Sem religião e periferia: religiosidade auto-poiética.
- Marcos Nicolini
- Jan 22, 2017
- 20 min read
Updated: May 28, 2020
Dizem os estudiosos que algumas evidências apontam para o surgimento do Estado a cerca de 5.000 anos atrás. Podemos dizer que esta ordem social, a partir da centralização do poder e da coação, não é o resultado de uma necessidade natural, antes, de arranjos e experiências que se mostraram mais eficazes, isto é, conferiram aos humanos o poder de

proliferação e domínio sobre o não-humano. O Estado é a experiência conservadora por excelência. A eficácia aqui sinalizada toma referência na estabilidade social decorrente e na prevalência sobre outras formas de arranjos sociais, inclusive. O Estado não surgiu em todos os lugares do planeta, mas em determinadas áreas, e tal surgimento mostra-se como resultante de fatores específicos, fragmentados, e que promove a ampliação destes fatores.
Antes dos Estados a humanidade conheceu duas formas de ordem social prevalecentes: a nômade, dos caçadores-coletores, e a sedentária, dos agricultores. Ainda que possamos citar duas outras formas sociais: o pastoreio e a pesca. Os pastores, de certa maneira, misturavam elementos dos caçadores-coletores (a busca por pastos mais propícios que os colocava em movimento constante) com os dos agricultores (colonizavam e aculturavam animais, buscando espécies mais dóceis). Os pastores passaram a utilizar suas armas para proteção do rebanho, diante de predadores e salteadores. Os pescadores também misturavam elementos da caça (no caso, a pesca) com o sedentarismo dos agricultores (mantendo vilas mais ou menos estáveis). Os caçadores-coletores e os agricultores representam o extremo típico do nomadismo-sedentarismo.
Os primeiros grupos humanos eram caçadores-coletores, que na busca de fontes de alimentos, foram ocupando o planeta a partir da África, chegando na Austrália, ilhas do Pacífico e Terra do Fogo. Havia pouco conflito entre os grupos nômades, por haver terras e víveres em abundância. Era mais fácil e seguro evitar o conflito e migrar. Por outro lado, a dieta destes grupos era muito rica, pois tanto viviam da caça, quanto da diversidade de frutos da terra. Estes grupos habitaram o planeta, com pouca diferenciação entre eles, no que tange à ordem social e tal homogeneidade prevaleceu de 250.000 a.C. até 28.000 a.C., aproximadamente. A questão territorial era pouco importante para os caçadores-coletores, à medida que a terra ainda não estava amplamente habitada pelos humanos. Também devemos salientar que tais grupos eram compostos por poucas dezenas de indivíduos, pois a relação entre população e víveres impunha limites à população grupal, tendo em vista as técnicas (dispositivos e estratégias) de caça utilizadas.
Por volta de 30.000 anos atrás, alguns grupos pararam de migrar em busca de caça e frutos coletáveis, e fixaram-se em vilas, obtendo o sustento no cultivo, por meio da agricultura. A prática, feminina, de busca de frutos propícios, foram se transformando em habilidades de seleção de sementes para plantio. As habilidades de caça foram transformadas em habilidades propícias à agricultura, as cabanas foram transformadas em casas, a ordem social fixada a partir do masculino passou a ser fixada no feminino, uma ordem no universo passou a ser buscada, visando os ciclos da terra, etc. As disposições para o conhecimento e aprimoramento de técnicas de caça foram aplicadas no conhecimento do mundo. Tem-se aqui as evidências do surgimento da religião, pois se verifica a existência de lugares de culto, de imagens de entidades cultuadas e símbolos religiosos, em torno da imagética feminina. Enquanto os grupos de caçadores-coletores expressavam religiosidade (crenças em seres e forças não materiais) sem religião (cultos, ritos e sacerdotes), as sociedades agrícolas tinham religião centrada no feminino. As sociedades dos agricultores do neolítico eram homogêneas, tanto quanto as de caçadores do paleolítico, embora substancialmente diferentes daquelas. Não há evidências de classes e grupos sociais no interior destas sociedades, ainda que houvesse diferenças funcionais entre homens e mulheres.
As aldeias e vilas mais antigas que se tem notícia estão no que hoje chamamos de Palestina e Turquia. A experiência de agrupamentos agrícolas se estendeu para o crescente fértil: desde o Eufrates e Tigre, até o Nilo. Esta nova maneira de organizar a sociedade mostrou-se mais eficiente do que a forma anterior, dos caçadores-coletores, permitindo a existência de grupos com mais indivíduos. No entanto, o surgimento dos agricultores não implicou no desaparecimento imediato dos caçadores-coletores. Por certo que ainda podemos, hoje, verificar a existência de grupos caçadores-coletores na América do Sul, na África, na Ásia e na Oceania.
Os grupos sedentários, mormente os agricultores, estabeleceram uma relação mais estrita entre um território e uma população, a partir de uma dada tecnológica de produção de alimentos. Precisamos notar que enquanto os caçadores-coletores viviam de seu contínuo movimento em busca de víveres, os quais haveriam de permitir a manutenção de seus grupos, compostos por um pequeno número de indivíduos, os agricultores estabeleciam uma relação entre a extensão das terras agriculturáveis e o número de indivíduos aptos para o trabalho. Uma nova tecnologia estava imbricada com uma nova ordem social. A geração de excedentes no campo era acompanhada de crescimento populacional, assim como a escassez (em virtude do clima ou esgotamento da terra) implicava na redução do grupo. Os excedentes não serviam para alimentar classes não produtivas, mas favoreciam o crescimento populacional. Haveremos de notar que os grupos sedentários tinham, porém, uma dieta muito mais pobre do que a dos nômades, pois aqueles baseavam-se na monocultura.
A mudança da ordem social que se verifica na passagem dos grupos de caçadores-coletores, para os de agricultores está imbricada com uma mudança de tecnologia: das técnicas e instrumentos de caça (que são similares às da guerra) associadas ao nomadismo e busca constante de novos territórios de caças, para as técnicas e instrumentos da agricultura, associados ao sedentarismo e a colonização de sementes e gado. Houve um salto tecnológico que levou 250.000 anos para ocorrer. Uma vez que ocorreu, a relação terra-população-tecnologia foi completamente reconfigurada, permitindo novas exigências religiosas, de conhecimento sobre o mundo e de uma nova ordem social. Contudo, grupos de caçadores-coletores habitavam o mesmo planeta, no mesmo tempo que viviam os agricultores.
Por volta de 8.000 anos atrás o planeta conheceu mais uma era glacial, fazendo com que vastos campos de caça se transformassem em geleiras. Este fato empurrou os grupos de caçadores-coletores para bem perto dos agricultores, os quais habitavam áreas mais quentes no planeta. Assim, grupos hábeis em técnicas de caça e com dispositivos de guerra mais apropriados, passaram a atacar os grupos sedentários, visando obter subsistência. A proximidade entre grupos heterogêneos produziu a expropriação de bens e víveres por parte dos caçadores. Os agricultores, sedentários, não possuíam as habilidades, técnicas e dispositivos para fazer frente aos caçadores, enquanto estes estavam passando fome. Não me parece implausível que em algumas comunidades estes dois grupos tenham encontrado uma forma de convivência apaziguadora: os caçadores ofereceriam proteção e segurança contra outros grupos e contra predadores naturais, enquanto os agricultores lhes ofereceriam os alimentos. As sociedade homogêneas e simples, tornaram-se complexas e divididas, ainda mais, hierarquizadas. As funções sociais segregadas entre masculinas e femininas, tornaram-se segregadas entre produção e guarda. Esta nova ordem social não resultou de mudanças tecnológicas, mas de fatores externos (clima) e complexidade social: presença de duas culturas em um mesmo espaço.
Neste novo arranjo, os excedentes do cultivo da terra serviriam para alimentar o grupo de guerreiros, o qual estaria comprometido com a proteção da cidade. Se de um lado as cidades se armam contra os inimigos externos (grupos nômades salteadores e predadores), também se vê tencionada por culturas milenares díspares, regidas por princípios antagônicos: masculino e feminino. Há em diversas culturas espalhadas no planeta evidências desta tensão entre o princípio feminino e o masculino. Não apenas na Grécia, onde Gaia (feminino) e Uranos (masculino) travam uma guerra cósmica, como entre os aborígenes sul-americanos o princípio masculino é tomado (traduzindo para nossos termos) como civilizado e o princípio feminino como o bárbaro.
Por volta de 5.000 atrás consolidou-se, em alguns lugares, a dicotomia: uma fortaleza central na cidade, ocupada por guerreiros, circundada por trabalhadores que produziam excedentes de víveres e produziam ferramentas. A elite guerreira era proprietária de bens e do castelo, enquanto os trabalhadores nada possuíam a não ser o dever de produzir. A cidade como lugar da cultura e o campo como o espaço bárbaro. Esta é a possível e plausível gênesis da cidade-Estado. O Estado surge quando as sociedades se tornam complexas e heterogêneas, dicotomizadas entre elites guerreiras e periferias produtoras de excedentes. No entanto, o Estado move-se no sentido de homogeneizar a sociedade a partir de um princípio ordenador único, obliterando a complexidade em prol da uniformidade.
Se a agricultura e o sedentarismo significou um avanço tecnológico que permitiu que os grupos humanos se tornassem mais numerosos, a irrigação foi outro passo gigantesco. As cidades-Estados que deram este salto tecnológico conseguiram, com a mesma força de trabalho humano, ampliar a área agriculturável, produzindo mais, afastando-se de rios e lagos, cultivando áreas mais internas. Este excedente adicional permitiu tanto ampliar o número de trabalhadores, quanto o número de guerreiros.
Outra questão importante é que a ampliação das áreas de cultivo e pastoreio, com o concomitante aumento populacional, implicou no contato entre cidades-Estados, até então separadas. Quanto mais densa uma determinada região, mais aproximaram-se os territórios antes separados, até que as fronteiras colidissem e aumentasse a probabilidade de conflitos entre cidades-Estados. O contato entre elas significou o contato das fronteiras e a consequente limitação territorial, que acompanhada de crescimento populacional implicou em fome e desordem social. Se, para uma dada tecnologia, a produção de excedentes é função da quantidade de trabalhadores e da extensão das terras agriculturáveis, os limites dados pelo contato de fronteiras estabeleceu limites e fronteiras aos guerreiros, até então desconhecedores de limites territoriais. O limite territorial produziu limites populacionais, mas, antes, produziu fome e desordem.
Cada cidade-Estado, contava com seu monarca (mais de que um poder unificado em um indivíduo, como, ainda mais, um indivíduo representando o princípio de unidade vital da cidade-Estado), com seus guerreiros e com seus trabalhadores. O monarca era o guerreiro de guerreiros. Neste sentido, a cidade-Estado era polarizada entre guerreiros e produtores de excedentes, entre os que possuíam um reino e os que nada possuíam, a não ser a força de trabalho. Mais ainda, entre aqueles que representavam a civilização (a fonte de poder e ordem social) e os que nada possuíam além da força de trabalho, ditos bárbaros; entre aqueles que faziam guerra e cultuavam os heróis e os deuses, e aqueles que trabalhavam a terra que não lhes pertencia; entre os que guardavam o princípio masculino da guerra e os que guardavam os princípios femininos da produção. As cidades-Estados surgem sob a égide das tensões internas e da expansão contínua dos limites. O ideal último do Estado é o Estado-global.
A legitimação do poder ancorou-se na religião. Os caçadores, desprovidos de religião, agora como guerreiros da cidade-Estado, adotaram a religião dos agricultores. As deusas-mãe, de ancas largas e peitos enormes, geradoras da vida e ligadas à terra, foram substituídas por deuses da guerra, que na Grécia antiga tiveram por nomes Zeus, Apolo, Atenas, etc., habitantes dos altos montes e lugares inacessíveis. Os guerreiros do passado se tornaram os deuses do presente, num sincretismo entre religião dos agricultores e culto dos antepassados dos guerreiros. Os trabalhadores viram sua religião ser redescrita com a finalidade de legitimar o poder do Estado.
O Estado pode ser entendido, então, como este ente que introduz a segregação, a dissimetria, que se apropria dos bens de capital e simbólicos dos outros a fim de legitimar um poder que vem de fora, visando homogeneizar a sociedade a partir do lugar central do poder. Há 8.000 anos um poder estrangeiro se instaura na cidade, marcando-a com uma diferença dissimétrica, e há 5.000 se consolida como o poder que estabelece o domínio de uns poucos sobre muitos, apropriando-se dos valores materiais e simbólicos daqueles, que de agora em diante diz pertencer aos dominadores. A apropriação da cultura feminina (da religião), torna-a útil à legitimação da dominação masculina estruturada como Estado.
Para além destas violentas relações entre culturas distintas, que resultou na apropriação dos bens e valores, materiais e simbólicos, por parte dos guerreiros sobre os agricultores, a ampliação das fronteiras locais em regiões de alta densidade demográfica, produziu, como dissemos, contato entre elas. O contato entre cidades-Estados limitou o crescimento de cada uma delas, levando-as a conflitos internos e guerras entre elas. A guerra entre cidades-Estados logo deixou de ser o extermínio do vencido, para se tornar a escravização dos derrotados. A passagem do extermínio para a escravização responde à relação território-população a fim de produzir excedentes. O extermínio dos trabalhadores implicava na conquista de território sem ter quem trabalhasse nele. A escravização das populações garantiria a ampliação de excedentes.
Por conta desta premissa econômica que as cidades-Estados vitoriosas se tornaram impérios: dada uma tecnologia, amplia-se a produção de excedentes ampliando o território agriculturável e a população de trabalhadores. Os impérios, como os Medas, Persas, Babilônicos, Egípcios, etc., resultam da expansão contínua de cidades-Estados, que ampliam suas fronteiras sobre seus vizinhos, e se apropriando dos excedentes da produção. As condições de possibilidade de expansão dos Impérios estava limitada pelas tecnologias de alcance físico do poder. As fronteiras estatais se tornavam, crescentemente, vulneráveis à medida que o território se expandia para longe do centro imperial.
Diante de uma tecnologia estável, a relação território-população é responsável pelo crescimento de excedentes. Ampliar território requer maior população, a fim de garantir a subsistência de um exército maior. Quando a tecnologia passa a ser dominada pela população, ou, prescinde da população civil, vemos a guerra assassinar os civis. A expansão da guerra para o espaço do assassinato de não-soldados traz consigo a ideia de que os civis colaboram com os exércitos, produzindo tecnologia bélica. Mas, durante séculos, milênios, as guerras se limitaram a fazer dos não guerreiras, escravos.
Uma vez que a tecnologia de produção agrícola se manteve estável, ao longo de séculos, desde a origem do Estado, foi preciso introduzir técnicas mais eficazes na arte da guerra, a fim de impedir a desordem interna e garantir a vitória sobre os vizinhos. Os hoplitas e as falanges gregas, as hierarquias militares e as estradas romanas, foram incrementos tecnológicos que garantiram a ampliação do poder de conquista de territórios e produção de escravos. Não apenas na Europa se verifica tal fenômeno, mas vemo-lo nos Astecas, Maias e Incas, também. Os grandes impérios ocorreram em regiões com alta densidade humana, com vastas áreas agriculturáveis e organizações sociais guerreiras.
O Estado surge pela presença, na vila de agricultores, de guerreiros que antes eram caçadores. O Império surge da apropriação de territórios e de populações escravas de cidades-Estados vizinhas, com exércitos menores ou que utilizam técnicas de guerras mais rudimentares. Um Estado exige um poder central, uma ordem garantida por um corpo de guerreiros e uma população que produz excessos e que tem tal adicional apropriado pela elite central. O Estado surge de uma violência primordial, há 5.000 anos atrás, e continua a ser mantido pela mesma violência. Não é nem a religião e nem a produção de excedentes que produz o Estado, mas a presença de culturas antagônicas, que conduz a uma dissimetria entre produtores e apropriadores, e da disposição dos guerreiros em expandir seus domínios e obter excedentes cada vez maiores. A vitalidade do Estado está em apropriar-se dos bens materiais e simbólicos dos produtores.
O centro do poder se autodenomina cultura, ou civilização, enquanto, apontando para a periferia, chama-a de barbárie. Os bárbaros estão ligados à produção de excedentes enquanto trabalham a terra, e os civilizados são os que contemplam as estrelas e se voltam para a eternidade do poder, o futuro. O binômio macho-fêmea, caçador-agricultor, guerreiro-trabalhador, cidade-campo, está no fundamento desta metafísica genética do Estado. A presença de culturas distintas, com a consequente hierarquização da sociedade, com a prevalência dos klerós sobre os laikós, dos que herdam sobre os despossuídos é o fundamento oculto da metafísica. É o “aristos” de Aristó-teles que segura sua caneta quando diz que o zoo-polítikós (o homem político, o cidadão por excelência, o civilizado) é o aristocrata grego, o homem livre e que não precisa realizar trabalhos manuais, enquanto o doulos (o escravo) o é por natureza. O fundamento da metafísica é a relação binária e hierárquica entre cidadão e escravo, entre aquele que se volta para as coisas eternas e duradouras, e o que se mantém vinculado com o consumo.
Pelo tempo em que perdurou a estabilidade tecnológica, a relação território-população centrada num monarca foi mantida, com exceção na “Era das trevas”, em que o poder se fragmentou na Europa. A fragmentação do poder que perdurou do século VI ao século XI, foi revertida a partir do século XII, quando os reis passaram a agir no sentido da centralização do poder. O poder soberano desce do céu (deus) e passa a ser corporificado no monarca. A gênese do Estado-nação moderno se dá neste movimento centrípeto exercido pelo poder soberano monárquico, atualizando a gêneses latente. Se na antiguidade havia o rei-deus, agora o rei é determinado por Deus.
O poder monárquico e soberano lança os fundamentos do Estado-nação moderno, definindo fronteiras nacionais ampliativas, controlando uma população e os recursos naturais, a partir de leis e de um corpo policial. A estrutura legal e coativa, atrelados aos controles populacionais e de recursos naturais, exigiu algo a mais: uma burocracia estatal eficiente. A burocracia estatal vai, paulatinamente, tornando o rei menos necessário a este novo cosmos estatal. A eficiência da burocracia faz o Estado prescindir do monarca. O monarca que era o proprietário de tudo, território e população, é privatizado crescentemente, enquanto a burocracia (governo) passa a administrar os bens públicos, estes que são segregados dos bens privados da coroa.
Digno de nota, também, é que na Idade Média tardia e no início da monarquia absolutista podemos ouvir do centro do poder que “la loi c’est moi”, como dirá o rei da França, mais tarde. Mas a lei dos monarcas não correspondia à máxima moderna (e grega) de que o homem é a medida de todas as coisas. A Lei que rege as relações entre os homens (do rei) haveria de se fundamentar na Lei Natural, está que se fundava na Lei Revelada (Escrituras Sagradas Cristãs), a qual revelava a Lei de Deus. O rei não gerava leis, não era ele o originador de leis, pois estas eram feitas por Deus, reveladas na Bíblia, manifestas na Natureza e traduzidas, interpretadas pelo Monarca. O rei era o escolhido por Deus para ser um intérprete de suas Leis, as quais deveriam reger os homens. O Rei não era um Legislador, mas um intérprete das Leis dadas pelo Legislador Eterno. Para os medievais não havia um Licurgo, um Legislador de onde a Constituição seria originária. O Criador era o princípio da ordem e da lei, e o monarca seu servo.
O poder monárquico entra em colapso quando o Ocidente percebe que assim como se pode alterar uma população e um território, visando ampliar excedentes para sustentar o Estado e suas elites, também a tecnologia é mutável e pode ampliar ainda mais os excedentes. Quando o Ocidente passa a investir nas mudanças tecnológicas (saber é poder), as sociedade que até então se diferenciavam em termos de amplitude territorial e população, passaram a se diferenciar drasticamente quanto ao capital tecnológico. A tecnologia permitiu que a partir de força de trabalho humana cada vez menor e com territórios limitados, algumas nações pudessem prevalecer sobre outras que tinham populações muito maiores e vastos territórios, conforme podemos notar no caso da Inglaterra e a Índia, ou a China. Na modernidade já não era apenas as técnicas de guerra, como as gregas e romanas, que faziam diferença entre nações, mas as técnicas de produção de excedentes.
O trinômio território (recursos naturais), população (força de trabalho) e tecnologia tornou-se, no todo e nas partes, mutável. O arranjo não mais era binomial, território-população, para determinação de excedentes, mas trinomial: território-população-tecnologia. O Estado, isto é, as relações dissimétricas entre klerós (aqueles que são proprietários) e laikós (os que não têm propriedades, mas são os produtores de excedentes), entre os que detém o poder e os que realizam as atividades produtivas, é questionado em sua forma tradicional de impor-se como natureza ou desígnio. O outro trinômio, monarca-guerreiros-trabalhadores é, igualmente, questionado. A ideia de uma monarquia, ou, uma ordem política em que monarca e guerreiros dominam os trabalhadores é posta em questão pela tecnologia.
Devemos lembrar que as três ordens medievais: os oratores (os sacerdotes), os belatores (os nobres) e os laboratores (os trabalhadores). Enquanto os sacerdotes e a nobreza herdavam de Deus os bens simbólicos e materiais, os trabalhadores não herdavam nada, apenas produziam. Isto é, enquanto os sacerdotes e os nobres eram Klerós (herdeiros de bens), os trabalhadores eram Laikós (os sem herança). A Revolução Francesa, marco da transição do regime monárquico absolutista, para o republicano, na Europa, foi um movimento laico contra o clero, dos que nada tinham contra os que detinham as propriedades simbólicas e materiais: o sacerdócio e a nobreza. Foi uma revolução dos bárbaros contra a civilização, que novamente foi colonizada por um novo clero que barbarizou os laicos que a produziu. Era uma revolução dos que sabiam fazer, contra os que consumiam os excedentes.
A tecnologia, entendida como saber fazer, em constante transformação que altera a eficiência e produtividade do binômio recursos naturais e humanidade, faz deslocar o poder para o indivíduo que conhece e produz técnicas. Se antes da modernidade as técnicas para a produção de excedentes se transformavam mais lentamente, permitindo que pensássemos na relação território-população sem salienta-las, com a modernidade a relação binária se torna um trilema, uma equação que exige a consideração tecnológica. Além disto, as diferenças entre Estados que eram determinadas pelo território e população, agora se fazem pelas tecnologias aplicadas tanto à produção de excedentes, quanto às aplicadas ao Estado, isto é, a racionalidade instrumental da burocracia, da produção e da vida.
A monarquia (o regime do kléros) colapsa diante da democracia (o regime do laikós), quando a posse de territórios, de meios materiais e de armas, já não mais garantem a detenção do poder. O poder transita territorialmente e permeia populações até então separadas geograficamente e historicamente. A tecnologia fragmenta o poder e o coloca próximo àqueles que antes não o detinham. O poder não é mais exercido desde o proprietário da terra sobre os trabalhadores, mas o terceiro elemento posto a operar nesta equação desequilibra o poder-propriedade.
Lembremos que o Estado surge da convivência entre caçadores e agricultores, que determina uma relação de dominação exercida pelo monarca e os guerreiros, sobre os trabalhadores. Esta relação de dominação interna permite uma correlação entre território e população, dada uma tecnologia constante de produção. Estas relações trinomiais podem ser percebidas de maneira binária, que conduz a uma metafísica que segrega a civilização e a barbárie, nós (que envolve o vós) e eles (o terceiro excluído), o que é eterno e o que é consumo. Na Idade Média a ordem social manteve a metafísica de fundo trinitarista, onde os sacerdotes e os nobres compunham o grupo social detentor das heranças divinas (possuindo os bens simbólicos e materiais) e os trabalhadores despossuídos de heranças (laicos), que deveriam produzir excedentes. A modernidade ao dinamizar as tecnologias faz romper com o binarismo, complexificando as relações e exigindo novos arranjos sociais.
O conhecimento produz um certo tipo de propriedade, chamemos de intelectual, que prescinde do território. Aqui devemos lembrar a emergência de uma nova burguesia, cuja riqueza não está atrelada ao agronegócio, nem à mineração e ao petróleo, ou às indústrias mecânicas, elétricas, químicas, etc., mas à indústria do software, à propriedade dos meios de produção intelectual. Os dispositivos tecnológicos e os humanos estabelecem relações precárias (pois as técnicas e os saberes mudam constantemente), as quais põem em questão as identidades tradicionais: aquelas que vinculam o indivíduo às tradições de um povo imbricados com seu território. A relação exclusivamente binária entre território e população, que se vinculava a um espaço homogêneo e permanente que imputava identidades a partir das heranças institucionais dadas por um poder central, se vê ameaçado pela presença de tecnologias sempre em mutação e que desvincula o indivíduo do território.
Se as antigas identidades se fundavam numa metafísica que segregava o klerós (sacerdotes e nobres) e o laikós (trabalhadores), tendo em vista a constância tecnológica que vinculava uma população ao espaço fixo e fechado do território, a dinâmica tecnológica flexibiliza e abre os territórios, enquanto torna questionável a identidade igualmente fixa e fechada dada pelas tradições determinadas pela relação binária território-população. Os indivíduos, proprietários intelectuais, passam a questionar, a estabelecer uma relação crítica das heranças tradicionais, das identidades heterônomas imputadas pela relação fixa e fechada dada pela relação território e população.
Contudo as identidades, que antes eram estabelecidas por relações binárias (território-população, civilizado-bárbaro, nós-eles, eterno-mutante, masculino-feminino, etc.) não se deslocam para um novo binarismo: indivíduo-tecnologia. Antes, que reconhecem relações complexas em que a fixidez e o fechamento cedem lugar à flexibilidade e a abertura à pluralidade. Ainda mais, em que os indivíduos se conferem o direito de criticar reflexivamente as imputações heterônomas que o Estado e que a burguesia pretendem estabelecer sobre eles.
Antes, porém, de pensarmos nas identidades individuais resultante da crítica reflexiva, tomemos, de passagem, a outra via resultante da crítica da relação bipolar território-população. Percebemos que as mudanças na tecnologia alteraram a constância sobre a qual repousava o Estado-nação e sua soberania. O Estado-nação pensado a partir de um território, uma população, controles de recursos e pessoas (por meio de uma burocracia), conjunto normativo (leis positivas) e dispositivos de coação (polícia). O Estado-nação como o empreendimento que detém a exclusividade, num território e sobre uma população, do uso da violência legítima. Tal Estado-nação é secular, isto é, apropria-se dos bens religião, imputando-lhes uso secular. A secularização do poder político é menos um movimento de apagamento do sagrado, pela via de sua transcendência radial, e pode ser pensado mais como um movimento de imanência radical do sagrado. A secularização realiza um movimento de homogeneização social a partir da eliminação do religioso do espaço público e pela determinação de uma razão soberana.
O Deus sive Natura torna-se o Deus sive Res-Pública e surge imanente como um Leviatã, ou como soberania popular: a voz de Deus é a voz do povo. O Estado-nação secular cumpre o papel de homogeneizador das identidades nacionais, fechadas e fixadas, com o suporte religioso, ainda que nem sempre da Religião. A identidade dos indivíduos dentro das fronteiras nacionais passa por uma padronagem, um conhecimento, uma identificação e um estilo de vida reprodutivo do padrão. O Estado-nação secular atualiza o Estado forjado no encontro entre caçadores e agricultores, mantendo a metafísica que separa dominadores e dominados, civilizado e bárbaros, klerós e laikós, os herdeiros do poder e a periferia. Contudo, não nos esqueçamos que as mudanças tecnológicas minam os fundamentos do Estado, inclusive o secular, com o reforço não apenas da democracia, como também da burguesia.
Na esteira da flexibilização dos territórios, são estabelecidos fluxos de bens e pessoas, este que passamos a chamar de globalização. A burguesia que tem sua gênese à sombra da monarquia absolutista ocidental, vale-se deste regime para consolidar-se e expandir-se globalmente, valendo-se do apoio bélico para fincar pé em outros países. No entanto, será a mesma burguesia que contribuirá, também, para o fim do ancién regime. Uma vez atuante globalmente, os detentores dos meios de produção, privatizados, buscam homogeneizar métodos e hábitos produtivos. Enquanto os Estados-nação buscam homogeneizar culturas locais, no interior de suas fronteiras nacionais, o Capitalismo Global busca homogeneizar os métodos e hábitos de produção. Os indivíduos passam a estar sujeitos a dois regimes de homogenia: local, dado pela relação território-população, e global, dado pela relação tecnologia-população. Os indivíduos estão assujeitados a uma dupla identificação: local e global, uma cultural e outra produtiva.
No entanto, as novas tecnologias e os movimentos determinados pela modernidade, de crítica das tradições e a sinalização da autonomia e autarquia do sujeito, ativam nos indivíduos a liberdade de crítica reflexiva. Os indivíduos passam a criticar as identidades heterônomas determinadas pela ação exclusiva de agentes externos. Se antes a religião e os nobres determinavam a identidade dos indivíduos, mais adiante tais identidades se tornaram imputadas pelo Estado-nação, até que a Globalização viesse a impor outra identidade, global, agora, porém, os indivíduos assumem o núcleo duro do discurso moderno: a liberdade de determinar-se diante do outro. A democracia social surge como a crítica reflexiva das identidades heterônomas, isto é, determinadas por agentes externos que detém o direito exclusivo desta impostura.
Do trilema moderno, “Território-População-Tecnologia”, passamos ao trilema “Estado-nação-Globalização-Democracia-social”. A diversidade de estilos de vida, a pluralidade de escolhas que não mais se restringem a binômios tradicionais, se articulam em reflexibilidade crítica na composição de identidades individualizadas, as quais criticam tanto as identidades tradicionais dadas no interior do Estado-nação (e as culturas locais atreladas à religião), como criticam as identidades determinadas pela utilidade produtiva. Identidades que não se submetem, sem crítica, à secularização imposta pela racionalidade instrumental, e nem se submetem, sem crítica, aos dogmas e doutrinas religiosas com seus nominalismos. A democracia social, por sua vez, não se desterritorializa e nem nega sua internacionalização. Em termos de experiência religiosa, são aqueles que creem sem pertencer, que são poetas de si mesmos, que compõem suas preferencias de crenças tanto por escolha voluntária, quanto diante de suas comunidades.
Não é pouco dizermos que hoje é possível perceber movimentos antidemocráticos que são provenientes dos novos klerós. Os neo-klerós, os herdeiros do Estado-nação, a nova elite política, e os herdeiros da Globalização, a nova elite econômica, dão sinais de uma aproximação que aponta para a redução ou eclipsamento da democracia social, isto é, uma estética democrática que apenas legitime as relações dissimétricas entre elites e laicos, uma forma atualizada do Estado de 5.000 anos atrás. Os nacionalismos e os populismos, associam-se com os neoliberais, neste embate contra uma democracia social, de viés cosmopolita.
No que tange aos sem religião, aqueles que se autodeclaram crer sem pertencer, os antidemocráticos questionam a reflexibilidade crítica que move o indivíduo para a identidade de si a partir de escolhas voluntárias diante das possibilidades dadas socialmente. O embate em torno dos sem religião se coloca no embate entre heteronomia (local, dada pelo Estado e Religião, e global, dada pelo Capitalismo) e auto-identificação, dada pela reflexibilidade crítica de viés cosmopolita. Em outros termos, se a religiosidade implica necessariamente em religião, ou se a religiosidade pode se valer das escolhas individuais por identidades buscadas diante da pluralidade social. Ou ainda, se o indivíduo requer tutela, quer do Estado, quer da Religião, quer da utilidade produtiva, ou se o indivíduo é igualmente competente para determinar-se numa auto-poiesis. Estaríamos diante de um embate entre a tradição milenar, sempre atualizada, de uma dissimetria que legitima a tutela, e a possibilidade de uma democracia cosmopolita em que se pressupõe uma igualdade na liberdade.
Embora possa parecer que a presente digressão seja extremamente longa e especulativa, permite-nos, no entanto, recompor a questão das condições de possibilidade dos sem religião na modernidade tardia vis a vis com as dissimetrias e legitimações de dominações culturais, além de política e econômica. Os sem religião como objeto de estudo passa pela autodeterminação daqueles que se auto-identificam como tal. Mas longe de ser uma escolha arbitrária destes indivíduos, ou reativa (como muitas vezes o ateísmo foi acusado), parece-nos que é um movimento crítico que coloca em questão os críticos da auto-poiética, inclusive da religiosidade. Os sem religião se apropriam dos discursos modernos sobre autonomia, liberdade e igualdade, e ousam estabelecer uma democracia social cosmopolita. Esta ação de indivíduos laicos questiona a heteronomia imputada pelo klerós, as elites culturais locais e globais. Há algo moderno na modernidade que leva à sério suas proposições, e tal é a auto-poesis laica daqueles que configuram suas identidades a partir da crença no indivíduo livre, igual e fraterno. Um movimento plural e diverso, que escorre nas sombras do Estado e do Capital, que apreende a pluralidade, a flexibilidade e a abertura.



Comments