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Três registros de três pensamentos: abortos e armas

  • Marcos Nicolini
  • Mar 19, 2023
  • 10 min read

Registro 2 do pensamento 2 – Sobre armas e abortos


Meu eu, minhas regras...


Michel Sandel (O liberalismo e os limites da justiça) lançou na minha mente uma dúvida que preciso trabalhar melhor: o que é o eu? Uma função própria ou uma função apropriadora? Ao que acrescentaríamos: um reflexo da sociedade ou nada?


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Não estou perguntando “quem sou eu?”, mas “o que é o eu?”. A pergunta “quem sou eu?” pode ser respondida por mim e para mim, pelo menos no nível básico, como esta coisa (res) que tem a consciência da questão, este singular que não sou outro, um objeto, “eu sou” uma consciência da consciência do “ser eu”.


Retornando a questão do “o que é o eu?”, podemos colocar em outros termos: o eu seria o que se apropria de coisas ou seria a soma das coisas das quais se apropria continuamente? Aqui não estamos perguntando da consciência da apropriação, mas do ato de se apropriar e a constituição do eu. Se Sandel colocou em mim a questão do “o que é o eu?”, os caminhos que se abrem não foram abertos por ele.


Quando digo “eu” do que digo? Além de haver um sujeito ou uma entidade metafísica que seria ou é o substrato que se apresenta socialmente como eu. Ainda mais, ao dizer em língua portuguesa “eu”, este já não estaria distante de uma propriedade singular e entregue a uma apropriação exterior, o eu como resultado de língua que se fala: a língua que falo não é minha, ou seria? Haveria algo para fora da linguagem e do corpo que permite a consciência da consciência do algo que apenas é possível como tradução como “eu”?


Melhor dizendo, quando digo “eu” estou me referindo a uma singularidade que responde socialmente pelo nome de Marcos que professa uma crença (herética ou ortodoxa não sei dizer) em Jesus Cristo, casado, que fala a língua portuguesa, que é formado em Engenharia e Filosofia, como Mestrado e Doutorado em Ciências da Religião, etc... Ou estou me referindo a tudo isto que se unifica nesta partícula traduzida num pronome da primeira pessoal do singular? Diferencio o eu das coisas que me aproprio, ou unifico tais coisas numa relação singular e única que apenas corresponde ao “eu”? O “eu” é uma singularidade radical e absoluta que se expande em apropriações, ou um campo de relações de apropriações única e singular que me identifica? Ou, indo um pouco além, o eu não é a singularidade apropriadora, nem o conjunto das propriedades cuja relação é singular, mas apenas um vício de linguagem, uma ficção?


Enfim, minha propriedade, meu eu próprio, eu-eu-mesmo, o que me é próprio é o que eu sou (esta consciência da consciência), ou o que agrego constantemente como apropriado singularmente como eu? Ou, um signo que significa sem significante? Meu “eu” se estende até que conjunto de apropriáveis? Meu corpo se identifica com o “eu sou”? Ou, não há, fora da linguagem, nenhuma relação cujo significado é real, existente?


A partir de então penso num leque um pouco mais extenso de possibilidades. Mais assertivamente, diria que se apresentam seis possibilidades pela combinação dos elementos: de um lado o “eu-divinizado”, o “eu-apropriado” e o “eu-ficcional”, de outro as propriedades como elementos do mundo real e as propriedades como ficção, como mundo fabricado pelo desejo.


Em um extremo está o “eu” como um pequeno pseudo-deus, singular, nada agregado a si a não ser a consciência da consciência. Este olhar para si que percebe o “eu-sou” não linguístico que é anterior à língua, esta que me aproprio e que de mim se apropria numa relação dialética. Pseudo-deus, pois dizer “eu-sou” já é um agregar do que lhe é externo e não um criador de linguagem. Junto à apropriação da língua realizo um movimento centrípeto de apropriação de coisas que “eu” passo a chamar de “meu”, assim como há coisas apropriadas às quais produzo uma falsa identidade como “eu”, como por exemplo: eu sou doutor em ciências da religião. Estas coisas tanto podem ser reais, como o ar que respiro, ou a comida, quanto podem ser produções de mundo, tais quais o são os títulos acadêmicos.


Próximo a esta possibilidade, mas distintiva a ela está a segunda que falamos acima, isto é, o “eu sou” como conjunto das coisas que me apropriei: eu sou engenheiro, eu sou casado, eu sou...Conquanto o “eu sou” ainda seja forte e tenha a consciência de ser isto ou aquilo, já não é mais um singular simples e idêntico apenas em si mesmo. O “eu sou” é determinado pela consciência da consciência e da consciência de um mundo que está diante de mim e que parte dele me aproprio e se torna “eu”, como “meu”, quer seja ele real ou uma construção social. Portanto, tanto “a minha” casa, quanto o “eu sou bacharel em filosofia” perfazem meu “eu”, mesmo que de maneira distinta: propriedades fortes (como a língua, os valores e crenças) ou propriedades fracas (como o relógio que uso neste momento).


A terceira possibilidade é dada pela consciência de que o “eu” é uma ficção dada pela linguagem. Quando digo “eu” já digo algo que me é imputado, um “não-eu”. Como dizem os linguistas estruturalistas: “eu-sou-um-outro”. Não há espaço para um ente metafísico extralinguístico mais interior e anterior, logicamente, à linguagem. Não obstante o “eu” ser uma ficção da linguagem, ainda me aproprio de coisas do mundo, as quais hora chamo de “eu”, hora chamo de meu: eu sou bacharel em filosofia e tenho uma bicicleta. Também o “eu sou” e “eu tenho” são elementos de linguagem e apenas são operadores de comunicação e de ordenamento das relações sociais. Eu-sou um corpo que está apropriado por uma linguagem e por meio desta reconheço a primeira pessoa do singular, assim como me aproprio de coisas do mundo. O “eu-sou” é um vício de linguagem que encontra sua identidade no corpo e nos desejos de apropriação de coisas externas a fim de suprir carências deste ente vazio.


Por fim, a hipótese de que o “eu” é uma ficção dada pela linguagem e a propriedade é uma construção social, dada por condições das complexas relações sociais circunscritas no espaço e no tempo. Ambos os elementos de linguagem, o “eu” e as “propriedades” são ficcionais e passíveis de desconstrução. Nada sou e nada há que possa ter, a não ser um desejo de viver infinitamente e se possível com o máximo de prazer e o mínimo de sofrimento. Portanto, eu-sou não uma consciência da consciência, mas o desejo infinito diante de recursos finitos (a morte e o mau), e partes dos recursos são por um “eu” apropriados tornando-se “meu”, o que pode acarretar injustiça: a injustiça estaria em que não havendo nada realmente “meu”, todos os recursos devem ser distribuídos, ou, pertencendo a todos, não pertença a ninguém, mesmo porque “alguém” (um “eu” individual) não existe, é uma ficção.


Há de se ressaltar que dizer “eu” implica em dizer “não-eu”. Há, contudo, o “não-eu” do qual desejo me apropriar, há aquele que quero me relacionar estabelecendo relações de trocas recíprocas, há os que hospedo numa maneira de doação de mim e o “não-eu” que desejo eliminar e destruir, um intruso indesejado que invade minhas fronteiras. Cada modo de dizer “eu-sou” define um modo de apropriação, reciprocidade, hospitalidade e hostilidade. As hostilidades, entretanto, dizem respeito à percepção (de um “não-eu”) de um perigo reconhecido pelo “eu” diante de algo ou alguém que coloca em risco este “eu” e suas propriedades. No interior às fronteiras do “eu” e suas propriedades há uma lei de preservação de si e de seus próprios, que reclama uma disposição de eliminação do que possa colocar em risco tanto a preservação quanto a expansão. O “eu” porta em si o direito de auto-preservação, que implica na eliminação de tudo e todos que coloquem em risco esta preservação de si.


Simplifiquei ao máximo as hipóteses, ou melhor, minha heurística foi restritiva para caber em poucas páginas deste memorial. Insto implica que uma heurística não porta em si a pretensão de ser exaustiva, mas é um modelo simplificado de uma realidade muito mais complexa.


Dado este problema inicial e suas alternativas, escolhamos arbitrariamente uma delas: “eu-sou” o conjunto das minhas propriedades. Com esta escolha eu me distancio um pouco do problema metafísico de provar minha “eudidade” sem minha materialidade, minha divinação sem minha corporeidade, enquanto opero distante da pura ficção, pelo menos não declaro que penso no “eu” e nas propriedades como ficção. Haveria um campo do existente, cuja ficcionalidade me é ocultada. O que nos coloca em outro problema: qual o conjunto de propriedades definirá o “eu-sou”. Mas uma coisa parece se dar: eu e este corpo nos identificamos: este-corpo-sou-eu, ainda que não possa dizer eu-sou-este-corpo. Cabe ressaltar que a ideia de que o eu seja a intersecção de um corpo, da memória e das projeções de futuro, em e para um indivíduo, pode muito bem se aproximar da ideia de corpo: o corpo material, o cérebro e suas memórias (cérebro-corpo) e os desejos e os medos projetados como preservação do corpo existente. Assim, “eu” é uma propriedade de corpo, mas não apenas o corpo.


Se este corpo não limita o “eu”, posso expandi-lo com outras propriedades e, por exemplo, tais propriedades podem ser aquelas que me ofereçam a legítima da existência continuada, preservação e ampliação (espaço-temporal) do “eu” (cuidado e reprodução): o “eu” projetivo que falamos acima. Por exemplo o ar que respiro, a comida que como, a roupa que me protege das condições externas, etc., todos estes elementos poder ser tomados como “eu”, mais do que meu. Pensando um pouco com a pirâmide de Maslow (se é que ainda alguém leva em conta este aparato teórico), devo pensar não apenas na preservação imediata, mas continuada e expandida, não apenas na comida de hoje, mas na possibilidade de obter recursos no futuro. Não apenas nos alimentos e vestuário, como formação profissional, saúde, habitação, etc. como dimensões do “eu” que projetem a existência futura e boa. Portanto, não apenas nas minhas roupas como em imóvel, moradia segura e estável: proteção, bem-estar, etc. Um pensamento que nos remete aos liberais e a John Locke, a partir dos quais podemos pensar na propriedade, no próprio imóvel como o que o “eu” se apropria e que traz consigo a ideia de eu-meu. O “eu” já não se limita ao “eu-corpo”, como se estende até aos recursos materiais que tem como fim a preservação e expansão do eu-proprietário, visando o desejo de futuro e reduzindo o risco de morte violenta: por penúria.


O corpo e as coisas apropriadas que se confundem com o “eu” trazem consigo o determinante da preservação do próprio “eu”, diante daquelas coisas que porventura coloquem em risco a preservação de si. Indo além, a preservação que inclui preservar a lei do “eu-proprietário”, do “eu” que legisla no interior de suas fronteiras de apropriação: “meu-eu”, minhas regras. Não apenas o “eu”, o “eu-corpo”, o “eu-propriedades”, como, no interior deste “eu”, o “eu-legislador”.


Colocamo-nos diante de uma questão, a partir da escolha arbitrária feita acima: o “eu-proprietário”, ficcional ou não, traz consigo a propriedade e suas regras e tudo isto articulado como linguagem. No espaço do “eu-proprietário” há o “eu-legislador”: o eu-soberano, aquele que redige as leis de seu feudo. O soberano como a unidade indivisível e continuada no interior de uma fronteira, que determina o conjunto de bens e recursos submetidos a uma lei.


A propriedade não é apenas o corpo, suas memórias e suas projeções como desejo de mais vida, singularizado no “eu-soberano”. Soma-se a isto tudo o que agrega e que torna a existência continuada do “eu” uma possibilidade: o ar, a comida, a bebida, as roupas, os bens tangíveis (como os imóveis), a sociabilidade, etc. Assim como exige que a legítima da defesa de si inclua a eliminação, se preciso for com o uso da violência legítima, de elementos indesejados e que coloquem em risco a preservação do “eu” em correspondência com o “eu” projetado como desejo.


Neste ponto e nesta fenda de sentido que podemos pensar no aborto e no uso legítimo de armas de fogo para a proteção da propriedade imóvel.


Estou em uma área com fronteiras definidas por um documento reconhecido legalmente como minha. Na fronteira mais externa, limítrofe com outras fronteiras, levanto muros e coloco meios de acessos: portões, cabos e canos. Mais ao centro edifico uma casa, com suas paredes, portas, janelas, cabos e canos, cuja função é permitir entrada e saída de pessoas e coisas, o que “eu” permito e desejo que transitem pelas fronteiras do “meu-eu-apropriado”. Se permito que alguém entre em casa, abro portas e o estimulo a entrar. Contudo, caso alguém ultrapasse as fronteiras do “meu-eu-imóvel” e, de acordo com meus cálculos e percepções, este alguém coloque em risco o “eu” (estendido para o “eu-minha-família”), então terei o dever-direito de fazer uso da legítima da violência e eliminar este que feriu minha lei. No interior de minha propriedade sou “eu-legislador” quem decide quem é o “não-eu” que coloca em risco a continuidade desejada do “eu”.


Mutatis mutandis.


Meu corpo cujas fronteiras são reconhecidas por documentos legais (RG, CPF, Passaporte, CNH, etc.) como sendo meu. Na fronteira mais externa, limítrofe com outras fronteiras, está minha pele e artifícios que a protegem e a enfeita, como roupas, tatuagens, joias, perucas, etc. Mais ao centro edifico e reconheço como “eu” valores e costumes, cuja função é regrar as inúmeras relações entre “eu” e “não-eu”, aquilo e aqueles que “eu” permito e desejo que transitem pelas fronteiras do “meu-eu-corpo”. Segundo minhas leis (valores e costumes, hábitos e desejos) permito que alguém se aproxime, toque-me e me penetre. Contudo, caso algo esteja no interior do “eu-meu-corpo” colocando em risco a integridade deste, de acordo com meus cálculos e percepções, então terei o dever-direito de fazer uso da legítima da violência e eliminar este que feriu minha lei do desejo de preservação do “eu-meu-corpo”. No interior de minha propriedade sou “eu-legislador” quem decide quem é o “não-eu” que coloca em risco a continuidade desejada do “eu” e tenho o dever, exclusivo, de decretar a eliminação, violenta ou não, deste “não-eu”.


Dito isto, devemos dizer que em ambos os casos partimos de uma definição do “eu” como “eu-proprietário” soberano nos limites do “eu”. Neste espaço, hora defino pelos muros, hora definido pela pele e roupas, a minha propriedades e minha lei/normas/regras são determinadas e aplicadas pela instância mais íntima do “eu”. A crença e os valores liberais do “eu-proprietário” que fundam e estruturam a soberania do “eu” e sua efetividade. O aborto, assim como o uso de armas para a proteção da propriedade-coisal compartilham do mesmo valor: a segregação do “eu” e do “não-eu” e o cálculo soberano no interior do “eu” que legitima a aplicação da violência a partir de uma lei que tem em vista apenas a preservação de si. Uma lei cuja premissa é aética e anti-ética, pois feita exclusivamente pela e para o “eu”.


O que desejamos salientar aqui é que esta premissa da eliminação do “não-eu” por meios violentos se funda em crenças e valores liberais, não encontrando ponto de apoio em crenças e valores progressistas, a não ser como engodo e mentira (visando um movimento niilista de solapamento de valores que se fundam a vida como realidade). Neste ponto exato os liberais e os progressistas são igualmente anti-humanistas. No caso dos progressistas o anti-humanismo se funda (e esta é a questão paradoxal do progressismo, pois ele é um niilismo fraudulento, que tem fundamentos) na negação tanto do “eu”(este seria apenas resultado das forças sociais, da sociedade), quanto na negação da propriedade (que também é uma ficção). Sendo o “eu” uma ficção, nada há de aético e anti-ético eliminar os “eus” que coloquem em risco a sociedade e suas forças progressistas, isto é, niilistas.

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