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O martírio e o capitalismo

  • Marcos Nicolini
  • Jun 20, 2017
  • 7 min read

No segundo século da era cristã, podemos dizer que não havia ainda o cristianismo, antes grupos que interpretavam o evangelho, os ditos de Jesus, também chamado de Cristo, por alguns. Não apenas havia grupos gnósticos, com crenças significativamente distintas

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daquelas que nos acostumamos a tomar como referência pela ortodoxia, mas interpretações sensivelmente diferentes entre aqueles que seriam determinantes na composição da ortodoxia.


Passa quase despercebido, para nós hoje, as tensões entre Tiago, Pedro e Paulo, assim como nos é difícil de perceber que havia um clero feminino, atuante, cujo signo pode se ter em Maria de Magdala. O texto conhecido como Atos dos Apóstolos nos dá mostras desta tensão entre os referidos líderes masculinos. Tiago liderava um grupo que podemos chamar de judaizantes, os quais acreditavam que Jesus pregava um retorno ao judaísmo mais puro, onde a Lei fosse restaurada em sua forma original. Pedro não era tão radical, mas tendia a um modelo mais normativo para as comunidades dos que seguiam os ensinos de Jesus.


Paulo, por sua vez, pregava uma secundarização da norma, da Lei. A Lei não salva, antes a Graça é salvadora, contudo, as comunidades apenas são possíveis com um código normativo (moral) que as mantenha coesas. Devemos viver como se...: “os que são casados, vivam como se não o fossem, os que são escravos, como se não o fossem...”.


Estas tensões refletem antigas tensões presentes no judaísmo em torno de crenças messiânicas, em torno do conflito entre sacerdotes e profetas, entre aqueles que aguardavam o Messias que restauraria o trono e a linhagem do Rei Davi, o Templo e a centralidade sacerdotal, e aqueles que aguardavam um Messias que instauraria um tempo novo. Para os profetas messiânicos o Messias faria sessar os sacrifícios, conforme podemos ler em Daniel, ou, como podemos ler em outro: “não me agrado em sacrifícios”. O advento do Messias para estes profetas faz com que não haja mais derramamento de sangue para haver remissão de pecados. Paulo e Tiago/Pedro, tipificam este confronto de extremos.


O que se buscou fazer nos próximos séculos foi garantir um afastamento dos textos de cunho gnóstico e uma harmonização dos textos que passamos a chamar de canônicos, entre eles as epístolas atribuídas a Tiago, a Pedro e a Paulo. Tal harmonização exige um trabalho intenso e inconcluso. Um exemplo que podemos citar destas diferenças intensas entre Paulo e Pedro está em suas referências quanto à ordem das comunidades locais.


Para Paulo a Graça está sobre a Lei, isto é, a ordem comunitária deve ser localizada por um sentido universal do amor, da koinonia: “todas as coisas me são lícitas, mas nem todas edificam...”. A Graça é inapreensível, enquanto eterna, a Lei, por sua vez, é factual e contingencial, mutante e temporal. Não há uma lei universal que nos salve, que nos dite regras as quais são provenientes de Deus, antes, a lei deve ter o sentido do reconhecimento amoroso do outro. Se olharmos para as epístolas atribuídas a Paulo, mormente Romanos, Coríntios e Efésios, perceberemos nesta uma ausência de modelo de organização uniforme, contudo, regida pelo apelo ao amor. As diversas listas de dons e como estes se arranjam nas comunidades, nos oferecem pistas desta heterogeneidade organizativa. O apelo de Paulo era para que as comunidades locais se organizassem a partir dos talentos e dons dos crentes locais postos em uso, sem referência a um modelo ideal, fixado, mas correspondentes aos arranjos locais e fundados no amor mútuo. Não há uma hierarquia fixa e verticalizada, mas uma ordem horizontal em que o Presbítero, superintendente atuava como alguém que impedia o caos, sem impor fórmulas.


Para entendermos, todavia, Pedro, devemos apelar para um de seus discípulos: o Bispo de Roma, Clemente. Após a morte dos primeiros discípulos de Jesus e dos líderes das igrejas do primeiro século, levantam-se os discípulos destes primeiros líderes. Pedro exerceu uma influência muito forte sobre a igreja de Roma e o texto gnóstico “Atos de Pedro”, se não garante a historicidade de seu martírio ali, aponta para a influência que este homem teve no imaginário daquela comunidade. Clemente romano seria discípulo direto de Pedro, vindo a ser o Bispo que sucedeu Pedro naquela comunidade cristã, no fim do primeiro século e início do segundo. Clemente tinha influência de Pedro e de Roma, e Pedro tinha influência de Tiago e certa nesga com Paulo, a qual podemos atestas no livro de Atos dos Apóstolos, na Epístola de Paulo aos Gálatas e na Epístola de Pedro.


Outra comunidade que foi influenciada por ambos os apóstolos foi aquela em Corinto. No início de uma de uma das epístolas de Paulo aos corintos, notamos a influência de Cevas, Apolo e Paulo, assim como de lideranças locais. Tão importante quanto esta multiplicidade de influências era a dinâmica de seus encontros, com a fala de diversos crentes que manifestavam dons e talentos múltiplos no ensino, na pregação, na profecia, na glossolalia, no canto, etc. Os presbíteros, como falamos, tinham a função de coordenar, e não de limitar ou excluir, esta multiplicidade. Paulo escreve uma epístola a fim de chamar a atenção desta comunidade para que a liberdade individual estivesse voltada para o comunitário, para a edificação de uma vida comum que levasse em conta a consciência dos mais vulneráveis. Paulo não apontava para uma hierarquia normativa, mas para a Graça amorosa que faz voltar o indivíduo ao acolhimento do outro.


Tiago, Pedro e Paulo morrem e em Roma, Clemente é Bispo e em Corinto a igreja reconhece outro Bispo local e, suponho, próximo a Clemente e a Pedro. O Bispo de Corinto passa a demandar uma relação de mando-obediência, normatizando e hierarquizando a igreja local. Dois jovens se levantam e reclamam a liberdade de crer e de expressar suas crenças, como nos dias em que aquela carta de Paulo fora escrita. Clemente romano escreve uma epístola à igreja de Corinto, com forte teor jurídico e normativo, apontando para a exigência de uma hierarquia de poder eclesiástico, utilizando-se de uma linguagem militar e fazendo recortes dos textos consagrados pela tradição judaico-cristã a fim de legitimar, antes, justificar e impor uma ordem eclesial proto-hierárquica.


A hierarquia da Igreja encontrará sua dogmática em Pseudo-Dinísio Areopagita, no texto, “A hierarquia celeste”, mas um passo decisivo para a instauração de uma comunidade fendida entre clero e leigos, entre Bispos e fiéis fora dada por Clemente. Antes, fora dada pela prevalência de Pedro sobre Paulo na estruturação e no ordenamento das igrejas. De Paulo o cristianismo herda a teologia, mas de Pedro/Tiago e dos Césares herda a hierarquia. A economia eclesiástica que fundará o Estado soberano moderno é lançada ali. A ideia de que o Rei reina mas não governa, isto é, que Deus é soberano, mas o governo dos homens é exercido por um corpo de burocratas, está posto. Em uma primeira vez no Ocidente o poder soberano transcende a imanência do governo dos homens.


Mas se o sentido da ordem está posto desta maneira, haveria outro movimento, assaz sutil, no entanto crucial para fazermos notar nossa ordem ocidental. O moderno da modernidade ainda há de ser pensado. É no martírio que, talvez, devêssemos pensar a fim de entendermos a questão do desejo e da satisfação no capitalismo contemporâneo, atual. A palavra mártir, em português, vem do grego ‘martyr’ que significa testemunha e, como a palavra em português nos permite ver, é aquele que foi testado e aprovado, é alguém que viu, mas não de maneira passiva, antes experimental. Há uma relação mimética no martírio, em que o indivíduo tendo atestado o martírio de seu mestre, aceita ser ele também martirizado a fim de ser exemplo testemunhal para a próxima geração. No livro de Atos dos Apóstolos lemos: “sereis minhas testemunhas”, isto é, vistes meu martírio, agora sereis mártires vós mesmos. A tensão messiânica que está presente no conflito entre Tiago e Paulo, representada na ordem eclesiástica, se faz notar também na questão do martírio. Mais uma vez quem pode nos servir de testemunha do martírio dos mestres são seus discípulos.


Antes, porém, notemos os relatos sobre o martírio de Paulo e de Pedro. O de Paulo nos é anunciado no livro de Atos. Este missionário apóstolo se esquiva frequentemente de seus perseguidores, escapando o quanto pode de seus algozes. Contudo, quando pego, apela para Roma e para lá é levado a fim de ser morto. O martírio de Paulo traduz a ideia do “como se não...”. Como se dissesse: “Serei martirizado, mas irei para Roma como se não o fosse, isto é, aproveitarei a oportunidade para estar como a igreja romana e nos edificarmos mutuamente. O martírio não é necessário, mas uma vez que se torna inevitável, aproveitarei da oportunidade para uma mútua edificação”. O chamado de Paulo estava imbricado com o martírio (lembramos da voz que lhe disse: “saberás o quanto importa padecer pelo meu nome”), segundo a narrativa de Lucas. Ainda que houvesse certo imperativo de sofrimento, não era este o sentido de sua obra, antes, movia-se contra aqueles que detinham o poder pelo medo imposto pela morte violenta.


O relato do martírio de Pedro podemos encontrar nos “Atos de Pedro”, um texto gnóstico. Segundo este “Atos”, Pedro dirigiu-se a Roma e se pôs a pregar. Muitas mulheres se tornaram seguidoras de Cristo, e, tendo em vista o teor gnóstico do texto, isto implicou em uma negação em cumprir seu papel de mulher, matrona, determinado pela cultura romana: negaram-se ao sexo. A uma mulher romana era imposto o sexo com seu marido a fim de lhe dar filhos romanos. Mas os gnósticos criam que a carne é má, assim como os desejos da carne são maus, desta maneira, tornar-se um crente implica em abandonar os desejos carnais, entre ele sexo: não ser eunuco, viver como se assim o fosse. Tal decisão das mulheres trouxe o ódio de seus maridos para com os cristãos, os quais passaram a agir com violência contra os pregadores. Pedro foi instado a sair de Roma, escondido. Quando fora das muralhas da cidade, fugindo da perseguição a que estava submetida aquela igreja local, vem-lhe ao encontro, em sentido contrário, o Cristo, o qual lhe pergunta: “Quo Vades?”, “Para onde estás indo, Pedro?”. E continua a se dirigir à igreja que está sendo assassinada. Pedro entende que seu lugar, como o foi o de seu mestre, era em meio à dor e ao sofrimento daqueles que estão sendo perseguidos e mortos, e que não poderia se livrar do martírio, enquanto a igreja estava sendo martirizada. Pedro volta à Roma onde é morto em uma cruz, pendurado de cabeça para baixo, pois não se achou digno de morrer como o Cristo.


Paulo se esquiva da morte, do martírio, e quando este se tornou inevitável, viveu como senão fosse a ser martirizado, encontrando meios de edificar a igreja. Pedro entende que o lugar necessário de alguém que é testemunha de Cristo é em meio ao sofrimento impingido aos vulneráveis, aos perseguidos. Pedro entende que a testemunha deve ser ele mesmo mártir, colocando-se em meio ao sofrimento e à dor do outro. Estas duas vias de martírio não são excludentes, mas singularidades. O que devemos notar é a maneira como os discípulos destes homens interpretaram o martírio. No início do século dois (este século é muito importante para o cristianismo, pois os primeiros líderes já morreram, e ao se levantarem outros, estes interpretam os ensinamentos de maneira ainda não a partir de uma ortodoxia), dois discípulos, um de Paulo e outro de Pedro, nos oferecem exemplos de como se interpretou o martírio.

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