

 

Se Platão nos permite antever a arquitetônica do poder necropolítico, é, contudo, a religião que radica o argumento de legitimação da eliminação do outro, do estrangeiro, do diferente que estando entre nós, nos causa danos. Devemos buscar no maniqueísmo as bases teo-filosoficas para abordar este tema. A religião maniqueísta, no Ocidente, foi abandonada, extirpada desde o século IV-V com Santo Agostinho, acusada de heresia, e retornou no século XI-XII com o início da falência do cristianismo como poder político no Ocidente, digo, do clero em função real.

 

Em linhas gerais podemos dizer que o Maniqueísmo é uma religião que entende que há duas forças cósmicas digladiando, o Bem e o Mal. Embora esta religião seja mais complexa do que apenas dizer que há uma luta cósmica entre o Bem e o Mal e uma esperança escatológica da vitória do Bem sobre o Mal (a utopia maniqueísta), deixemos de lado estas questões e atentemos para outro elemento interessante. Os maniqueus, assim como os gnósticos (e até mesmo os cristãos medievais, de certo modo), acreditavam que os humanos poderiam ser segregados em três grupos: os iluminados (que conheciam, portanto, sabiam sobre a verdade), os simpatizantes (os que não haviam experimentado sair da caverna, mas davam crédito aos iluminados) e os que operavam para as trevas (os pagãos e os hereges). Por exemplo, foi preciso que a Igreja Católica ressuscitasse o maniqueísmo a fim de legitimar a Inquisição e a caça as bruxas (se dermos crédito aos trabalhos de Georges Minois, Georges Duby e Jean Delumeau).

 

Esta crença religiosa de viés gnóstico e maniqueísta não se dissipou com a Modernidade. Antes, foi apenas secularizada. A figura do livro de Hobbes, o Leviatã, com o Poder Soberano segurando com uma das mãos o cetro (poder legitimador, o herdeiro da teocracia) e em outra a espada (o poder efetivo, o poder real) já prefigura a unidade do poder sob a alcunha de Commonwelth (que nada mais é do que a secularização da teologia-política que apregoava o poder Cesaropapista) e a sujeição das liberdades individuais em troca de vida e liberdade no curral (aqui me reporto à leitura do filósofo alemão Peter Sloterdjik, O Parque Humano, no qual toma o texto de Platão, As Leis, quando diz que a função do Monarca é tratar o povo como gado em um curral: livre para comer grama em qualquer lugar desde que seja no interior do pasto cercado).

 

Afora os liberais, já citados anteriormente, que aceitavam a tolerância como valor e a diversidade com fundamento da política, pensadores como (aqui vamos adotar a lista de Isaiah Berlin em seu texto: La traición de la libertad – Seis enemigos de la libertad humana, Fondo de Cultura Económica, México, 2004) Helvétius, Rousseau, Ficht, Hegel, Saint-Simon e Maistre e a estes se acrescenta Kant (a partir da leitura de Georg Simmel em Questões fundamentais da sociologia), adotam em parte ou ao todo as hierarquias sociais de Platão, das formigas e as ideias de Sloterdjik.

 

Mais do que apenas entender que as sociedades são compostas por Iluminados (e seus tiraneses, lembrando de La Boetie e a Servidão Voluntária), por simpatizantes e por sub-humanos, representantes do mal no interior do Estado, devemos nos aproximar do conceito de liberdade advogado por estes inimigos da liberdade citados acima. Creio que Berlin me autorizaria a dizer que para tais a liberdade é a negação de si e a adoção de uma liberdade transcendente, isto é, apreendida apenas pela Razão: sou livre quando digo não a mim e sim à Razão, ou seja, “conhecereis a Verdade dada pela Razão e esta Verdade vos libertará”. Não apenas Berlin nos abre a possibilidade, como também Simmel, de perceber que a autonomia humana para tais inimigos da liberdade é a heteronomia, pois tais transcendentais são revelados a nós, simples humanos ou inimigos da humanidade, por meio destes iluminados. O que nos permite responder à questão: “quem ensinará os mestres?” Resposta: os iluminados!

 

Uma figura que nos permite acessar a este sutil modelo de servidão podemos obter ao ler o Velho Testamento, uma vez que estamos falando sobre fé e religião. A escravidão para aqueles hebreus/judeus não perdurava a vida toda ou até quando o senhor do escravo lhe desse alforria. Antes, a escravidão era temporária, ao término do tempo estipulado o escravo recuperava sua liberdade. Havia, no entanto, a figura do escravo com a orelha cortada, que representava a escolha daquele indivíduo que decidia manter-se escravo daquele senhor por alguma razão. Aquele escravo havia se rendido à uma dada Razão, de que ser escravo por amor e sujeito a este senhor é melhor do que ser livre e assumir seus riscos. Esta é a base religiosa de legitimação secularizada utilizada pelos inimigos da liberdade.

 

Duas coisas precisamos ressaltar. A primeira é que a Razão que estamos falando é a Suficiente. Este mito iluminista propõe que o que existe é ordenado com uma determinada razão, de uma forma racional e que o intelecto humano tem em si as condições necessárias e suficientes para acessar a esta racionalidade. A Razão Suficiente no existente é encontrada pela Razão Suficiente no humano e neste encontro o humano abandona o obscurantismo, o fanatismo, a mentira e corta sua orelha.

 

A segunda é que há os Iluminados que agem conforme a Razão, há os que se deixam conduzir por estes grandes homens e há os irracionais, os monstros, a espécie de sub-humanidade. Devemos sempre lembrar de Aristóteles quando diz em sua Política: “apenas os deuses e as bestas não estão sujeitos às leis.” As leis para os iluminados são as dadas pela Razão Suficiente, já os bárbaros dizem que tal Razão Suficiente não passa de Vontade de Poder. Como ousam prever a ruína de Roma?

 

Retornando ao tema da Razão Suficiente e tomando o texto de Terry Eagleton, A morte de Deus na Cultura, podemos dizer que ainda dar crédito a este fundamento para o conhecimento verdadeiro é assunto para quem gosta de arqueologia das ideias, remexer as areias dos desertos da história do pensamento filosófico a fim de investigar como eram as crenças de sociedades mortas. O século XX varreu esta crença progressista e otimista da humanidade (apenas países que andam para traz, como o Brasil, crenças progressistas ainda são vendidas por neo-sofistas). A Razão Suficiente como instrumento para o conhecimento verdadeiro e a “liberdade” humana hoje jaz no cemitério de Nietzsche, quando grita: Deus morreu! Os professores universitários ainda oferecem cursos baseados nesta falácia apenas para garantir empregos e iludir jovens sem destino, artimanhas estas que aprenderam, também eles, nos livros de política: melhor iludir do que reprimir, isto é, reprimir por ilusionismo.

 

O que nos resta não é o Progresso para a Verdade, mas as Narrativos pós-verdade que se tecem a partir de jogos de força. E estes jogos de força não se desenrolam no campo esportivo, mas nos campos de batalha. O que restou com a morte do Deus-Razão é o maniqueísmo político herdeiro de Maquiavel e Nietzsche. A crença, que se mostrou um chiste, de que Deus-Sive-Natura, isto é, que o existente mais do que se entrega ao conhecimento, como conduz a pedagogia da gnose, foi varrida pela Vontade de Potência. Spencer derrotou Kant e a Paz dos cemitérios está plena de lápides escritas: aqui jaz um fraco.

 

A política se fez guerra narrativa e o Bem é a moral do mais forte, do legislador. O forte diz: “a democracia é o eco de minhas narrativas.” A democracia, este significante vazio e disponível a ser preenchido por qualquer significado. A democracia é o exercício do poder do forte e a ação do forte como política. Se há algum conceito que ainda permanece para a política, este se resume na relação amigo-inimigo, conceito este proposto por um filhote de Hegel, o pensador Carl Schmitt. A religião maniqueísta se tornou política e o clero que conhece o Bem é formado pelos vencedores e o espaço de guerra é o Estado.

 

Não queremos nos alongar mais com estas questões, embora precisemos manter sempre presente os ensinamentos de Michel Foucault quando diz que a política é guerra por outros meios. Não apenas é guerra, como, lastreada pela relação amigo-inimigo, é guerra de extermínio. Quem é o inimigo da Democracia, do Estado de Direito, da República? A resposta a esta questão já foi sinalizada acima, quando falamos de Rousseau, de Kant, dos sacerdotes da Razão Suficiente.

 

Para tornarmos claro os instrumentos do Bem que são manipulados para o extermínio das bestas e dos monstros, retornemos ao ano de 2001. Neste ano dois aviões se chocaram com dois edifícios em New York, levando-os à ruína e morte de quase três mil pessoas. Para além dos aparatos tecnológicos, de pessoal de espionagem e informações, de controles e outros meios de combate ao terror, iniciou-se a produção de um aparato normativo e legal que desse conta da legitimação do combate aos inimigos do Estado.

 

Buscando entender um dispositivo do Direito Penal tal que fosse eficaz na abordagem aos inimigos de Estado, Günther Jakobs apresentou em um seminário o trabalho sob o título de “Direito Penal do Inimigo.” (Direito Penal do Inimigo: Noções e Críticas; Ed. Livraria do Advogado, 2007) Neste seminário apresenta a diferença entre um Direito Penal do cidadão e o Direito Penal do inimigo. Os dois polos do Direito Penal são diferenciados tendo em vista os acusados de crimes, o tipo de crime e o estatuto do incriminado.

 

Para entendermos a diferença entre o cidadão e o inimigo, segundo Jakobs, acompanhemo-lo no capítulo 2: Alguns esboços iusfilosóficos. Inicia fazendo referência a Rousseau, que em seu Contrato Social teria afirmado que “qualquer ‘malfeitor’ que ataque o ‘direito social’ deixa de ser ‘membro’ do Estado, posto que se encontra em guerra contra este [...] A consequência diz assim: ‘ao culpado se lhe faz morrer mais como inimigo que como cidadão’.” (pp.25-26) É o extermínio por morte que o genebrino advoga. Logo em seguida cita Fichte quando diz: “quem abandona o contrato cidadão em um ponto em que no contrato se contava com sua prudência, seja de modo voluntário ou por imprevisão, em sentido estrito perde todos os direitos como cidadão e como ser humano.” (p.26) Ou seja, já não mais é um humano, mas uma besta, uma praga, um câncer. Mais adiante, ainda citando Fichte diz que este filósofo afirma que “a execução do criminoso ‘não (é uma) pena, mas só instrumento de segurança’.” (p.26) Ou seja, o Estado faz o bem e a justiça quando mata seu inimigo, o que nos lembra as SS e a Stasi.

 

Günther Jakobs faz a ressalva da rigidez material da penalidade imposta por Rousseau e Fichte, que impede ao apenado a mudança de conduta a fim de “ajustar-se com a sociedade” (p.26) e “o dever de proceder à reparação [...]” (p.27). Em sequência cita Hobbes que tendo consciência deste duplo imperativo (ajuste e reparação) não teria o direito de “eliminar, per si, seu status” (p.27), isto é, a submissão do indivíduo ao Leviatã exclui o direito de que este indivíduo realize algo que altere, ele mesmo, sua condição de cidadão para morto, a não ser quando se aplica à traição contra o Estado, “pois a natureza deste crime está na rescisão da submissão, o que significa uma recaída no estado de natureza ... E aqueles que incorrem em tal delito não são castigados como súditos, mas como inimigos.” (p.27) Assim, retornando ao estado de natureza coloca-se sob o risco de morte pelo único agente que sempre está no limite entre estado de natureza e Commomwelth, a saber, o Poder Soberano, o Estado.

 

Jakobs tendo sinalizado o pensamento iusfilosófico de Rousseau, Fichte e Hobbes, passa a olhar para Kant, para quem “toda pessoa está autorizada a obrigar a qualquer outra pessoa a entrar em uma constituição cidadã.” (p.28) Interessante, penso eu, notar que nos Estados Totalitários é comum a rede de informantes que fazem transitar informações sobre os inimigos de Estado, delatando-os e os forçando ao arrependimento. Retornando a Kant e acompanhando Jakobs, percebemos que o filósofo de Königsberg se vale da arquitetônica hobbesiana e segrega a humanidade entre os que se submetem ao Estado e os que se mantém irredutíveis em estado de natureza, portanto, em sub-humanidade, uma vez que se negam a esta passagem à civilização. Tendo em vista tal discriminação, então, “consequentemente, quem não participa da vida em um ‘estado comunitário-legal’ deve retirar-se, o que significa que é expelido (ou impelido à custódia de segurança); em todo caso, não há que ser tratado como pessoa, mas pode ser ‘tratado’ como anota expressamente Kant, ‘como um inimigo’.” (pp.28-29) Jakobs termina este capítulo dizendo que “em Kant, quem permanentemente ameaça; trata-se do direito dos demais. O Direito penal do cidadão é o Direito de todos, o Direito penal do inimigo é daqueles que o constituem contra o inimigo: frente ao inimigo, é só coação física, até chegar à guerra [...] O Direito penal do cidadão mantém a vigência da norma, o Direito penal do inimigo (em sentido amplo: incluindo o Direito das medidas de segurança) combate perigos [...]”. (p.30)

 

Esta última frase de Günther Jakobs explicita a questão central, posto que o cidadão é penalizado por conta do que faz e do que não faz, isto é, por transgredir uma norma e chamar para si as penas da lei. No entanto, o inimigo não é o que transgride a lei, mas o que coloca em risco a sociedade. Em outros termos, não é o que faz, mas o que representa, sua potencialidade.

 

Neste momento nos fazemos subsidiar pelo texto de Juliana C. O. Buchas, Direito Penal do Inimigo – Controvérsias e sua Aplicabilidade, quando no artigo inicia-se com a especificação da diferença entre o direito penal do fato e do autor. Diferenciação esta que nos permitirá entender a herança no inimigo do conceito do autor. Diz Buchas: “No ordenamento jurídico pátrio adota-se como padrão para a imposição de pena ao delinquente o direito penal do fato e não o direito penal do autor. A culpabilidade sempre se refere a um determinado fato praticado, de modo a respeitar a autonomia da vontade do autor.” (p. 13) O que nos diz é que no Brasil, em especial, o ordenamento jurídico leva em conta a relação de algo que se faz, um ato e sua relação com o código, com a lei, isto é, “o direito penal do fato, como já diz a própria nomenclatura, consiste na aferição da necessidade da imposição de pena em razão do fato ou conduta praticada, no que se diferencia do direito penal do autor.” (p. 14)

 

No entanto, no “direito penal do autor, a aplicação da pena é feita de acordo com a personalidade do agente criminoso, pouco importando o fato delitivo por ele praticado.” (p. 14) Ao que segue dizendo que “na Escola Positiva, o autor é considerado um ser inferior e degenerado, e o delito fruto do ‘estado de periculosidade’ deste mesmo autor.” (p. 15) Desta maneira, o Direito Penal do autor “tem por principal finalidade detectar os autores sem que seja preciso esperar o acontecimento da conduta” (p. 15), o que implica que não são suas ações, ou os fatos que o tornam delinquente, mas é ele mesmo que é tipificado pela potencialidade de um crime. Por exemplo, não será julgado e condenado por praticar o crime de Golpe de Estado, mas por representar o perigo potencial que aquele indivíduo ou grupo possam insuflar um Golpe de Estado. O Direito Penal do Autor viola, segundo a autora citada, o artigo 5º II da Constituição.

 

A teoria do Direito Penal do Inimigo advém do Direito Penal do autor. O inimigo (que muito lembra a tese de Carl Schmitt sobre a política como a relação amigo-inimigo) é aquele que “representa uma grande ameaça ao Estado, pondo em constante risco a paz que é de interesse de todos.” (p. 19) Desta maneira, o inimigo é tomado como alguém que, deliberadamente, se fez excluir da cidadania, portanto, não mais vindo a ser tratado como pessoa, perdendo todos os seus direitos. O inimigo perde seu direito ao apelo à Lei e a ser julgado como cidadão, estando como que em estado de exceção particularizado. O inimigo é uma subespécie, uma monstruosidade para quem a previsão legal se dá fora do ordenamento jurídico e seu castigo não se baseia na lei, mas em seu perigo potencial ao Estado.

 

Para concluirmos este desenho da ação do Direito sobre o inimigo citamos: “[...] o inimigo não pode ser considerado um sujeito processual, de maneira que as garantias processuais da ampla defesa, do contraditório, de constituir advogado para apresentar defesa técnica não serão oportunizadas a ele. Contra o inimigo, não se destina um procedimento penal legal, mas sim um procedimento de guerra, posto que este não apresenta intenção de se integrar à sociedade, cumprindo os ditames pela lei.” (p. 21) O inimigo, reforce-se, não é o que realiza um fato, mas é aquele que sobre tal paira a acusação de colocar em risco o Estado, aquele que tem sobre si a acusação de estar fora da Lei, ainda que não tenha praticado nada que o comprove. O juízo sobre ele não é do fato, mas da potencialidade que representa.

 

Desta maneira um batom vermelho pode ser tomado como uma arma de derramamento de sangue e um papel rabiscado pode ser entendido como uma minuta que desenha ações para Estado de Sítio e ação revolucionária. A penalização não leva em conta os fatos e nem considera a lei, mas a Vontade do Estado, isto é, a Vontade de Potência, ou seja, a defesa do Status Quo. Mais ainda, a pena é agravada pela defesa do Estado Democrático de Direito. Direito este vilipendiado, caso se desse no Brasil.

 

Assim, podemos concluir que em face às liberdades semânticas que a pós-verdade nos oferece, a Democracia há de ser protegida por institutos pós-legais e inconstitucionais, segundo o entendimento jurídico daqueles que a entendem de uma dada maneira. O Direito e a Democracia são apenas signos que flutuam segundo os ventos soprados pelos maus hálitos daqueles que deveriam protegê-las de autores que já se tornaram legisladores. Assim, os inimigos da liberdade democrática, como diria Cazuza tomaram, por golpe, o poder e desenham o Estado de Direito pela caneta da guerra.

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