Laïcité, secularização à francesa
- Marcos Nicolini
- Nov 22, 2020
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Caso nos permitamos um certa arqueologia do sentido, alguns chamariam de filologia, mas prefiro ir além das origens e do uso semântico histórico e me atrever a perceber a dispositivação nas trocas linguísticas, ou seja, o sentido nas conversações. Enfim, se ousarmos uma arqueologia das palavras “laico” e “clero” nos surpreenderemos com o uso

que delas faziam os gregos. Esta busca pelo sentido de algumas palavras causa horror e repulsa naqueles que vivem “cada dia o seu próprio mal”, ou, que gozam o “carpe diem” sem desmesura, ou ainda que preferem pensar que as transformações sepultam o velho e imprimem um novo significado em signos obsoletos, em suas temporalidades, produzindo novos significantes, ou mundos desejáveis. Mas rebuscar nos escombros do tempo passado e ali buscarmos, não o uso verdadeiro, mas a possibilidade assemelhada, a imagem de um dispositivo em sua articulação na linguagem, permite-nos ver não apenas a distância, como, ademais, as alquimias feitas em oculto e determinadas como verdade inconteste no aparente presente. Voltemo-nos a este exercício.
Laico em grego, ou melhor, “laikós” (λαϊκός) significava (aproximativamente) aquele ou aquela que não possuía, não tinha propriedades. Era uma pessoa civilmente livre, portanto não se tratava de um escravo, ou escrava, mas não possuía terras, desta maneira, trabalhava em terra alheia. Ao λαϊκός se opunha o clero, isto é, klerós (κλήρος), aquele que tinha propriedades ou era herdeiro de propriedades. Assim, λαϊκός e κλήρος não repousavam seu sentido sobre o político, mas sobre a propriedade. Tampouco tratava da economia, pois não dizia sobre o uso da propriedade, mas a propriedade da propriedade, o próprio da propriedade, aquilo que torna algo como apropriado, o que torna uma coisa algo que pertence a alguém. Em contrapartida, este proprietário ao se identificar com o apropriado, tendo se identificado com a coisa própria, torna-se κλήρος. Aquele que não se apropriou de coisa alguma, contudo não é escravo, torna-se λαϊκός. O λαϊκός provavelmente ofereceria sua força ao κλήρος como máquina de trabalho (entramos no campo da especulação). Enfim, o λαϊκός é o que nada possui e o κλήρος é o que tem algo de próprio.
Na Idade Média assistimos a centralidade do Logos, pois Cristo é, como se pode ler nas primeiras palavras do evangelho segundo João, o Logos que se fez carne. A Igreja cristã, torna-se a partir do século V a produtora de discursos. Mais tarde seus líderes, ou corpo sacerdotal poderá ser chamado de os “oratores”, os homens que se voltavam à Palavra, aos discursos, ao Logos. Os nobres, por sua vez tornam-se os “bellatores”, os homens que se voltavam ao “bellum”, à guerra, os proprietários das armas e das terras, aquelas que não pertenciam à Igreja. Restava um terceiro grupo de homens, os “laboratores”, os produtores de excedentes, os que operavam com as mãos, os que transformavam a terra bruta em campos com frutos, os que transformavam matéria bruta em bens utilizáveis. Os “laboratores” nada tinham, a não ser a força laboral, a energia de seus corpos. Assistimos, assim, a racionalidade que se torna real e a realidade que está perpassada pela Razão, Ratio em latim, Logos no grego. A experiência factual da República de Platão, com seus três estratos, os filósofos, os guardiões e os trabalhadores, realiza-se na Idade Média. A despeito desta questão, ou, em contiguidade a esta questão podemos dizer que tanto os “oratores”, quanto os “bellatores” herdaram algo, os primeiros o Logos (e as terras com seus templos) e os segundos a terra (com suas fortalezas), contudo, a herança verdadeira era a incorruptível, eterna, ou seja, o Logos. Os sacerdotes tornaram-se o clero. No entanto, os “operatores” mantiveram-se como laicos.
A Revolução francesa de 1798 foi uma revolução laica, apenas depois de seu êxito foi apropriada por um novo clero que buscou se identificar como laicos, possibilitando que tal movimento se pudesse ser auto-intitulado de Revolução Laica. Sabemos que a Revolução francesa ocorre por conta da insatisfação crescente, insustentável e presente das camadas mais vulneráveis e precárias da sociedade francesa à época. O laicato, ou seja, aquelas e aqueles que nada tinham a não ser sua força laboral, diante da fome, da carestia, das condições de higiene e insegurança, se levantam, de maneira até mesmo desorganizada, e se voltam contra o poder civil. É uma revolução laica posto que foi realizada pelo laicato, por aquelas e aqueles que nada tinham a não ser a energia e vitalidade nos seus corpos, e uma forte indisposição para com o poder civil, diante das condições injustas a que estavam submetidos pelo clero, isto é, por aqueles que tinham propriedades. Posteriormente um outro clero, composto pelos homens das letras, certa burguesia esclarecida, proprietários de certa racionalidade moderna, tomam a revolução para si, percebendo a oportunidade histórica de pôr abaixo seus inimigos e assumir o poder. Embora seja um movimento realizado por um outro clero, com uma outra episteme, com outra metafísica, utilizando-se de uma artimanha homérica, toma a palavra de ordem e se deixa reconhecer como uma Revolução Laica.
A Revolução francesa de 1798 transmuta-se de um movimento efetivamente laico, realizado pelos laicos, por aqueles que nada tinham, para uma Revolução Laica, isto é, um movimento contra o antigo regime, do conluio da nobreza com o clero da Igreja. Temos, assim, um segundo movimento semântico. O primeiro que resignificou o clero que antes era o proprietário de terras para aquele que herda o Logos, a Ratio cristã; o segundo que resignificou o laicos que antes era o que não tinha propriedade para ser aquele que representa uma Razão moderna, anti-clerical e anti-monárquica, anti-antigo regime. Com este novo movimento semântico, de ressignificação, os apropriadores da Revolução francesa realizam um feito significativo, a saber: transformam o clero em laicos, antes, tornam inaparente o fato que esta elite revolucionária é duplamente cleros, tanto no sentido de serem proprietários de bens de produção, quanto são homens de letras, são herdeiros da ratio moderna e iluminista. A Revolução francesa estabelece um novo poder sobre o laicato, um novo clero, o qual transmuta o significado a fim de ocultar sua herança e legitimar a dominação da qual se impunham como novos herdeiros.
A nossa narrativa, até aqui e daqui por diante, está apresentada como que a história se desse por saltos, como que por fotos que nos fariam crer que se tratam de movimentos tectônicos bruscos, acontecimentais, embora a história não se entregue docilmente ao acontecimento e nem guarde uma racionalidade tal que se possam prever os fatos futuros a partir de uma racionalidade presente como realidade. A história pode ser tomada como o resultado de encontro de forças conflitantes, as quais realizam micromovimentos e microfissuras não percebidas, cujo resultado comporta o imprevisível, o inapreensível, a qual, no mais das vezes visa recompor a relação entre dominadores e dominados como que num momento especificado por um olhar retrospectivo. A Revolução francesa, como tantas que vieram depois, faz parte deste movimento de recomposição, quando o antigo regime já não mais tem energias internas para manter eficientemente, quer pelo medo, quer pelo mito, a relação de dominação necessária à ordem política. Conquanto a política seja a arte da dominação possível, as revoluções realizam a troca dos dominadores a fim de manter a dominação estrutural. Troca-se a infraestrutura para se preservar a superestrutura.
O movimento de apropriação infraestrutural que visa manter a superestrutura, passou-se a chamar de modernidade e tal modernidade (novidade) tem como método a secularização. A Laïcité, a laicidade francesa ressoa com a mesma sonoridade que a secularização tem para além das fronteiras da França. Ora, secularização é, originalmente, e em larga medida histórica, o uso secular do que era destinado ao uso sagrado, o que veio a se tornar o uso profano do sagrado, o uso no tempo do que era um signo da eternidade. A Laïcité perfaz um duplo caminho de apropriação, de tomar como próprio o que não era seu, colocar sob seu domínio o que lhe escapava à dominação. A Laïcité, como dissemos acima, se apropria do termo laico, o qual se referiria à ausência de próprio além do corpo laico, fazendo-se passar por aquilo que nega na factualidade. Este é o primeiro movimento apropriativo que mantém o laico desapropriado de sua própria laicidade. O laico de então é nada, pois nem a laicidade lhe é própria, nem a nadidade de sua impropriedade lhe é própria. Laico se torna a capa que cobre o clero moderno, enquanto o laico de então é despido. Ao agir em vista a produzir uma identidade entre si e o signo laico, a elite revolucionária relegou o significante laico a um resto sem nome. Mas para que a Laïcité realizasse plenamente seu movimento revolucionário, isto é, renovar a relação de dominação que as elites exigem como política, foi-lhe preciso se apropriar dos recursos dos antigos dominadores, daqueles que já não mais obtinham êxito na dominação política. Portanto, a Laïcité francesa tem de fato o significado de secularização, posto que toma para si o que até então era uso do antigo regime, profana o sagrado, e utiliza os velhos signos e significados secularmente. A Laïcité é, assim, a secularização à francesa.
A evocação de uma Laïcité, de uma laicidade inspirada na Revolução francesa, uma laicidade à francesa, é a invocação de um tipo de dominação que se funda naquilo que nega: nega o fundamento sem o qual não poderá dominar e que se mantém vital, assim como nega ao dominado inclusive a nomeação própria. Expolia o antigo dominador, fazendo de seus recursos os recursos renovados para a nova dominação, e expolia o dominado, que de agora é desapropriado de seu próprio e único recurso: o nome próprio. Neste sentido o ser laico funda-se hora em teologia, hora em nada.
Este movimento revolucionário da secularização, chamemos assim, traz em si um vício rebiditório, um componente que se oculta intencionalmente, mas que contém em si o germe de sua própria decadência e degeneração. Uma das vertentes da secularização se dá como um monoteísmo sem deus. Tal política secular tem como fundamento a teologia, portanto, é uma teologia política, a despeito do oximoro aqui presente.
Se estamos evocando a Laïcité, uma laicidade à francesa, antes, efetivamente uma secularização na França, não estamos, por este caminho, querendo dizer que tal movimento tenha sido inaugurado na França. A secularização tem uma história que passa por Maquiavel, Bodin, Hobbes, Locke, Rousseau, etc., os quais antecederam Robespierre, assim como se preservaram de fazer derramar tanto sangue, até que das tripas do penúltimo revolucionário se enforcasse o último. Conforme propusemos acima, podemos dizer que o movimento de secularização não se deu em um momento, num acontecimento, mas em micro-passos, micro-movimentos, cuja espetacularidade se fez notar naquele momento chamado de Revolução francesa. Anteriormente ao momento em que o palco é descortinado, muito texto foi escrito, muito ensaio foi realizado. Podemos ainda ressaltar que os movimentos que citamos e que precedem a Revolução, nem todos eles são solidários e apontam para a mesma apoteose, mas, todavia, contribuem para se pensar no exaurir da forma de dominação que se esvai lentamente e em novas formas de preservar a dominação. Eis a questão: como garantir o governo dos homens.
Neste momento, então, nos interessa a via aberta por uma secularização que se apropria do laico a fim de, por um lado, espoliar os recursos do antigo clero e, por outro lado, espoliar do laicato sua propriedade, o nome que marca a ausência de propriedade. O novo clero que se nega a se nomear pelo nome próprio, não se envergonha de apropriar-se da única marca que se mantém própria aos destituídos de propriedade. A marca deste novo clero é a apropriação e interdição dos espoliados.
Assim, a Laïcité tornou-se, mais do que um significado, um método, o qual é marcado por um modus operandi, digamos, de guerra. O exército vencedor não apenas se apropria dos recursos dos vencidos, como lhes nega quaisquer espaço na ordem que impõe. Seus inimigos não são apenas os representantes da antiga ordem, do antigo regime, como também todos os que podem, ou poderão num futuro incerto por fim a ordem instaurada. Assim como os laicos foram os agentes efetivos da Revolução francesa, poderiam eles também ser os agentes de outra revolução por vir. Desta maneira, desapropria-los é uma medida preventiva. A Laïcité não é anti-clerical, posto ser cleical. A Laïcité é anti-ética, pois nega a qualquer outro a existência, posto que ela traz consigo a potencialidade da perda do poder.



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