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Epistemologia digital e a Cruz impensada

  • Marcos Nicolini
  • Oct 12, 2021
  • 7 min read

O atrevimento de pensar por outra possibilidade epistêmica. Olhamos grupos que pregam a unidade em torno de valores cujo fundamento último é a ruptura. Existem somente se concebem um inimigo comum. É a comunidade em torno da inimizade que funda a unidade. Prega-se a Cruz, quando se é alguém pronto a colocar em alguma cruz aqueles com quais discorda, antes, aqueles que discordam da comunidade.


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Teremos que ter a ousadia de lembrar que “munus”, (palavra latina esta que está presente na palavra co-muni-dade, no sentido de o mesmo múnus), é a palavra do latim que diz da função, do ordenamento que alguém deve cumprir, quer dizer, dever, ônus, função, encargo. Assim, com-munus significa dever, ônus, encargo que perpassa a todos, como um, como-um, comum, é o ônus e dever que todos estão submetidos. A comunidade é este estado em que há a partilha do ônus, em que cada parte e todos se dão o mesmo dever, a mesma função, o mesmo encargo. A comunidade, assim, requer-se a si a imunidade como ausência da diferença, da divergência.


In-munus, que por sua vez, tem uma dupla conotação. A primeira é a rejeição daqueles que não estão co-munus, que não abandonam o particularismo em prol do comunitarismo. Por um lado o “in” presente em imune aponta para a negatividade, quer dizer não, portanto, “in-munus” significa os que se negam ao dever, ao ônus do com-munus. Estar imune é excluir tudo o que coloca em risco o co-munus, é excluir, eliminar, banir o que não se deixa contaminar pelo dever, do ônus, do encargo que sobre todos e qualquer um se impõe. Imbuídos deste dever comum, tomamos uma vacina a fim de possibilitar a imunidade (mais do que a crença na imunidade individual é a crença na imunidade de rebanho, a comunidade da imunidade), a eliminação do risco de que o corpo seja afetado e corra o risco de morte. Mas, para além da imunização como o dever comum de extirpar o que coloca em risco o comum, o in-munus também conota o fechamento da comunidade em seu in-terior, um fechamento sobre si mesma. Uma ordem, um dever de fechamento, de interiorização, de estar contida em si mesma, de ser “in”. Assim, o segundo sentido de “in” aponta para a interiorização, a internalização, o pertencimento, o fazer parte de uma comunidade fechada, de um sistema de imunização, o qual exclui o divergente na mesma medida que implica na identificação, na pertença.


A construção de um co-munus passa por um duplo movimento de in-munus, de extirpar o diferente, o que coloca em questão esta homogeneidade, esta harmonia, este fechamento, a fim de garantir a unidade, a integralidade. A comunidade e a imunidade que a produz e a acompanha é uma crença numa organicidade harmoniosa, numa narrativa fantástica: um mundo sem males. A imunidade que conduz à comunidade funda-se num discurso, numa narrativa que aponta para uma mitologia utópica. Mas, podemos dizer antecipadamente que utopia é violenta.


Ao tratar de imunidade e imunização, apelamos, concomitantemente, para a violência que se introduz como utopia. A utopia é uma violência, antes, sua conversão de potência em ato, sua reversão de proposição atemporal em ação no tempo, como história em realização, implica e se faz como e em violência, e quem diz isto não é a narrativa fantástica, mas a história e sua efetivação. Desta maneira, a utopia revela-se como violência e é violência. A violência que implica em imunizar o real a fim de produzir a comunidade sem males, sem dor, sem sofrimento, pela extirpação do diferente e a produção do inferno do igual. A produção, o vir a ser desta comunidade se faz como imunização, isto é, eliminação dos corpos estranhos e que, supostamente, colocam em risco de morte a comunidade: imunização.


A utopia é, enquanto proposição, um ilhamento, um fechamento de uma comunidade em si mesma, cuja ato instituinte se dá em torno do controle da narrativa pelo narrador. Não caiamos na falácia sofisticada de pensar que o narrador é o povo, a comunidade de todos os indivíduos que congregam em torno do ideal utópico. O narrador, antes de tudo, é uma elite que controla a narrativa, mas que se diz, falaciosamente, porta-voz da comunidade, impondo, assim, seu mito utópico como universalidade necessária. Não há outro imunizante que não seja este determinado pelo narrador, pela fala imunizante e comunista. Ou se está vacinado, ou no necrotério.


A utopia, a produção de uma comunidade imune à dor e sofrimento, que seja harmoniosa e pacífica, passa por violência, violência imunizante. Mas, passa, também, por todo um discurso, uma narrativa tecno-científica, como podemos perceber nas palavras acima, as quais lidam com imunização e vacina, assim como a estrutura binária própria de uma certa lógica cibernética: 0 ou 1. No entanto, este discurso de unidade em torno de uma comunidade imune esconde o fato que a divisão lhe é constituinte. É constituinte de uma narrativa que sangra a humanidade, fendendo-a em dois grupos, de fato em duas partições, de uma das quais surgem outras duas: o grupo dos profetas e visionários do futuro, os quais falam em nome de um outro grupo, aqueles que não tem voz e não sabem falar por si, e falam contra os que dividem, contaminam, adoecem a comunidade. Numa primeira divisão se segregam os amigos dos inimigos, formando uma comunidade pela imunização, e em outro momento se segregam a elite e o resto. Este grupo dos profetas pregam um futuro sem divisão, de harmonia, enquanto realizam uma divisão interna entre os detentores da racionalidade do grupo e os que devem ser conduzidos por esta mesma razão.


Estes que se arrogam como a voz da razão dizem: não é tempo de neutralidade, pois ou se está a favor da utopia comunitária, ou se está entre os que devem ser eliminados. O silêncio, a ausência de posição utópica é tradução de anti-comunitarismo e, portanto, de alinhamento com os que devem passar pelo processo imunizatório, isto é, eliminação. O mesmo ocorre com as duas partes em conflito, as quais fingem esquecer que não se está num conflito entre humanos e vírus, mas entre humanos e humanos-viróticos.


A produção desta narrativa tem como premissa o rebaixamento do outro, daquele que é dissonante com a narrativa que se quer hegemônica, predominante, universal, ao status de sub-humano. O outro sub-humanizado pode ser chamado de judeu ou burguês, de bolsonarista ou petista, iluminista ou religioso, materialista ou fundamentalista, ou qualquer outra adjetivação, mas o procedimento é similar: reduzir o outro a uma sub-humanidade. Mas esta estratégia cujo sentido é a imunização do social e a produção de uma comunidade de iguais, revela sua violência mais extrema de modo banal: é claro que o outro, o humano-virótico é uma espécie que deve ser eliminada, ela coloca em risco a harmonia e a unidade do todo, fragmentando o social.


De tudo isto já sabemos, isto é, do caráter genocida das narrativas utópicas que fomentam as ideologias tanto de esquerda, quanto de direita, cujo sentido é a pro-dução, o agir em vista de um vir-a-existir de uma sociedade homogênea, harmônica, universal. A violência da utopia está no seu caráter comunitário e imunizador de seus ideais. O que me parece interessante, neste momento, é a integração da utopia comunitária-imunizatória com a relação ao binômio amigo-inimigo, típico das políticas totalitárias e genocidas, que encontramos no fundo dos discursos da direita e da esquerda no Brasil do século XXI. Reflexo tanto de proposições utópicas renascentistas e modernas (século XV-XVII, como em Thomas Morus e Francis Bacon), como da estrutura da política como guerra por outros meios presentes no século XX (não apenas em Carl von Clausewitz, como em Carl Schmitt e Michel Foucault e Giorgio Agamben), mas ainda mais, da lógica binária própria não apenas da lógica clássica aristotélica, como, mormente, do arranjo cibernético-informacional do século XX-XXI. É aqui que pretendo dar uma pequena atenção especial.


Para ressaltar este ciclo binário cibernético-informacional, tomemos um pequeno estrato do trabalho de Jean-Pierre Dupuy em seu livro “Nas origens das ciências cognitivas”, na página 159, quando das Conferências Macy, n.7, nos anos 1950, em torno da comunicação e da informação, sua eficácia, redundância e ruídos: “Surge a ideia de que talvez acaso e sentido sejam as duas faces de uma mesma moeda, e que a organização é um misto de redundância e de variedade, de regularidade e de anomalias. Licklider toma o caso de uma comunicação entre duas pessoas. Marquis acaba de fazer um chiste: ‘A melhor comunicação acontece quando você diz precisamente o que seu interlocutor está esperando.’ Licklider responde que não, e que o optimum deve se situar entre dois extremos.”


Comunidade e imunidade, amigo e inimigo, ressonância e dissonância, UM e ZERO, Verdadeiro e FakeNews, todas lógicas binárias de inclusão e eliminação sumária que independem da verdade ou da mentira, mas do comunitário e do fragmentário. Nossa lógica comunicacional está fundada não em arranjos políticos, mas o político está subsumido, integrado, é um epifenômeno do tecnológico, como bem pronunciou Francis Bacon e sua Nova Atlântica. A sociedade não mais se organiza a partir do paradigma econômico e da produção, mas do tecnológico, do matemático. Nem mesmo estamos numa sociedade da informação, mas esta é redescrita como uma função matemático-estatística. E é aqui que a coisa se complica um tanto mais, e os cibernéticos dos anos 1950 tiveram a percepção antecipada e original do fato. Não mais se trata de uma relação analógica-binária, conforme a expectativa do receptor da comunicação, mas uma relação digital-estatística onde o ZERO ou UM são campos probabilísticos. Mas isto é outro assunto.


O que nos importa aqui é que a política e a economia foram subsumidas na tecnologia. Mais ainda, que a sociedade e a própria vida foram absorvidas por paradigmas da calculabilidade e da algoritmização. Reduzir política, economia, sociedade, vida às estruturas binárias-digitais que permitem o controle e as predições comportamentais, eis a questão que nos desafia. Para não dizer que não falei da Religião, também ela se tornou um embate comunitário-imunitário entre teologias-sociais e teologias-neoliberais, e que Deus nos acuda.

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