Futuro-pretérito: a distopia divina
- Marcos Nicolini
- Oct 28, 2022
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Então Contardo Calligaris (psicanalista nascido na Itália e residente no Brasil) certa vez disse que Gramsci havia produzido sua obra como uma descrição do fascismo italiano e não como um método e plano de ação da esquerda. Tese com muitíssimo pouca credibilidade.

Minha tese, no entanto, me parece mais verificável: ouça atentamente o que a extrema-esquerda (PT, PSOL, PCO, PCB, etc., chamado os demônios pelos nomes próprios e satanás por sua nomenclatura apropriada) diz sobre seus inimigos e mais atentamente sobre o que dizem que seus arque-adversários estão fazendo e por fazer (golpe, genocídio, controle social, estado de exceção, desumanização, etc.) e isto, parece-me, há de ser tomado como uma antecipação do que hão de fazer quando estiverem com tal poder que encontrem as condições de possibilidade de implementação desta metas, não deixando de lembrar o que disse José Dirceu que se há de tomar o poder a despeito dos resultados das eleições (“tomar o poder é diferente de ganhar eleições”).
Lembramos que o pensamento científico, fazer ciência é, tendo como base um método materialista (empírico, de observação de eventos mensuráveis), descrever eventos utilizando linguagem própria (no mais das vezes fundado em quantificadores, em números, em dados quantificáveis e traduzir estes dados em descrições que ressaltem os valores da ciência), a tal forma que se reduza fenômenos à modelos reprodutíveis para fora de laboratórios (fazendo-se valer de elementos heurísticos, isto é, redutores, melhor ainda, que reduzam os fenômenos a modelos, se possíveis, fórmulas matemáticas). A dialética científica seria dada por uma relação entre fenômeno dado no mundo confrontados com conceitos fundamentais dados pela ciência em sua linguagem mais aprimorada, a matemática; a materialidade fenomenal anteposta à conceituação da linguagem do cálculo redunda na modelagem matemática do fenômeno, o qual nem é plenamente conceito e nem plenamente dado do mundo, as quais são negadas em suas individualidades contraditórias. A síntese conceito-mundo é o modelo, o qual é a tradução heurística (enviesada, reduzida ao campo da materialidade apreensível pela linguagem e modelo científico), e se dá como modelagem.
No entanto, o mundo-modelado, que é a contribuição da ciência (a quem ela contribuiria se o movimento se estancasse aqui?), se depara com um conceito de segunda ordem, isto é, com a demanda (desejo) técnica: transformar conhecimento científico em técnica, em dispositivação útil. A ciência há de entregar à técnica seus modelos a fim de que tais modelos se tornem dispositivos prêt-à-porter. Temos a dialética de segunda ordem, onde o conceito (o modelo-mundo) se depara com a materialidade (o desejo de mundo), produzindo o modelo-mundo-desejado, isto é, os dispositivos técnicos.
Mas agora o modelo-mundo não é mais uma tradução em linguagem da ciência heuristicamente produzido que busca reproduzir de modo redutivo, controlável e reprodutivo de um fenômeno complexo que em sua complexidade escapa ao domínio humano. Agora o modelo-mundo dado pela ciência se confunde com o conceito (de segunda ordem, como mimesis que se identifica), com o ideal e passa a ser modelo para ação no mundo. O modelo para a ação no mundo ainda é conceito (mesmo que seja conceito de segunda ordem) requerendo que responda aos desejos humanos, isto é, à utilidade, à praticidade, à funcionalidade.
O que antes era uma descrição do mundo a partir de redutores heurísticos, confunde-se, é identificado como sendo o mundo: modelo-mundo. Agir no mundo se e somente se for segundo o modelo-mundo em resposta ao desejo humano, portanto, por meio de artificialidade, mutatis mutandis, técnica. Ser-no-mundo é agir conforme o modelo-mundo mediado pelos dispositivos técnicos em respostas ao desejo humano de utilidade.
Tomar a ciência como conceito absoluto é já uma redução do mundo à materialidade e ao desejo humano de controle e utilidade. A ciência, materialista e controladora, toma o mundo como a dimensão material de fenômenos complexos, o reduz a uma linguagem fundada na quantificação e calculabilidade, produzindo modelos traduzidos em fórmulas. Tais modelos formulados se deparam com o desejo humano por praticidade e utilidade, não apenas produzindo dispositivos tecnológicos, como, ainda mais, tornando os modelos produzidos pela ciência em mais do que formulários, tornando-os modelos de ação. Temos assim a ideologia de segunda ordem: a primeira dada pela ciência materialista e controladora e o de segunda ordem transformando o complexo e formulário que modela o mundo ao científico.
Com isto o mundo e a ciência se distanciam. Esta distância crescente a verificamos, mormente, nas novas tecnologias: engenharia genética, inteligência artificial, engenharia social, etc. Como diria Michel Foucault, no vácuo aberto por Nietzsche, “o homem morreu”. Isto é, o homem-mundo em sua complexidade fenomenal se depara com o fazer científico, o qual toma o homem-mundo como código genético, algoritmos de racionalidade e modelagem político-social (medicina, engenharia e direito, para falar grosso modo).
Assim, podemos voltar a Calligaris, ou seja, a Gramsci. O marxista italiano que foi aprisionado pelo fascismo de Mussolini tinha como referência primária as crenças e valores propostos e defendidos pelo materialismo, pretensamente, científico de Marx (se é que poderíamos ser rir chamar as proposições de Marx ciência), mas estava afetado pela racionalidade eficiente do fascismo (se é que poderíamos sem rir chamar as técnicas de Mussolini eficientes). O que Gramsci fez foi transformar a ciência materialista de Marx em técnicas de poder a partir de uma engenharia social, alimentado pelo mundo-modelado pelo fascismo na instância de suas técnicas de poder. Em outros termos, podemos dizer que tomou estes dois modelos-mundo (um como modelagem de mundo dado pela ciência materialista de Marx e outro pelos modelos técnicos do fascismo) a partir de afinidades eletivas (como propôs Max Weber). O que Weber nos propõe é que dois modelos cujos núcleos de crenças e valores sejam incomunicáveis, por vezes partilham de elementos comuns, afinidades. Alguém que adota crenças e valores de um determinado núcleo de ciência pode, por vezes, perceber tais afinidades e ampliar o campo de ação adotando técnicas e modelagem periféricos do modelo concorrente. Não há a imposição de abandono pleno do núcleo precedente (o qual pode ser mantido por outros dispositivos heurísticos), mas esperaria ampliar seu controle sobre o mundo fenomênico, forçando-o a se identificar com o modelo-mundo determinado pela ciência adotada.
O que faz, contudo, a extrema-esquerda brasileira é dar um passo à frente de Gramsci, sem romper com o núcleo central de crenças e valores do marxismo (a ciência econômico-político materialista de Marx) e sem romper com a modelagem do mundo da engenharia social gramscista. Aqui precisarei lançar mão de uma metáfora hollywoodiana e fazer referência ao filme Minority Report. Neste filme havia um tribunal que julgava crimes que não se efetivaram mas que haveriam de acontecer caso o pré-acusado não fosse detido. O criminoso era acusado de um crime que não se dera no tempo passado, sendo julgado e condenado por um futuro preterizado. Um exemplo cabal desta metodologia de ajuizamento e condenação pela antecipação de um crime futuro que é tomado como passado, está na censura ao documentário de um canal de documentários brasileiro, que foi proibido de entrar no ar pois seu conteúdo, ainda não exibido, poderia conter, quem sabe?, elementos que colocassem toda a Democracia em questão.
No caso, no entanto, da extrema-esquerda brasileira, ela antevê um mundo distópico sob os slogans de golpe, genocídio, controle social, estado de exceção, desumanização, etc., mas sabe que as condições de possibilidade apenas se darão quando e se ela estiver plenamente instrumentalizada com os dispositivos de poder e violência de um Estado hegemônico. Tal extrema-esquerda sabe que não é apenas uma questão de tempo para que ela assalte o poder e o submeta a sua cientificidade e artificialidade, mas em produzir atos de barbaridade tais que estejam legitimadas por discursos apropriados. Há de se justificar o de golpe, o genocídio, o controle social, o estado de exceção, a desumanização, etc. Estamos hoje assistindo aos primeiros ensaios de justificação quando o estado de exceção é legitimado a partir de Fake News, por exemplo, assim como o controle social a partir de ações de perseguição política a alguns grupos enquanto outros se movimentam sem restrições a seus atos. Acolhem-se demandas sem a garantia da isonomia e isto nas mais altas cortes nacionais.
Retornando, a extrema-esquerda caminha em direção às suas ações distópicas conscientes, sabe que tais condutas ferem às condições atuais de convivência sócio-política, portanto, atribuem-nas ao (não-)outro tais ações com a finalidade de agir efetivamente no presente-futuro, acusando no presente seus inimigos e gerando condições de possibilidade de ação do terror. Realizam um golpe sob a acusação de que o (não-)outro age anti-democraticamente; suspendem a constituição, estabelecendo um governo do judiciário, sob a acusação de que o executivo coloca em risco o Estado de Direito; desumanizam o outro sob a alegação de que estes são imbecis, enquanto ratificam a sua própria racionalidade superior.
Precisamos, para reforçar minha tese (se é que há alguma aqui), lembrar Walter Benjamin (filósofo judeu de linhagem marxista que foi perseguido pelo nazismo e se suicidou na França dominada), quando propõe que há duas violências: a violência feita pelos nossos inimigos e a violência que é feita por nós. Em termos teológicos, distinguir a violência profana da violência sagrada, ou divina, lembrando das afinidades eletivas aqui quando o materialismo marxista encosta no transcendentalismo religioso. É aqui que Gramsci encontra, sem pudor, em Mussolini um ombro amigo: para Gramsci todo golpe, estado de exceção, desumanização do outro, violência adotado factualmente pelo fascismo apenas são errados e maus pois são feitos pelo fascismo, caso fossem realizados pela extrema-esquerda seria bons e corretos. Como exemplo desta legitimação da violência sagrada lembramos das proposições de Domenico Losurdo, para quem Stalin, Mao, Polpot e Castro agiram de maneira acertada em produzir genocídio político, pois a História os justifica.
A extrema-esquerda sabe, mantendo em memória ainda as afinidades eletivas, que (segundo Bismark) a política é a arte do possível. No caso o possível se refere às condições de possibilidades dadas por discursos legitimadores de atrocidades, os quais garantem que o golpe de esquerda seja tomado por defesa da democracia, que genocídio seja tomado por eliminação de agentes de desestabilização do Estado, que controle social seja a guarda do Estado de Direito, a desumanização como a segregação dos que pensam racionalmente como o poder central e os imbecis e subespécies que de maneira burra reproduzem discursos de ódio e diferença social, etc. É isto que estamos verificando neste exato momento, como extensão de uma ideologia que emergiu nlogo no início do século XXI. Também a política é a relação amigo-inimigo, conforme proposição do Filósofo e Cientista Político de viés nazista Carl Schimitt. Num mundo complexo, devemos pensar articulando muitos pensamentos.
Não desejo me alongar ainda mais, apenas marcar minha desconfiança, tendo em vista a metodologia de ação, as técnicas modelares da extrema-esquerda e que já tornam o futuro predito profeticamente como um passado em curso, passado distópico atribuído ao (não-)outro. Estamos respirando o ar do futuro e podemos dar um passo decisivo para ele já no presente. Como desconfiança final, lembro-me de ter pensado algum dia, que a extrema-esquerda é prolífica em tomar a produção alheia e fazer operar sob seu comando até à exaustão, tal esquerda não produz riquezas, mas consome aquela gerada por seus inimigos adotando uma política de terra arrasada. Tal conceituação do mundo não é originária e nem original, apenas toma o produto alheio e esgota até o limite da distopia, neste momento colapsa levando para o abismo o mundo, mantendo incólume sua cientificidade. Espero não ver isto mais uma vez.



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