Jerusalém e Atenas: fé e ciência.
- Marcos Nicolini
- Apr 18, 2021
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(leituras em torno de Lev Shestov)
O leãozinho e a leoazinha nascem e já trazem inscritos em seus corpos, em suas psiques todo o comportamento que deles se há de verificar quando adultos. Não pastarão como o

gnus, nem correrão como os guepardos, ou voarão como os abutres, nem mesmo habitarão os rios como os hipopótamos, não serão solitários como os leopardos, mas também não viverão em bandos matriarcais como as hienas. Serão carnívoros, andarão em bandos liderados na maior parte das vezes por até três machos e viverão dentro de um limite geográfico estrito. Estes filhotes de leões e leoas serão como seus pais, sem, no entanto, frequentarem escolas como os humanos. Não há liberdade em suas programações existenciais.
A liberdade, aqui, surge como um contraponto à determinação.
Lembramo-nos de Pico della Miràndola, em seu texto sobre “a dignidade do homem”, pensador que viveu na última metade do século XV. Sua tese principal é que o homem nem é determinado como os animais, nem é idêntico ao Ser. A singularidade do humano está na indeterminação aliada à escolha. Suas escolhas o aproximarão das bestas, ou dos anjos. Malgrado sua crença na ficção de que o conhecimento é a via que distancia o homem das bestas e o faz acender na Cadeia do Ser rumo à sua identificação com Deus, o que importa é a ausência de fixidez do homem.
Agostinho, reproduzindo os gregos, dizia que o mal é carência de bem. Contudo Miràndola parece nos permitir pensar que a carência não é o mal, mas o que torna o humano numa criatura singular. No entanto ambos concordariam com uma premissa já sinalizada: o conhecimento permite ao humano se distanciar do sensível, do material, da animalidade e se voltar a Deus. Esta é a armadilha que, prometendo elevar o homem à condição superior, o lança em sua mais terrível prisão.
O conhecimento nada mais seria do que o desvelamento das leis necessárias, cuja inexorabilidade implicam em sua universalidade. Em outras palavras, o conhecimento visa à verdades incontestáveis das leis que regem o cosmos, tais leis, entretanto, são imutáveis, atemporais, e sempre idênticas a si mesmas, únicas em seu gênero. Uma vez que tais leis são se podem transgredir, elas se impões como necessidades que não dão ouvidos à súplicas por flexibilidade e mudanças. Uma vez que o conhecimento nos faz saber sobre tais leis verdadeiras, portanto, necessárias, nos faz saber, também, que se aplicam em qualquer tempo e lugar.
O homem, então, estaria num espaço bem definido. Entre as bestas que não sabendo sobre as leis que regem seus comportamentos, cumprem-nas indelevelmente, e entre ao anjos que conhecem a verdade e as cumprem necessariamente.
O que distinguiria as bestas dos anjos não é a sujeição arbitrária das leis necessárias, mas a consciência de suas condições assenhoradas. Os anjos sabem que são escravos, servos desta senhora que se chama Necessidade, enquanto as bestas lhes pagam tributo, servindo-a e oferecendo sacrifícios, sem, entretanto, ter consciência desse estado servil.
A ciência é este esforço humano demasiado humano por auto-agrilhoamento, que busca descrever, justificar, legitimar a servidão voluntária, tornando o homem uma besta consciente, uma mula discursante.
O homem livre é aquele que vive tenso entre a fé e o saber, não se deixando monopolizar nem por um e nem por outro. É aquele que diante da refeição diz: Pai nosso...



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