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Zoe e Bios: caos e ordem

  • Marcos Nicolini
  • Nov 15, 2021
  • 7 min read

Estou aqui mais uma vez, ou melhor, ainda em minha leitura de Jacques Ellul, The subvertion of christianity. Consegui avançar por mais algumas páginas e me encontro na 176. Ellul está diante do mal e eu diante das palavras dele. A partir das aparições do mau no Novo Testamento o autor diz que há seis expressões do mau e seus males, a saber: dinheiro, poder, decepção, acusação, divisão e destruição. Sua tese, com a qual tendo a concordar, é que os males (o bem é singular, mas os males são multifacetados, penso eu) não são seres,

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não há existência neles, mas se dão nas relações entre humanos e humanos e humanos e coisas. Em suas palavras: “eles certamente são poderes em lugares celestiais, mas existem apenas quando estão relacionados conosco.” Como diria Agostinho, o mal é carência. É nesta linha que Ellul vai trilhar e eu vou acompanhando.


Contudo, dirá que “são a expressão do caos, o vazio que Deus usou para a criação. Eles existem apenas como este caos. São a força da desordem. Nem todo caos foi absorvido na criação. A criação está constantemente sob ameaça”. É neste ponto exato que eu me separo dele. Não tenho qualquer problema em dizer que o Mal deve sua existência apenas e enquanto ruído nas relações dos humanos com outros humanos e com coisas, e que este Mal pode ser absoluto, radical quando o ruído é extremos e impossibilita o diálogo. Não preciso de Satanás e nem de demônios e diabos como entes existentes per si e que se colocam como opositores a Deus para dar sentido ao mundo que habito. Posso entender que o mal é o ruído, o desajuste, a perda de sentido, a minoridade do humano que desejando autonomia tenta assassinar Deus e ao tentar viver por sua conta e risco passa a rastejar sobre a terra e a viver uma relação maléfica com a alteridade. Certamente que a questão é muito mais complexa do que isso, mas isto já sinaliza o fato que não vejo problema em dizer: o Mau não é uma coisa, mas o mal que é produzido se faz ao imiscuir-se entre as coisas quando estas se dão em meus aos relacionamentos humanos.


O meu problema está em que ele diga que o caos é o mau, o caos é mal.


Entendo que o caos é o originário, o que é novidade, o novo e o moderno. Toda criação, toda criatividade é caótica, ela transgride a norma, a normalidade, a normatividade, o habitual, o costumeiro, o que se conserva, o que se mantém. Assim, a criação é originária, é proposição sobre o novo, é renovação, é metanóia, é ressurreição, é mudança de sentido e significado, é descontinuidade, é quebra de paradigmas, é anti-tragédia. A criação é dizer ao que não existe exista, sem que esta existência esteja contida no previamente existente. O caos é uma suposta desordem que desfaz a ordem existente em vista ao que pode vir a ser uma outra ordem. Caos é abandonar uma ordem aceite como tal, deixar para traz as tradições e ir a um lugar que você não tem a mínima ideia de onde é e como é, tal qual fez Abrão. Caos é romper com a necessidade das leis causais que se impões em sua inexorabilidade e estabelecer um acontecimento milagroso, com é o nascimento de Jesus sem a presença masculina. O caos é o caldo de onde brota o impensado até então. O caos difere do revolucionário pois não é necessariamente violento e belicoso, enquanto traz em si a energia do que ainda não há. O caos é de onde brota a descontinuidade, é o espaço onde se gera o acontecimento que passa a dar sentido por ruptura uma vez que se inrrompe decisivamente. O caos surge da escuridão e brota como luz: o caos é o lugar incomensurável de onde advém algo que é descontínuo com o que há. O caos é o abismo sobre o qual o Espírito de Deus paira e de onde advém o tudo existente. Se assim o for, ao se fechar o espaço caótico se aprisiona Deus nas cadeias do necessário, portanto, Deus não mais é Deus em seu lugar está a imanência da causalidade normativa universal e intransponível.


Deus não é caos, Deus não é ordem, mas criador destes espaços solidários. Deus não advém e nem existe pelo e para o caos. O caos é o espaço da originalidade do existente que Deus criou para criar. Onde estaria o mal? Quem seria o mau? O mau, conforme dissemos, não existe por si, mas é a máscara que os males colocam nos humanos e nas coisas. Os inquisidores, Robespierre, Hitler, Stalin, Mao, etc., não máscaras que nos permitem dizer que o mau tomou forma humana, enquanto o mal radical paira e marca o tempo. Não sendo o caos o mal, aquilo que se coloca relacionamente, o que emerge nas e pelas relações dos humanos, duas questões emergem: primeira, seu advento? Segundo, sua presença?


O Gênesis bíblico, os capítulos 2 e 3 sempre me intrigaram. Em especial a narrativa que nos fala da árvore do conhecimento do bem e do mal, o movimento da mulher em tomar o fruto desta árvore e a reação do humano-macho a este movimento da humana-fêmea. Jordan Peterson (12 regras para a vida) me ajudou a entender que o caos (no sentido criativo, originário, de novidade e metanoico) é feminino. Na mitologia grega está associado a Dionísio, e em As Bacantes se entrelaça com o feminino e a festa, enquanto o masculino está imbricado com a ordem, a lei, a polis. O caos tende para a orgia e para a violência, para a morte e para certo tipo de desmesura, de confusão de liberdade com mais do que libertinagem, com desenraizamento ético a partir da desrreferência para com a alteridade. Por outro lado, sem o caos, sem a criação, sem o novo, sem a crítica aos hábitos e às formas estabelecidas, encontramos uma ordem que além de castradora, é uma ordem violenta, totalizadora, tirânica, fundada no poder violento e belicista, na tortura e no aprisionamento.


Assim, a mulher (o que digo mulher aqui é a propensão humana para um movimento de ir além do estabelecido, do habitual) sendo o caos, a criação per si, o “haja luz” é também a parte da humanidade que critica as ordens estabelecidas, o “é assim porque sempre foi e deve permanecer assim”. A mulher (a mudança e a metanóia) que toma do fruto do conhecimento do bem e do mal o faz pois representa a mudança, a novidade, o impulso para o novo e inusitado. A mulher quando toma deste fruto ela não faz outra coisa senão ser o que é. A mulher não peca por que se move em direção ao excêntrico, em busca de um mundo que ainda não é. Também o faz antes do homem (“houve luz”) pois este representa o estado de ordem e manutenção das coisas. A mulher toma o fruto pois que responde a uma ordem intrínseca nela, o mover-se para o novo, enquanto o novo existe como uma criação consolidada. Caos e ordem fazem parte de uma mesma humanidade, enquanto a mulher tipifica a mudança, a novidade, a criação, o caos, e o homem a ordem, a estabilidade, a manutenção e conservação.


O movimento então é de criação (a mulher tomou do fruto e o comeu) e de habituação (deu ao homem que repetiu o ato).


O problema não está neste duplo movimento de criação e habituação. O problema está em submeter a transcendência à imanência, em transformar o ato criativo, caótico em um ato restrito ao universo material, imanente, entrópico, posto estar fechado sobre si mesmo. O mal está em limitar a criação ao universo fechado da imanência, do mundo material. Portanto, a criação transformou-se em descobrimento, e compreensão das leis que regem os comportamentos materiais das coisas, em descrever mudanças de estados naturais, em dizer como se relacionam os corpos entre si. O caos se metamorfoseou em ciência. Enquanto a ordem se metamorfoseou em controle, prescrição de normas comportamentais, em moral. O advento do mal é a redução da vida nua (Zoe) à vida relacional (Bios). A vida enquanto o que nos escapa ao entendimento à vida enquanto corpos em estados relativos.


Teríamos um estado em que o imanente (feminino) se volta para sua existência transcendente (em Deus) rompendo assim os limites da materialidade e com a tal criar novas possibilidades promissoras em que a vida caótica permeia a existência normativa, enquanto a existência normativa e habitual se deixa impregnar pela mudança e transformações tendo em vistas a precariedade do existente no tempo. Mas, passamos a ter um estado em que a transcendência se faz na imanência e como tal apenas se volta à descoberta e ao existente e ao possível, universalizável, enquanto a ordem toma a forma de força e violência controlando os corpos a fim de que reproduzam as leis necessárias e inexoráveis.


Num ato de violência e ruptura desmedida (a desmedida assume o lugar do complemento e da dependência recíproca) o caos se torna inconstância, em que os filhos de Kronos comem os irmãos anteriores e partes do pai. O novo se nutre do que ainda não é velho, nem obsoleto e nem antigo e se deixa como nutriente para o que há de ser parido no tempo sempre presente. Enquanto isto a ordem se torna mais violenta, mais restritiva, mais desmedida, mais invasiva, mais coercitiva, mais punitiva, etc. A ordem não tendo qualquer fundamento transcendente e imanente, a não ser o direito do conquistador, se impões como violência, como sacrifício, como morte. A novidade que o caos trouxe foi extinguir o fundamento para a ordem e fazê-la flutuar nas lâminas da morte.


A presença deste mal radical está numa ordem caótica que implica em que o novo já nasce velho e grávido do que vai lhe servir de alimento, enquanto o caos da ordem é que esta não se fundando em coisa alguma, é imposta como violência sagrada. A religião, o Estado, o Capital, a Ciência, a Cultura, etc., tudo é descobrimento de formas de descrição normativa e imposição de comportamento de corpos.


O caos, o feminino não é o problema da mal, mas parte da solução, quando e si romper com a imanência e abrir a porta da humanidade para a liberdade amorosa de uma vontade que se voltaria à criação. A ordem tampouco é o mal, mas a possibilidade de tomar o rebento criativo (Zoe) e lhe permitir esperançar a vida dentre os humanos (Bios).

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