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Três registros de três pensamentos:

  • Marcos Nicolini
  • Mar 18, 2023
  • 6 min read

Registro 1 do pensamento 1 – Sobre homens e mulheres e outras possibilidades: entre a natureza e a cultura e vice-e-versa.


Ouço esta guerra narrativa entre o que define a, chamemos assim, sexualidade de um indivíduo e chego a algumas conclusões:


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Primeira: de um lado nos encontramo com aqueles que se fundam no corpo para dizer que a existência de órgãos diferenciadores e a presença mais acentuada de hormônios específicos, além de características genéticas mais fundamentais, diferenciam o humano masculino (homem) do humano feminino (mulher); enquanto nos encontramo com aqueles/aquelxs que dão crédito a uma tradição de pensamento não empírico, mas que também não é idealista (muito pelo contrário) que podemos remontar aos pensadores como Pico Della Mirandola (A dignidade do homem) e Rousseau (Contrato Social e outros escritos), os quais professavam uma crença não empírica que o humano é uma coisa em aberta e que tem a liberdade de se auto-produzir, fazer escolhas sobre si mesmo. De um lado estão os que dizem “a natureza define a identidade, a humanidade e o sexo”, de outro estão os que dizem “o humano é aquele que não se pode dizer ‘isto é um humano’, pois sua humanidade depende de suas escolhas, assim como sua sexualidade”.


Ambos/Ambes/Ambxs os/es/xs grupos/grupes/grupxs (a fim de não enlouquecermos vamos simplificar usando uma notação que une o conservadorismo dos primeiros e a referência à tradição dos segundos, assim, escolhemos dizer “ambos os grupos”). Retomando... Ambos os grupos são crias do mesmo movimento. De um lado os que se aferram à natureza como último refúgio para a identificação de si e das coisas no mundo; de outro lado os que se lançam no abismo do niilismo mais inconsequente que apregoa, contra si mesmo, que não existe um tal fundamento último e que não há posições falsas ou verdadeiras, mas apenas narrativas e múltiplas escolhas, desta maneira, a auto-identificação fragmentária é legítima desde que não se expanda de tal maneira que englobe qualquer estrutura binária (o que inclui dizer homem/mulher).


De um lado temos o pensamento que fundamenta uma possibilidade de ciência, isto é, não se podendo fazer ciência do particular, buscam-se leis que permitam conhecer algo. Não se faz ciência do particular. Isto é, apenas podemos dizer que certo material é ouro se e somente se ele tem características naturais que nos permitam dizer “isto é ouro”. Isto é, tem propriedades que a ciência define com as do ouro, como estrutura atômica, cor, dureza, densidade, etc. De onde foram sacadas tais propriedades? Do ouro na natureza e da intensão humana de legislar sobre tal natureza, imputando-lhe características não naturais, antes, linguísticas, com a pretensão de moldar a natureza aos desejos humanos. De igual modo, apenas podemos dizer que um indivíduo é homem se e somente se tem elementos genéticos definidores de sexo (XY, ainda que haja variações estatísticas em torno determinantes), assim como a presença de hormônios em quantidade e/ou qualidade específica (estatisticamente especificada), órgãos sexuais que o distinga, etc. O que estamos dizendo é que a identidade não é dada pela natureza, mas pela ciência que define as características que permitam certo conhecimento empírico, mesmo que tais características tenham sido determinadas por certo empirismo indutivista, isto é, da observação de coisas que se repetem na natureza e que as submetemos à linguagem científica, com o propósito de adequar a natureza à utilidade. Dizer que um homem é um homem e uma mulher é uma mulher (assim como as variantes estatísticas da identificação do animal humano a partir da combinação de X e de Y) não é dado por crenças transcendentes, mas pela observação do corpo de indivíduos que possuem características similares e agrupados por uma linguagem do tipo científica (mesmo que não seja científica) que molda a natureza segundo técnicas de manipulação da matéria, isto é, o corpo.


Ainda mantendo a linguagem científica para o mundo, podemos dizer que de outro lado há o pensamento que nega a ciência natural e se apega nas infinitas possibilidades da linguagem em produzir ficções narrativas contigentes e mutantes, que chamamos de niilismo, sob a bandeira das ciências sociais. Para tais, cada indivíduo tem uma identidade que ele determina em dado momento e que poderá abandonar (potencialmente) em outro momento (desde que não busque o auxílio de um psicólogo conservador que faça algo que possa ser identificado, ops, como cura gay; alguém pode, deveria poder deixar de ser hetero e se tornar outra coisa, mas não pode, de maneira e via alguma, deixar de ser gay e se identificar como hetero). Aqui o que vale (pretensamente, mas que de fato suporta tal movimento) não é a ciência que se aplica ao mundo das coisas (as ciências da natureza), mas a ciência da experimentação social que vale apenas e tão somente para as relações sociais: a sociologia. Para tal não há características definidoras da identidade de um indivíduo dadas pelo corpo (portanto, pela natureza), mas pela escolha sempre precarizada que o indivíduo faz sobre si mesmo. Isto causa problemas cuja soluções são muito criativas. Imagine que alguém (do sexo masculino) deseja participar de eventos esportivos profissionais, contudo suas competências e habilidades não o qualificam para eventos de alta performance destinados a este sexo. Este indivíduo pode aliar dois pensamentos: primeiro que as competências e habilidades requeridas em competições esportivas femininas são menores do que as masculinas e que a definição da identidade não é feita pela natureza, mas pela escolha pessoal/individual e que a sociedade há de se ajustar ao indivíduo e seus direitos (como diriam os defensores do Direito Natural: direitos de natureza). Outro exemplo podemos obter de um indivíduo quando identificar-se como preto/negro a fim de obter vantagens para o ingresso a uma universidade pública e identificar-se como branco quando quiser obter uma vantagem em uma atividade profissional, tendo em vista a tendência racista para determinados cargos e funções profissionais que privilegiam pelas pouco pigmentadas.


Pareceria, à primeira vista, que estamos tratando de dois cosmos excludentes e antagônicos, o que não é o caso. Ambos se fundam em uma mesma Gestalt: o materialismo. Ambos caminham para o mesmo procedimento niilista e de fim do humano. Nem o pretenso conservadorismo naturalista e nem o pretenso tradicionalismo progressista escapam de um movimento inexorável, tendo em vista o privilégio às crenças materialista. Este movimento é o niilismo.


O niilismo, como entendo, cujo entendimento obtive no texto de Franca D’Agostini Lógica do niilismo, a saber: o niilismo se caracteriza por dois elementos, primeiro de não haver fundamento último e da fragmentação das narrativas e estilos de vida (relativismo cultural). No niilismo não há ciência a não ser como poder e dominação: potestas e dominium. No caso do tradicionalismo progressista o niilismo é evidente, mormente quando se trata da questão de gênero: LGBTABCDEFG...É um movimento niilista cujo sentido não é a identidade de grupos minoritários, mas a fragmentação da identidade, uma vez que identidade é metafísica, isto é, exige um fundamento singular e atemporal. O progressismo é um niilismo e o niilismo é tradicional na filosofia desde sempre (para isto sigo o texto de Conor Cunningham Genealogy of Nihilism). Até aqui tudo é simples.


A questão é que o conservadorismo naturalista também é um niilismo envergonhado. Temos duas formas de niilismo: um que olha o mal de frente e sofre de síndrome de Estocolmo e temos o niilismo envergonhado, aquele que se apaixona pelo marido que, como disse Lula, espanca a mulher dentro de casa (na rua não pode). Vamos caminhar por um caminho abissal.


O corpo é formado de células, hormônios, material genético, etc. As células são formadas de moléculas, estas são formadas por átomos e tais por partículas subatômicas, as quais são formas de...? Até onde sabemos, de nada. O fundamento material do corpo é nada. A mesma ciência que pensa o corpo em seu naturalismo, a natureza do corpo, também pensa em próteses e mutações que transformam o corpo em um corpo útil ou reprodutível como dispositivos: temos não apenas os óculos, os marca-passos, como os robôs e os softwares de A.I. que tentam reproduzir a mente humana via redes neurais. A mesma ciência que oferece uma narrativa para que grupos defendam a diferença entre homens e mulheres a partir de órgãos, hormônios e carga genética, também manipulam esta matéria disponível para produzir humanos que se distanciam da humanidade de 10.000 anos atrás. Não apenas a enormidade de drogas produzidas pela indústria farmacêutica que substituem ou complementam a capacidade tradicional do humano em combater doenças ou ampliar capacidades, como também outras próteses e dispositivos são e serão introduzidos nos corpos naturais a fim de modificar a capacidade humana de enfrentar seus limites.


Enfim, o que os naturalistas estão fazendo não é se opor a um movimento que tenta nublar a diferença entre masculino e feminino, entre homem e mulher pela via da fragmentação da identidade sexual. O que estão fazendo é desfazer por completo a distinção entre humano e inumano. O que os progressistas tradicionalistas fazem é o mesmo. Ambos caminham pela via niilista, apenas que uns são envergonhados e outros são discarados.

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