O Muro e o Mural
- Marcos Nicolini
- Jan 27, 2017
- 3 min read
Uma das coisas que nossa modernidade produziu foi a ausência de memória, inclusive a de curto prazo. Ela não destruiu a memória, apenas produziu esquecimento. O termo moderno é isto: novo. A produção desenfreada do novo, como diriam os pós-modernos. É assim que

os pós-modernos se veem, radicais da modernidade. A produção e reprodução do novo até que a novidade seja envelhecida. Sabemos, de antemão, que o novo há de acontecer, e nisto não há novidade. Mas para não darmos o braço a torcer, isto é, para que a modernidade não abra um espaço para aqueles críticos que diriam que a novidade é tradição, ou, que percebam que o novo é como uma obra de Andy Warhol, apenas um colorido sobre a imagem reproduzida infinitas vezes, isto é, sob o pantone novo há a mesma imagem velha, produzimos o esquecimento. Lembramos de esquecer o velho que subjaz sobre os coloridos. Fazemos esquecer que a cor esconde o cinza que está ocultado.
Nenhuma obra de ficção, de distopia mais marcante do que o muro que se tornou mural. O muro que produz esquecimento obliterando o velho, reproduzido em sua monocromia, e o mural que salienta este horror, buscando a cor. O lado sombrio, mais escuro da razão, o sonho mais tenebroso da razão pariu os totalitarismos, em todos os seus tons de cinza. Quando usamos esta palavra, parece que estamos falando de milênios atrás, embora estejamos falando de Hobbes, Rousseau, Robespierre, Marx, Stalin, Hitler e Mao. Mas nada figura mais o terror do que o muro que se tornou mural: o muro de Berlin. Berlin é uma cidade singular que conheceu em pouco mais de meio século os dois totalitarismos mais ferozes que a Europa produziu: do nacional-socialismo e do marx-stalinismo. Mas é o muro que retrata melhor a produção de esquecimento.
Para impedir que os indivíduos fossem livres (se há algo que os totalitários odeiam é a liberdade individual), os arquitetos do horror ergueram um muro. Do lado oriental havia uma cerca, um campo minado e uma parede cinza, guardas que impediam que indivíduos chegassem próximos ao muro. O muro cinza era para ser visto e não para ser tocado. Havia de se passar rápido por ele, a fim de não ser seduzido pela liberdade. O medo do muro fazia esquecer o sonho da liberdade. Do lado ocidental o muro era ladeado por uma calçada, onde pessoas andavam, e de quando em quando, encostavam nele para conversar, para namorar, para fumar, para ler jornal, etc. Do lado oriental o muro era cinza como as paredes do Doria, do lado ocidental o muro era colorido como as obras dos grafiteiros e pichadores.
O colorido do muro de Berlin não escondia o horror totalitário e o ódio destes à liberdade, mas tomava livremente, com escárnio, o pesadelo produzido pela razão e fazia dele uma obra de arte. Uma obra anárquica, livre, sem autoria, sem sentido último, sem acabamento, sem unidade e totalidade. Rabiscos, cores, (in)formas, movimentos, expressões cotidianas e banais. O grafite e a pichação foram corroendo o concreto e o metálico, abrindo brechas e fendas, permitindo o olhar e a esperança, tornando indiferente o olhar cinzento do guarda que alvejava. A obra de arte do muro não escondia a violência, mas a exaltava com assombro, como quem dissesse: “olhem para este muro, pois ele é cinza sob as cores, como é cinza a violência.”
As cores sobre o cinza cumpriram seu destino: fazer cair a separação, desfazer a segregação, implodir a intolerância totalitária. Berlin amanheceu dançando sobre os escombros do cinza fúnebre que as cores salientavam. Contudo, quando o muro caiu, ergueu-se o esquecimento, nossa memória moderna tornou-se cinza com a monocromia da separação. A dança se tornou uma marcha militar, uma batida de pés nos chãos enegrecidos pelo óleo. Esquecemos que as paredes cinzas de nossas metrópoles escondem a produção do esquecimento das violências que nossa razão progressista produz. O progresso que levantou as cidades espelhos, que refletem os tons de cinzas dos concretos armados, é como obras de Warhol: tons de cinza sobre o mesmo muro cinza.
O horror que o cinza tem das cores, que sinalizam para a exigência reprodutiva de uma modernidade que produz esquecimentos. O horror cinza pinta de cinza as cores livres que jazem ocultas sob a monocromia. Os muros públicos tornam-se inacessíveis para os que andam, que devem passar rápido, ao largo, a fim de não se deixarem pecar pelo sonho livre das cores da liberdade. Doria pinta os muros da Res-Pública para nos lembrar de esquecer a inutilidade da produção anárquica e livre. Que as cores dos cidadãos tragam a lembrança renovada que podemos corroer a concretude da reprodução.



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