Simular e resistir
- Marcos Nicolini
- Mar 26, 2023
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O horário de pico, o trânsito intenso nada mais é do que um excesso de veículos para vias subdimensionadas para tais momentos, o que nada mais é do que a economia da escassez (a impossibilidade de harmonizar a oferta de recursos com a demanda desejosa).
Há tempos percebi que para não me perder nos engarrafamentos é preciso não fazer parte da manada, assim, não aderir aos funis e locais e horários de afunilamento. Para fluir é preciso não estar no ordenamento, buscar espaços que escapam à ordem. O problema se dá no fato que tudo contribui para nos fazer confundir como uma parte do todo. Fora do todo o nada, pelo menos para os que deveriam estar lá: ser totalizado.

Um parêntesis. Não estamos vivendo um período fragmentação social, mas de inclusão no todo de partes que até então estavam no nada. A inclusão se dá pela materialidade dos corpos, cuja aparência e utilização permitem ganho para o todo, mesmo que reduza o fluxo livre para as partes. Esta questão deveremos enfrentar em outro lugar, aqui fica o registro de que o todo se fortalece em detrimento das individualidades e as pseudos-identidades são apenas as partes que antes não estavam totalizadas e que agora estão incluídas nas relações totalizantes, que chamamos de sociedade.
Retornado. Lendo o texto de Massimo Cacciari, Paraíso e naufrágio (um ensaio em torno de “O homem sem qualidades”, de Musil), consegui, até aqui, chegar a algumas aproximações. Primeiramente, percebi que minha intuição encontra ressonância, ou afinidades eletivas, neste ensaio e no texto de Musil, tomado como referência. Minha intuição epistemológica foi a de que tivemos um primeiro movimento, por meio do qual se abandonou a sabedoria antiga baseada no encantamento do mundo (novamente utilizando um conceito weberiano), para um conhecimento imanente do mundo baseado na qualificação dos entes (a isto corresponde o movimento pré-socrático que buscava na physis/natureza o princípio das coisas do mundo, hora no fogo, hora na água, hora nos quatro elementos, hora no átomo, etc.). O fundamento epistemológico imanente influenciou Sócrates, Platão, Aristóteles, os neoplatônicos e mesmo os cristãos na Idade Média, estes que precisaram lidar com a criação por um Deus radicalmente transcendente e um mundo material criado, mas ordenado por leis imanentes.
Na Renascença e no início da modernidade verificamos um segundo salto epistemológico que abandona as qualidades das coisas e que busca um mundo organizado mecanicamente, fundado em números e leis matemáticas. Neste surgem Kepler, Galileu, Newton, etc., e suas fórmulas que dizem sobre os corpos suas relações e posições. O Deus dos teístas se torna o Deus dos deístas e, posteriormente o Deus sive Natura do monismo materialista estóico-zpimosista.
A partir do século XVII geminou-se um novo salto epistemológico que confrontou a impossibilidade de legislar o cosmos. A razão suficiente encontrava seus limites numa ordem que se negava a se submeter à mecanicidade do formulário matemático causal. A razão se torna insuficiente, contudo, não abandona o cetro e nem a espada. Não apenas o enfrentamento de uma razão insuficiente, como a percepção de que o mundo não corresponde a relações causais mecanicamente deterministas. Com isso surge a cálculo probabilístico e a estatística. No século XVIII temos dois eventos interessantes. No campo da matemática probabilística Bayes formula a probabilidade recursiva: dado um evento, pergunta-se qual a probabilidade de outro evento e que está associada a este evento, ou seja, dado X qual a probabilidade de um evento Y futuro, que fecha uma circularidade pois o próximo evento atualiza a probabilidade de um novo evento futuro. No campo da teologia, e que influenciará a filosofia, encontramo-nos com a hermenêutica bíblica de Schleiermacher, que visa atualizar os valores bíblicos como tradução do antigo num tempo moderno. Tal qual o modelo bayseano, a hermenêutica parte de um dado (os pressupostos atuais) e atualiza um campo interpretativo para um tempo outro, que por sua vez será o novo pressuposto para traduções futuras.
Salientamos que para estes quatro momentos lógicos (sabedoria antiga, conhecimento clássico, ciência moderna e ciclo bayseano-hermenêutico) correspondem quatro “EUS”, racionalidades, sujeitos. A humanidade encontra seu ápice na Escolástica e se degrada a cada movimento da busca por conhecimento. Como diz o Gênesis bíblico: o conhecimento sem Deus faz encontrar o fim da humanidade.
Cacciari não coloca estes quatro momentos como o fiz acima, apontando para a sabedoria antigo, o conhecimento qualitativo clássico, a ciência positivista mecanicista moderna e a razão insuficiente probabilística-hermenêutica contemporânea. Muito embora o termo “razão insuficiente” tenha sacado de seu texto.
Outro conceito que sublinho do referido texto de Cacciari é aquele que nos diz que “a moral se funda em repetições e regularidades [...] E se funda ainda, no cálculo egoísta que todo mundo é capaz de fazer em relação à tutela do próprio interesse.” (pg. 59) Mais do que apenas isto, diz-nos, citando Musil, que “’mas essa qualidade de repetitividade, própria da moral e da inteligência, é no mais alto grau inseparável do dinheiro: o dinheiro se identifica inclusive com ela...’ Por isso o dinheiro é ‘um bocado semelhante a todas as forças espirituais [...]” (pg. 60).
Tenho alguns senões a estas teses (da moral, do dinheiro e das forças espirituais). Primeiramente não entendo que a moral se funda nas repetições e regularidades, mas que está imbricada sincreticamente (como diz Jaeger, synkrasis é uma mistura perfeita da qual não se desfaz) a elas. A moral advém do encontro entre indivíduos, da relação entre corpos que têm interesse em manter tal relação no tempo, portanto ajustam esta relação à normas estáveis: regulação e repetição. Quando passamos do fundamento ao imbricamento, podemos saltar da causalidade mec6anica à hermenêutica aproximativa e nunca realizável. Este é o primeiro senão.
O segundo senão está na questão do cálculo egoísta. Pela via hermenêutica, que dá as costas ao mecanicismo fundacional e metafísico, podemos dizer que a moral não se funda no cálculo egoísta, mas na repetitividade própria que se articula como imitação. O humano é um animal mimético (de imitação), portanto, o egoísmo enquanto existe se realiza na busca por aceitação ao bando. O egoísmo que visa a preservação de si paira sobre a hermenêutica da imitação, o que torna o indivíduo uma parte de um todo e retira dele a responsabilidade por suas decisões. O egoísta que imita preserva a si diluindo-se em sua identidade mimética com um todo que o supera e a si se impõe. É um golpe sacrificial: preservar-se é morrer, isto é, morrer é preservar-se. Imitar é, por sua vez, subsumir à identidade totalizante. O cálculo é hermenêutico, circular, do sacrifício: preservar e imitar o todo, a que é repetição e ordenamento.
Há um cálculo? Sim: ou morrer para o todo e preservar-se a si em sua singularidade essencial, ou buscar sua preservação egoísta morrendo ao subsumir-se ao todo, por imitação. Há, ainda, o jogo de aparecer e ocultar-se.
Mas passemos ao senão final que me parece ser o mais importante. Cacciari dirá, em outro lugar neste texto, que é a classe média burguesa quem realiza este cálculo egoísta de preservação por subsunção. A classe média burguesa quem quer a ordem e a repetição como o que lhe garantirá a parcela da riqueza. A ordem e a repetição da ordem lhe conferem o acesso aos recursos partilhados por todos, enquanto a desordem e o eventual promovem a dissolução neste cálculo do dinheiro.
Neste ponto lembrei-me de Michel Foucault, de Shoshana Zuboff e minha metáfora do trânsito. Foucault dirá o que Zuboff repetirá (ele ordenará a realidade e ela repetirá o ordenamento). Para Foucalt a burguesia ascendente logrou êxito ao agir fora da lei, isto é, percebeu os limites do ordenamento em cada época e para fora do ambiente legal operou com vantagens. Sobre o que a lei se cala não se estabelece a ilegalidade, mas a alegalidade. Para fora da lei toda atividade é legal. A burguesia agiu no espaço da ausência da lei até que seus negócios estivessem consolidados e a concorrência começasse a agir. Neste momento a lei coibiu ou dificultou a presença da concorrência, estabelecendo espaços de monopólio ou oligopólios. A mesma questão aponta Zuboff sobre o desenvolvimento das empresas de internet e o sequestro de dados e a manipulação e monetização da informação: está fora da lei.
Desta maneira, o dinheiro que é resultante da ordem e da repetição, do rito e do culto (em termos religiosos) é apenas o que estando em circulação, mantém a diversão, a festa da classe média. A canalização dos recursos de grande porte ocorrem no oculto da ausência de ordenamento e na novidade. O mesmo ocorre com o dinheiro do crime: que se faz na noite e na eventualidade imprevisível: o planejamento de um crime aumenta o risco de que seja desbaratado com antecedência pela inteligência policial.
Aristóteles dirá na Política que apenas os deuses e as bestas estão fora da ordem legal. Neste sentido, o dinheiro graúdo, os recursos de grande porte são a parte dos deuses ou dos demônios. À classe média burguesa cabe o sacrifício de si a fim de garantir esta ordem trágica, a qual há de satisfazer os bons deuses.
Cabe, por fim, salientar que esta classe média já não mais é como aquela do início do século XX, quando as teorias das massas se desenvolveram (citamos Canetti e Freud). Naquele momento a identidade dada pelo todo ao indivíduo realizava-se de modo totalitário, posto que o mecanicismo identitário encontrava-se em seu ápice. O indivíduo se identificava com uma Nacão, uma Raça, uma Classe, um Partido, etc., os quais definiam de uma vez por todas a cultura, a estética, a linguagem, o sentido, etc. De lá para cá a identidade não mais requer uma estética totalitária, mas determina-se por uma imitação mais sutil e calculista. A subsunção da parte ao todo não se dá do indivíduo ao um centro identificável, mas como que um elemento fluido que sofra a atração gravitacional de uma nuvem cujo centro não há. O indivíduo imita o simulacro de decisão, por meio do qual escolhe precariamente alternativas mutantes que o fazem se diluir por completo. O próprio “EU” é dissolvido: já não se pode falar de propriedade e de “EU”, pois estes apenas se dão como fragmentação e diluição na nuvem. Os inúmeros “eus” se dão num pulsar efêmeros e descentrados. A relação de identificação não é mais definitiva, mecânica e causal, antes, precária, probabilística e bayesiana-hermenêutica. Identificar-se é diluir-se, eis o cálculo definitivo.
Talvez possamos esperar a emergência de outro ser. Se em Aristóteles há os deuses e as bestas que estão fora da lei, enquanto os demais se subsumem na ordem e repetição, podemos esperar a emergência daqueles que pulsam na aparência da legalidade, enquanto tomem vias que, estando longe do olhar do todo, se encontrem em outros mundos possíveis.



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