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Violência e colonização

  • Marcos Nicolini
  • Dec 14, 2016
  • 8 min read


No paleolítico (Idade da Pedra Lascada, de 250.000 aC. a 10.000 aC.) os grupos humanos se caracterizavam pela caça/coleta e nomadismo, e os grupos eram liderados por homens. Há

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indícios de algumas formas de crenças forças ou espíritos, assim como cuidado com os mortos que podem denotar alguma crença em vida após a morte, além de lugares especiais, como as cavernas, aos quais voltavam periodicamento, o que pode implicar em algum tipo de culto sagrado.


O neolítico (Idade da Pedra Nova, ou, Pedra Polida) sucedeu ao paleolítico, por volta do ano 8.000 aC. Os grupos humanos tornaram-se sedentários, vivendo da monocultura e a mulher passou a ocupar o lugar central na sociedade. Desta época começam o domínio de técnicas de domínio de sementes para a agricultura, as observações dos ciclos da terra e as religiões, seus cultos e seus ídolos (em grande parte com privilégio da deusa mãe). Nas regiões onde os grupos de agricultores e pastores, sedentários, se desenvolveram, houve uma elevação da população, ainda que às custas do empobrecimento da dieta. Os caçadores-coletores tinham uma dieta mais rica e diversificada do que os agricultores que, no mais das vezes, concentravam sua dieta a um tipo de alimento, aquele que cultivavam. Em outras palavras, os grupos sedentários lograram êxito populacional e as regiões onde habitavam se tornaram mais populosas. Estes grupos não se caracterizavam por hierarquias sociais, ou diferenciações sociais, não havendo algo como um proto-Estado.


Os agricultores transformaram suas lanças em arados e seus arco e flechas em bastões para tocar rebanhos. Suas habilidades bélicas foram reduzidas, o que os expos aos perigos que vinham de fora das cidades-aldeias: animais e salteadores. Neste mesmo período de tempo, a Terra se resfria e a caça e a coleta se tornam mais difíceis, tornando a atividade de pastoreio e agricultura mais seguras. Não devemos imaginar que a passagem do paleolítico para o neolítico se deu com a transformação plena dos grupos nômades em sedentários, antes, havia a presença mútua de ambas as formas de organização social. Os grupos caçadores-coletores mais aptos à guerra, pois a caça e a guerra continham elementos sinérgicos, enquanto os grupos de pastores e agricultores eram mais eficientes na provisão de alimentos e eram mais prolíficos.


A passagem do paleolítico para o neolítico, dos caçadores para os agricultores se deu como transformações tecnológicas, mas também institucionais e sociais. Houve, pela primeira vez, interno à humanidade, uma heterogeneidade, com duas ordens distintas. Devemos sublinhar, neste momento, o surgimento da linguagem humana. Há duas teorias sobre o surgimento da linguagem, uma que nos diz que surgiu como necessidade de comunicação entre os caçadores, os quais precisavam acertar as estratégias e as ações de captura de animais. Outra teoria é que a linguagem surgiu como fofoca, isto é, quando os humanos, vivendo em comunidade, precisavam marcar condutais inaceitáveis de indivíduos do grupo, promovendo sua exclusão social. Possivelmente a linguagem surgiu de ambas as necessidades, de caça e de comunidade, mormente em sociedades menos simples, em que conviviam grupos diferentes.


Os caçadores estavam em desvantagens pela dificuldade de obter alimentos, enquanto os agricultores estavam em desvantagem em manter os estoques de alimentos, diante dos predadores e assaltos. É possível imaginarmos que em algumas aldeias houve um certo acordo entre caçadores e agricultores, apelando para uma condição de ganha-ganha: proteção e alimentação. É possível imaginarmos que em algumas aldeias houve acordo que trouxe para o interior da sociedade a heterogeneidade que havia nos grupos distintos.


Estas primeiras aldeias passaram a ter grupos armados, prontos para enfrentar os predadores e os salteadores, enquanto havia aqueles que trabalhavam no campo, produzindo excedentes, que sustentariam os trabalhadores e os guerreiros. Por volta de 3.000 anos antes de Cristo surgem os primeiros Estados, os quais contavam com estas duas culturas em seu interior: a masculina, guerreira, e a feminina, laboriosa. Da diferença entre caçadores e agricultores surgiu a desigualdade entre Estado e trabalhadores. O Estado não surge com a religião, isto é, concomitantemente à diferença entre deuses e humanos, que estabeleceu uma desigualdade entre sagrado e profano, teria surgido uma diferença entre elite política e trabalhadores. Há evidências que podem apontar para o sentimento religioso no paleolítico e de religião no neolítico, presentes, tanto o sentimento religioso, quanto a religião, em sociedade sem Estado, homogêneas. O Estado surge em sociedades heterogêneas, desiguais, marcadas por uma elite dominadora e por trabalhadores. Mas estes Estados não surgem em qualquer lugar.


Para entendermos o surgimento e a finalidade do Estado, devemos, antes, apontar alguns conceitos e diferencia-los: os de produção e de produtividade. Imaginemos que temos uma máquina que produza 100 unidades de alguma coisa, por dia, caso queiramos aumentar a produção, devemos fazer funcionar uma segunda máquina igual que aumente nossa produção diária para 200 unidades. Mas se alteramos a tecnologia, o método de produção e conseguimos uma máquina que produza 125 unidades da mesma coisa, por dia, aumentamos a produtividade. Com apenas uma máquina (ainda que diferentes) deixamos de produzir 100 unidades por dia, e passamos a produzir 125 unidades por dia, portanto, tivemos um acréscimo de produtividade de 25%.


Thomas Malthus vai nos dizer que, data uma tecnologia (seteris paribus), ou, assumido a constância tecnológica, a quantidade de alimentos produzidos será função do número de trabalhadores e da quantidade de terra cultivável. A eficiência de uma data tecnologia será dada pela capacidade de um trabalhador produzir para sua própria sobrevivência e pelo excedente que sustentará todos os que não trabalham na produção de alimentos. No caso dos primeiros Estados, os trabalhadores produziam para si e para os caçadores que agora deveriam garantir a segurança da aldeia e da lavoura.


No entanto, Thomas Malthus dirá que haverá um aumento populacional, advindo dos excedentes da produção e que não são consumidos pela população total. Esta tese parece descartar as trocas entre grupos, que se tornam como que concorrentes. Concorreriam pela terra, em um primeiro momento, e por mão de obra, num segundo. Desta maneira, o aumento da população, num primeiro momento, demandaria mais terra, a fim de aumentar a produção, dado que a produtividade (na relação terra-trabalhador) é constante. A expansão territorial de um grupo encontra seu limite no território de outros grupos. Uma vez que um grupo encontra seu limite na fronteira com outro grupo, e há um aumento populacional, deriva daí a fome e a desordem interna.


Em espaços onde há poucas terras cultiváveis e aumento de população, há este descompasso entre a produção agrícola e o aumento de população. A sociedade, dividida entre o Estado belicoso (herdeiro da cultura masculina, caçadora) e os trabalhadores (herdeiros da cultura feminina, agrícola) ou entra em colapso, ou entra em guerra com outros Estados. O Estado que até então serviu para consolidar fronteiras, eliminando predadores e salteadores, volta-se a expansão territorial. O Estado volta-se para as guerras de conquista, quer ativamente, avançando sobre outros territórios, quer passivamente, impedindo o avanço de outros Estados sobre seu território. É o sentido da guerra de conquista, a qual visa ampliar territórios, que confere sentido ao Estado e, num segundo momento, ao Império.


Mas devemos retornar um pouco. Num primeiro momento o Estado domina os trabalhadores com o uso da força. Expropria os trabalhadores, impedindo que tenham a posse da terra. O território que antes era cultivado por aldeias que desconheciam a propriedade privada, agora são dominados pelo Estado. O território pertence ao Estado e os trabalhadores devem produzir excedentes para sustentar os seus dominadores. Num segundo momento, a relação tecnologia-terra-trabalhador realiza uma produção inferior às demandas alimentares da população, fazendo com que o Estado busque ampliar suas fronteiras. A guerra de dominação interna é ampliada para guerras de ampliação territorial, contra outros Estados.


As elites do Estado se formam e se sustentam a partir não só da violência das armas, como da apropriação da cultura e mitos dos dominados. A religião, as ciências e o produto do trabalho são transferidos da cultura feminina, agrícola, para a masculina, bélica. Uma vez realizada a transferência cultural e produtiva, o Estado desenraiza esta população. Os proprietários originais da terra, da cultura e do trabalho, são cotados como bárbaros e estrangeiros.


Um exemplo promissor para esta passagem do neolítico para o Estado, podemos obter na cultura grega arcaica e clássica (de 800 aC. a 340 aC.). Lembramos que na mitologia grega Gaia (o princípio feminino) e Urano (o princípio masculino) copulavam, mas o deus masculino não permitia que a deusa parisse seus rebentos. Um dos filhos antes de morto por Urano, engendro, com sua mãe, um golpe no pai, castrando-o. A castração de Urano promoveu o distanciamento do masculino e o feminino, com o sangue aspergido, Gaia floresceu de vida e Urano declarou guerra mortal à fêmea. O princípio masculino, o celeste, o elevado, o superior, se voltou contra o princípio feminino, o terrestre, o inferior, o corruptível.


Esta dicotomia masculino (eterno, imutável, incorruptível) e feminino (temporal, mutável, corrupto), encontramos no mito de Pandora. Os homens, instruídos por Prometeu, enganaram a Zeus, como vingança o deus fez a mulher, juntamente com a caixa na qual havia todos os males para a humanidade. Outro exemplo encontramos no teatro trágico e o mito das Bacantes. Dionísio, o deus estrangeiro perverte a cidade grega, retirando delas as mulheres, que desobedecem os seus maridos, praticam orgias homo-afetivas e assassinam o rei, o princípio masculino do poder de Estado.


Para finalizarmos os exemplos gregos, lembramos da história das mulheres. Uma mulher grega, boa para casar, chamada de mélissa, diferenciava-se daquelas boas para o prazer. Esta mulher vivia no interior do “oikós” (casa) de se seu marido e vivia como uma estrangeira em terra alheia. Na casa de seu pai era treinada para o casamento, quando se casava vivia para seu marido, e cuidava do tesouro da família. De sua família original, de sua mãe, guardava o lar, a lareira (ésthia) com o fogo que não poderia jamais se extinguir e do culto aos deuses domésticos. No período clássico da Grécia, não havia um culto público, os deuses eram do lar.


Quando, como diria mais tarde Aristóteles, um “oikós” se juntou a outro “oikós” tornando-se, este ajuntamento, em uma Polis, um Cidade grega, a “ésthia” do “oikós” foi abolida em prol da “Ésthia Koiné”, a lareira comum à Polis e os deuses de cada “oikós” deram lugar aos deuses da cidade: Zeus, Atenas, Apolo, Afrodite, Hera, etc. A mulher, além de estrangeira, foi desenraizada, perdendo qualquer referência cultural. Sua função era parir e educar gregos. O “oikós”, o doméstico, o privado foi dissolvido em prol da Polis, do político, do público, do Estado. A Cidade grega é a ordem política em que a memória do neolítico fora completamente esquecida.


Esquecimento que passou por momentos de apropriação, ressignificação, esquecimento e marginalização. A ordem masculina se apropria dos recursos da ordem feminina, confere novos sentidos e significados fazendo com que tais recursos se tornem úteis aos dominadores e faz esquecer as origens e a propriedade original, fazendo parecer que foram produzidos originalmente pelos dominadores. No último movimento, transforma aquela que espoliou em algo sem sentido, ou, cujo sentido é marginal, visando apenas as funções subalternas.


Roma não produziu grandes e significativas mudanças nas relações entre os princípios masculinos e femininos. O homem romano ideal era o viril, o guerreiro, destemido, que estaria pronto para pegar em armas e morrer pela Cidade Eterna. O fogo eterno ainda ardia diante do Senado, formado por homens, supostamente herdeiros dos primeiros romanos. A matrona romana era a versão latina da mélissa grega: boa para casar e ter filhos. Uma estrangeira que não podia gemer. O princípio de ordenamento das cidades gregas e de Roma é similar: transformar as diferenças e desigualdades. O Estado se funda na desigualdade entre os dominadores (guerreiros) e os dominados (trabalhadores), entre um princípio masculina, da guerra, e o feminino, do terra.


O erro, no entanto, é pensar que este movimento do masculino sobre o feminino é feito sem resistência e sem que o princípio do macho seja afetado. Pelo contrário, o princípio feminino ao ser apropriado pelo masculino, colonizou o instinto bélico.

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