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Impasse Civilizatório

  • Marcos Nicolini
  • Oct 12, 2022
  • 4 min read

A passagem da era da Igreja Católica europeia para a modernidade, uma questão que me pôs em movimento. Por que da guilhotina, das perseguições, do ódio poucas vezes confessado mas sempre dínamo? Ainda procuro a resposta dos motivos dos Robespierres, dos Nietzsches, dos Lenins, dos Castros, etc.

Vez por outra, contudo, deparo-me com outro ódio: dos humanos pelos não-humanos. Nestes embates secundários já percebemos o eco da questão por mim perseguida. Vejamos um exemplo.


Entre 1500 e 1501, na cidade de Valladolid, Espanha, houve um debate entre duas civilizações, entre Sepulveda e Las Casas, entre Aristóteles e Jesus Cristo, entre a hierarquia de humanidades e a humanidade. Sepulveda tomando a opinião (doxa) de Aristóteles quando este diz que "há aqueles que são escravos por natureza", que há humanos com alma inferior, defendia que os habitantes da América eram entes de aparência humana mas seres sub-humanos. Las Casas tomando Jesus como referência dizia que todos somos humanos iguais, que há a humanidade. Las Casas ganhou aquele debate naquela data, mas Sepulveda fez Aristóteles prevalecer nos séculos seguintes.


Mas não é apenas Aristóteles que ecoou e ecoa ainda hoje, reverberando monstruosidades. O gnosticismo também lança seu ruído monstruoso e fragmentado, exigindo sacrifícios da humanidade.


Os gnósticos recortam o humano entre a matéria má e o espírito bom, melhor, a matéria resultante de uma divindade do mal e o espírito de um Deus do bem. O conhecimento das coisas superiores, do espírito é o caminho para a salvação, enquanto a entrega a uma vida pelos sentidos é o caminho para a perdição e morte. Os humanos que se dedicam ao conhecimento se voltam para o bem e suas obras são boas; os que se entregam à sensualidade e aos desejos carnais se voltam para o mal e suas obras são más. A humanidade está fendida entre os humanos que conhecem e têm sabedoria e os que negam o conhecimento e se entregam a um viver carnal.


O eco de Aristóteles e dos gnósticos se ouve forte na modernidade. Nas utopias de Thomas More (Utopia), de Campanella (Cidade do Sol) e de Francis Bacon (Nova Atlântica), que ecoam a República de Platão, encontramos os sábios, aqueles que conhecem, os que têm ciência, como os senhores do poder político, que têm o poder sobre a ordem política.


O gnosticismo está presente em Kant, para quem o homem racional é plenamente humano, enquanto aquele que não tem a mesma racionalidade não tem a mesma humanidade. Hegel caminha a mesma trilha gnóstica escrevendo uma ode ufanista à Razão. Nietzsche profetiza o além-do-homem, a figura do filósofo que ditará à humanidade seu caminho.


Enfim, o humano dos livros, habitante das bibliotecas, amante do conhecimento, o ser racional por excelência é o humano de Sepulveda. Nós, os demais, ou nós deixamos conduzir pela sabedoria destes, ou somos como corpos vazios que estorvam o avanço da humanidade.


Deixemo-nos dar um passo atrás e acompanhemos uma breve leitura de Cornelius Castoriadis, em seu Democracia e relativismo, pgs 43-44; de fato, acompanhemos as palavras de Serge Latouche, quando diz:


"[...] é no Ocidente onde a ideia de humanidade foi mais longe [...] não há dúvida de que a ideia de uma humanidade potencialmente fraterna de homens idênticos, iguais, etc., se desenvolveu fundamentalmente no Ocidente [...] O que tem feito aos homens uma coletividade, um conjunto solidário, é o fato de haver definido um inimigo comum a esta humanidade, o que não haviam feito as outras sociedades. Este inimigo é a natureza.

"A partir do momento em que se decidiu que o ser humano era 'dono e senhor da natureza' se designou a vítima que solidarizaria os seres humanos entre si: a natureza, cujos segredos haviam de ser descobertos e que haveria, como disse Bacon, que 'submeter como a uma mulher pública aos nossos desejos' para extrair materialmente o que se suporia a condição de uma fraternidade universal [...] O mesmo movimento que proclamava a fraternidade universal a destruía, decidindo que certos homens não o são homens, ou eram infrahomens, situando-os, por sua condição de escravos, ao lado da natureza, e aos que, portanto, também se poderia submeter e tratar segundo nossos desejos."


Sim, estamos mais uma vez em Valladolid. De um lado os letrados, a humanidade superiora, que conhece as grandes obras do Espírito, sensível à Razão e sábia; de outro, como diz Eduardo Bueno e Alexandre de Moraes, estão os imbecis, estes sub-humanos, a escória, os vermes que devem ser varridos da sociedade, esta que há de ser imunizada para que a comunidade emerja.


Sim, estamos diante da escolha civilizatória, entre a salvação pela ciência ou a morte pela corrupção. Corrompemo-nos quando não olhamos para a luz do dia e nós perdemos na noite dos apetites nefastos. A civilização solicita o sacrifício de nossas escolhas individuais em prol da salvação por vir, mesmo, e sabendo que muitos sacrifícios serão exigidos até que o grande e glorioso dia se levante, este que vemos raiar no horizonte.


Sim, devemos progredir inexoravelmente para e pela Razão que se imporá, ainda que pela força, ainda que pela censura, ainda que pela violência, pelos expurgos, ilegalidade, etc. A Razão tem suas razões que os sub-humanos não podem contemplar.


Sim, Freis Sepulvedas querem aplacar a bestialidade e monstruosidade destes que nascem da terra, rastejam nela, dela tiram seus sustentos com suor, lágrimas e sangue. Os Sepulvedas querem impedir a voz de Las Casas, aquela que diz: Deus não habita as bibliotecas, mas lá estão os Fariseus; Deus não habita os palácios, mas esta é a morada do rei Herodes; Deus não habita o imperium, mas ali é o lugar da violência do Estado; Deus não habita os mercados, mas lá o novo clero se prostitui com as moedas do espírito vazio que nos falou Weber.


A Igreja que um dia se queria ser de Cristo, agora se jacta de um conhecimento, não dando conta que se faz meretriz de um poder que sacrifica o humano, condenando à sub-humanidade. A Igreja é Grande Meretriz, que hora oferece sacrifícios a Mamon, hora a Belzebu.


Não, não estamos num impasse civilizatório, mas no tempo, kairós, de ouvir a voz que diz: saia da Babilônia Igreja minha!

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