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Ser e não ser, eis a identidade

  • Marcos Nicolini
  • Dec 20, 2016
  • 3 min read

Lembro de minha aula de história, quando o professor nos contava que no cerco a Constantinopla, no interior mais interior das fortificações, enquanto os soldados se matavam, e as mães cozinhavam seus filhos, os padres discutiam algo importante: “se uma

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mosca cair na água benta, o que há de ocorrer? A mosca se torna sagrada, ou a água se torna profana?”


Esta questão medieval nos coloca diante de um universo dicotomizado entre o sagrado e o profano. O mundo polarizado entre um lugar puro e outro impuro, entre um espaço do que é permanente e outro que é do mutante. Mas não é apenas isto, todo o cosmos era segregado entre civilizado e bárbaro, crente e pagão, nós e eles, verdade e mentira. A questão medieval sobre a mosca e a água não é trivial, ainda hoje. Foi posta por aqueles que se voltam contra os movimentos humanos na história, mas é a história que se está escrevendo quando a cidade cristã é invadida pelos muçulmanos.


Ademais, a questão da mosca e da égua pode ser colocada em outros termos: “a Cidade cristã ao ser invadida pelos muçulmanos deixará de ser santa, ou tornará os ímpios em santos?”


Este modo de pensar não era novidade. Agostinho já o havia pensado quando os bárbaros do norte invadiram Roma e estupraram as mulheres cristãs. Dizia o Bispo de Hipona que Deus restauraria das virgens a virgindade, ainda que os ímpios a tivessem violado. Poderíamos fazer chacotas de tal proposição, mas, com esta atitude mesquinha, deixaríamos de perceber a lógica que está inscrita nesta fala e a lógica que remanesce ainda hoje entre nós, de mesmo teor.


Este modo de pensar é obsoleto, mas permeia o pensamento ocidental. O pensamento de Marx, por exemplo, não apenas divide o cosmos entre proletariado e burguês, como diz que a classe operária é a que permanecerá, enquanto os burgueses se voltam ao consumo, ao que é devir. Em outros termos, entre um nós sagrado que permanece e um eles que é profano e que passará. A classe operária deve se manter incorrupta pelo capital, ainda que vive num mundo em degenerescência dominado pelo capital.


Mesmo que desconsiderarmos Marx e os marxistas, ainda não superamos esta metafísica dos costumes. Ainda perguntamos sobre a mosca na água, e o fazemos nos mesmos termos que os medievais em Constantinopla o fizeram. Perguntamos hoje sobre os imigrantes na Europa. Imigrantes muçulmanos. Nossa pergunta se coloca nos seguintes termos: a presença muçulmana na Europa tornará estes bárbaros em civilizados, ou barbarizará a Europa civilizada?


Continuamos a pensar como os antigos, por meio da mesma lógica excludente e dicotômica. Pensamos no sim e no não, no nós e no eles, no certo ou errado, no verdadeiro ou falso, no civilizado ou bárbaro, no bom ou mau. Pensamos em muros que mantém puro e sagrado o espaço interior, mesmo que no espaço exterior tudo seja corrupção. Pensamos em preservar incólume o que não é passível de conservação. A história humana é a história dos imprevistos e incontroláveis encontros entre diferentes, que resignificam o velho e fazem surgir algo não previsto.


A história não é o progresso do que há de permanecer e o abandono do que há de ser consumido pelo fogo do tempo. A história é a história do imprevisto e imprevisível, dos arranjos que são sim-e-não, sim-e-sim, não-e-não, e envolve a questão: “o que é isto que nem é sim e nem é não, mas inusitado?


A questão posta pela Europa não é a se devemos ou não fechar fronteiras a fim de preservar o que exigiu tanto esforço, talento e recurso, mas é a questão de um movimento de reconfiguração das relações de distância e proximidade, de reconhecimento e rearranjo de forças, de tradição e novidade. O fato é que o humano não existe sem as diferenças.

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