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Secularismo e Laicidade: Iconolatras e iconoclastas

  • Marcos Nicolini
  • Jun 16, 2020
  • 7 min read

Num mundo dual, do falso e verdadeiro, do bem e do mal, do nós e do eles, e tantos outros dualismos metafísicos, lógicos, a iconolatria é confrontada com a postura iconoclasta. A

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adoração, a veneração, a honorabilidade a um ícone, a uma estátua é contraposta a seu desrespeito, sua confrontação, sua destruição. Parece-nos que o Cristianismo Neoplatônico tem muito a haver com isto. Um pouco mais atrás, Platão, e seu "ódio" aos poetas seria o pai destas coisas. Mas o Velho Testamento também traz este elemento iconoclasta.


A iconolatria, por sua vez, tem a ver com o paganismo, de um lado e o Catolicismo Medieval, de outro. A veneração aos santos que, parece-nos, evoluiu de uma pedagogia estética, para um respeito aos santos, até chegar a uma veneração a um meio mais próximo de acesso ao divino oculto e inapreensível. Pesa a favor do cristianismo o Paulo, dos Atos dos Apóstolos, que entre os deuses gregos, aponta para um memorial ao deus sem estátua e diz: o meu é este, agnostos Theos.


O Iluminismo, que nada cria e apenas metamorfoseia o cristianismo neoplatônico pelas lentes do secularismo, é tributário deste passado não exatamente glorioso. A guilhotina foi sua Optimum Opus, ao agir pela via iconoclasta. Mas, como os cristãos medievais, também levantaram ícones de sua pretensa excelência: uma religião civil calcada nos Gigantes. Não apenas estátuas de homens e mulheres com seus feitos, tipos por, memoráveis, como conceitos abstratos que demandavam fé, como os de Soberania, Razão, Estado, Classe, Raça, Nação, etc., os quais demoliam velhas crenças e erguiam outras em seus lugares. Este movimento de erguer novos templos sobre alicerces antigos, ocultados, mas necessários, chamou-se de secularismo: no lugar da Religião, o Materialismo. Mas, as sapatas do Materialismo, sua metafísica, é e continua sendo religiosa, isto é, iconolatra e iconoclasta.


Mas, à medida que uma palavra envelhece, se torna obsoleta, já não mais arregimenta ânimos, substitui-se por outra nova e que aponta para o mesmo desejo. O secularismo perdeu sua eficácia, exigindo aos arquitetos uma outra palavra que fizesse a mesma coisa: laïcité. O Laicismo, que é apenas um nome novo a um movimento obsoleto que se chamou secularismo, é a continuidade do Iluminismo por outros nomes. É a velha e inútil iconoclastia que deveria estar sepultada, mas tenta reviver sob o manto do ocultamento: a laicidade do Estado, multais mutandis, estado secularista.


A iconoclastia laica vem travestida de dois elementos: a desconstrução biográfica e a falácia que mistura Estado e Governo. Mas que, de fato, deseja apenas o monismo materialista como fundo metafísico ocultado. Se não entendermos o projeto Secularista-Iluminista, isto é, o Novo-Laicismo, não entenderemos o que querem este Engenheiros Sociais: o Monopólio da Verdade. O erro lógico é simples:


1 - Apregoou-se que a Religião, a qual era centro do cosmos, isto é, organizadora da vida, foi desalojada desse centro e passou a ocupar a periferia da Sociedade. Em outros termos, a Religião, que em tempos idos, fora o lugar de expressão do Significante Mestre, passou a ser um subconjunto da sociedade, uma expressão cultural da sociedade, que como tal, pode existir hoje, mas desaparecerá amanhã: sua morte pré-anunciada. Esta crença não verificável se tornou mantra entre os intelectuais secularistas.


2 - Num primeiro momento o centro deste cosmos (o cosmos político, diferentemente do universo das ciências da natureza, é fechado, limitado, organizado a partir de um centro) veio a ser ocupado pelo Estado Soberano (quero dizer, em termos institucionais, mas a articulação deste centro é um pouco mais complexa, abrangendo a Razão, o Sujeito e outros ícones). A produção do Estado Soberano (o poder soberano é a expressão da Razão da Sociedade, ou, commonwealth) vai de Maquiavel, Bodin, passando por Hobbes, Locke, Rousseau e Hegel (Marx era um niilista, nada produziu de concreto, apenas olhou para a Europa e disse: uma tormenta se aproxima da Europa e tudo o que é sólido se desmancha no ar). No século XX vimos o fruto do Estado Soberano: primeira e segunda Guerras Mundiais, além de todos os demais conflitos armados e o terror da Guerra Fria. O Estado Soberano realizou o seu fim, avant la lettre. Mas não conseguiu por fim à Religião, nem pela via niilista-marxista, nem pela via niilista-nazi-fascista e nem pela via das demais experiências políticas dos Estados Soberanos europeus. A religião estava fora do centro (ocupado pela Guerra, pela violência estatal), mas ainda estava viva.


3 - Terminada a segunda Guerra, um outro modelo de Estado emerge: a Democracia Liberal exportada pelos EUA, o grande vencedor daquela segunda Guerra. A Democracia Liberal se apoia nos pensamentos de Locke e Montesquieu. Para Locke, digamos assim, o centro do Estado é o Legislativo, este é formado por representantes, os quais, contrariamente ao representante hobbesiano que suprime os representados do poder político, o representante lockiano não tem voz ativa, apenas fala o que o representado diz para ele falar. Todos os poderes do Estado estão submetidos ao Legislativo (o poder supremo para Locke), formado pelos representantes e que representa as vozes das forças sociais: homens de negócios, homens do livro e clero. Montesquieu, por sua vez, percebeu que a sociedade não é homogênea e não se pode concebê-la sobre uma unidade metafísica qualquer que seja. A sociedade é múltipla, levada por diversos desejos e interesses conflituosos e inarmonizáveis. Assim, o Estado deve ser três espaços, suplementares e que regulam uns aos outros, chamados de pesos e contrapesos. A Democracia Liberal surge como um modelo de relativismo político, diametralmente oposto aos totalitarismos marxistas e nazi-fascistas, pois estes repousam sobre uma unidade metafísica (classe e raça), enquanto a Democracia flutua sobre a impossibilidade desta unidade última, deste Significante Mestre. Enquanto os totalitarismos são formas secularizadas de religião (e desta constatação a literatura é repleta), a Democracia Liberal separa a esfera civil e a religiosa, mas não exclui esta daquela. O Estado, no Legislativo, acolhe todas as vozes e negocia um estado de equilíbrio precário, o qual deve ser suplantado no debate público, segundo o jogo de forças sociais. Diferentemente de Marx, para quem a instabilidade é demolidora, e as contradições levam a um esgotamento, para o Democratas, a instabilidade gera as condições de possibilidade de arranjos mais sofisticados.


4 – Enquanto os modelos totalitários são religiosos, exigindo a iconoclastia para erguer uma nova iconolatria (veja Lenin na Praça Vermelha, Mao em Pequim, os tiranos da Coréia do Norte, etc. O que me lembra Heiddegger e seu círculo de descobrimento-recobrimento, filósofo este acusado de ser simpático ao nazismo), a Democracia Liberal é relativista e niilista por uma via construtiva (não nos esqueçamos que, de acordo com Nietzsche, o niilismo pode ser passivo -como em Marx – ou ativo, como penso ser a Democracia Liberal), isto é, adota o nada como não-fundamento, mas usa esta ausência de referência última para ampliar os acordos sociais, representando interesses. O Estado Liberal é Democrata, portanto, visa apenas normatizar o debate, a participação, a representatividade e os meios de obter-se acordos precários. A sua “neutralidade” é uma maneira de dizer que há de se ampliar as vozes e de permitir isonomia à fala daqueles que representam interesses e desejos, presentes na sociedade. A neutralidade não é exclusão de vozes que não estão sinérgicas com os interesses hegemônicos-totalitários, mas vias de inclusão. O Estado Liberal Democrata deve aprimorar as regras da participação, da publicidade das demandas sociais e regular as formas de acordos, de tal maneira a expandir esta participação pública das demandas. O estado deve garantir a fala pública, a publicidade dos interesses, e viabilizar a busca dos ajustes das demandas, possibilitando a tradução de demandas em acordos. A neutralidade, portanto, não visa a exclusão de agentes, atores sociais, mas a ampliação da visibilidade de cada vez mais atores. Os acordos serão alcançados no debate público, e não na redução das vozes, nas exclusões de interesses, no silêncio de oposições ou demandas não aceitáveis, na interdição da fala pública.


5 – Entramos, assim, no pseudo-paradoxo de certa forma de sociedade. Para tais, a saber, para os monistas-totalitários, ou, para os secularistas travestidos de laicistas, ou, para os que buscam hegemonia cultural, ou monopolização da fala politicamente correta. Por um lado, pregam, estes novos sacerdotes, que estamos em uma sociedade que adotou como regime político a Democracia Liberal; por outro lado, negam a Democracia Liberal, dizendo que algumas vozes não podem ter expressão pública, ou seja, cerceiam a palavra, que é outra maneira de assassinar, de matar, de agir iconolatricamente. Sua metafísica, em outras palavras, a sua essência religiosa exige a interdição da fala do outro. O viés anti-ético do secularista, ou seja, o laicista exige que apenas o eco de sua própria narrativa seja posta no jogo político. O paradoxo, no entanto, é falso, pois, de fato, tais não são Democratas Liberais, mas totalitaristas travestidos de democratas. Assim como usam o termo Laico para atualizar o conceito, obsoleto e inoperante, do secularismo, também usam o termo Democracia para atualizar o conceito de totalitarismo. As palavras e os conceitos tem valor e sua semântica tão somente são úteis na guerra política, portanto, flutuam no mesmo abismo vazio e destrutivo que flutuou o marxismo e o nazi-fascismo.


Hoje vemos proliferarem imagens daqueles que, negando-se a perceber as mudanças provenientes de um ambiente cosmopolita e democrático, preferem derrubar imagens a fim de erguer apenas e tão somente seus espelhos. O lugar da consternação decorrente da diferença, espaço da ética, é substituído pelo lugar da ausência da diferença, o lugar mesmo do niilismo político a que avizinhamos. Assim, podemos ser laicos como são estes destruidores do debate e impositores da monotonia, do monisto intelectual, que pretendem usar este signo como atualização anacrônica de um movimento que já exauriu suas forças no transcurso da história; ou, podemos aproveitar a oportunidade histórica e ampliar o debate, promovendo a diferença e acolhendo o inusitado e significar o Laico como uma força democrática, da diferença, da multiplicidade que exige acordos sobre as formas do debates e os modelos de ajustes de interesses e desejos. As estátuas que são derrubadas hoje podem servir para se produzirem armas amanhã.

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