Crypto
- Marcos Nicolini
- Mar 11, 2023
- 6 min read
Se tem uma narrativa que produz o casamento inseparável entre iguais é aquela que diz que o todo prevalece sobre as partes e que a soma destas é inferior àquele. A sociedade, o partido, a raça, são (melhor seria dizer “é”, pois que são excludentes e se impõem como unidade monista) o que definem o indivíduo e abrem a este o campo de possibilidade para fora do qual nada há. O discurso do individualismo moderno e liberal que culminou com o que chamamos de capitalismo, nada mais é do que uma vertente deste todo do qual é inescapável: ao indivíduo não lhe é dado escape de sua quantificação, esta que lhe confere existência no mundo das trocas mercantis. Alguém é à medida que tem valor no todo e o valor não se resume a apenas um significado quantificado.

Resta, então, saber quais são os valores que estão em jogo para saber se alguém existe no interior do todo prevalecente, ou, hegemônico. O que funda o jogo de confrontação de iguais é o fato que cada uma das totalidades entende-se como a Verdade inegociável e auto-evidente, e desta surgem os valores que produzirão alguma distinção diante da pseudo-totalidades concorrentes e suas respectivas possibilidades identitárias; como Verdade única cada uma delas têm o direito e o dever messiânico de eliminar as demais pseudo-totalidades que são apenas falsidades e representantes do mal moral que tentam os incautos; e, a totalidade marca a fronteira com o nada, isto é, o existente segrega os que obtém identidades possíveis e os que não se entregam à existência, configurando, assim, dois grupos: os que reconhecendo a totalidade como Verdade podem continuar a existir e os que se opondo à Verdade devem ser eliminados, pois já optaram pela exclusão.
Mas ainda há um lugar mais profundo e silencioso sob a Verdade como coerência discursiva, a messianidade belicosa e a identidade comunitária que produz um campo de possibilidades de identificação individual. O meta-fundamento da totalidade é o sacrifício e a guerra. Aderir a um Todo é fender a realidade entre o bem e o mal, o sagrado e o profano, entre o ganho e a perda, estar estre os escolhidos que excluem. Estar marcado por este recorte exige o gozo identitário e a perda da identidade: identifica-se com e na totalidade enquanto mortifica sua auto-identificação como singularidade. O que o poder não tolera é a audácia daquele que ousa dizer de si mesmo o que é, isto é, resistir à heteronomia. O poder se arma e realiza guerra contra qualquer um que tiver a ousadia de dizer não e sim: não ao Todo e sim a um mundo que não satisfaça ao meta-fundamento e ao fundamento. O poder, como a potência de determinar ao outro a ação legítima e sua efetividade, fará guerra ao contra-poder. O poder é psicopático e narcisista. O poder arregimenta todos para a guerra contra qualquer identidade que não seja aquela produzida pelo Todo. Assim, a guerra toma três dimensões: no interior dos desejos do indivíduo que colidem com o Todo, no interior do Todo que tendem a produzir fissuras e contra os que se atrevem a se colocarem como contaminados, como degenerados, como sub-espécie.
Contudo, dado nosso nível tecnológico, ainda somos reconhecidos não por nossas crenças e valores íntimos, mas pelas nossas ações: dados empíricos, o que pode ser observado. Ainda nos resta uma pequena ilha preservada, nossa interioridade. O Todo ainda permite a liberdade de consciência enquanto esta esteja subordinada à liberdade de ação. Em outras palavras: um indivíduo pode crer no que quiser, ter os valores morais e éticos que desejar, contudo, não pode agir e realizar qualquer coisa que contrarie as normas, as leis da totalidade, estas que se fundam primariamente no sacrifício e na guerra e, a partir destas, que se baseiam na Verdade única, na Messianidade inapelável e na Existência superior conferida pela identidade com o Todo. Os valores que são expressos pela lei, isto é, pelas normas, determinam o curral para o animal humano, ou seja, o campo de possibilidades de ação identificável e controlável empiricamente (disto já nos falava Platão em suas Leis).
Aqui cabe um parêntesis. Lei não é um texto redigido por uma instância do poder republicano, no mais das vezes o Legislativo (no caso brasileiro, por um ministro do STF). O melhor conceito de Lei se obtém nas ciências da natureza sob a determinação da necessidade. Uma Lei é aquilo que determina o que é possível fazer e fora dela não há possibilidade. A lei da gravitação universal de Newton expressa bem este conceito, dizendo que dois corpos se atraem com uma força tal que é proporcional à massa de cada um deles e inversamente proporcional ao quadrado da distância entre o centro de massa destes corpos. Não há como escapar disto, é um ordenamento que se impõe como necessário, como inexorável, como inescapável. O conceito de lei nas ciências políticas e jurídicas porta esta pretensão de necessidade impositiva ad hoc.
Os valores do Todo são leis necessárias. Como tais conferem existência e identidade na e pela comunidade. O Todo determina os valores como leis necessárias e, não importando os valores e crenças individuais que porventura alguém pudesse vir a pretender elaborar, somos avaliados segundo nossos comportamentos e relações no interior deste todo, do qual não escapamos, segundo a lei do todo. Escapar seria como contrair uma doença que exige que ou sejamos submetidos à tratamentos e imunizações, ou eliminados-excluídos como vetores de uma praga potencial. Nossa identidade, a partir da perspectiva do Todo, não é dada no self (no que poderíamos dizer “eu-sou-uma-singularidade”, “eu-sou-alguém-distinto-do-todo”), mas no “eu-colonizado” (o eu como um outro que se impõe a mim legalmente sem que eu possa dar conta desta presença alienista e ditatorial), um eu que interioriza o temor pela possibilidade de ousar uma ação de modo não legitimado pela norma, pelo espaço aberto e permitido pela lei. Para além do Todo, nada. E se há algo que questione tanto o sacrifício do self (a imolação da autonomia em prol da identificação comunitária-monista) como a soberania do Todo, este algo deve ser necessariamente, legalmente extirpado, eliminado, nadificado.
Diante disto nos perguntamos se o fato social, a sociedade é de fato apriorística ou se ela é produto de algo outro. Todo sacrifício exige o mistério, o crypto: misterioso, oculto, escondido. O meta-fundamento do social, como dissemos acima, é o sacrifício e a guerra. Mas, pensando materialmente, haveria algo outro além ou aquém deste meta—fundamento? O fundamento do materialismo é a religião sacrificial, mas, o que seria o fundamento material do sacrifício?. No centro da religião sacrificial, no sagrado dos sagrados do sacrifício está o crypto, o lugar ocultado por um véu.
Tomemos a religião mosaica, veterotestamentária como exemplo. No tempo, no lugar da lei havia três espaços, a saber: o átrio, o lugar das exigências materiais, da imunização do corpo; o lugar sagrado, do sacrifício, do sangue, dos sacerdotes e da lei; e o lugar sacro dos sacros, sagrado dos sagrados. Fora do templo, do Tabernáculo havia o lugar as ações, sempre vacilantes, sempre em desconformidade com as exigências da lei. O Tabernáculo representava uma vida moral marcada pela desconformidade com a necessidade legal, exigindo, assim, o sacrifício e a purificação contínua, que envolvia uma dívida impagável e apenas externamente apaziguada. O que havia no sacro dos sacros quando o véu rasgou e o crypto foi exposto? Nada. O que isto pode, hoje, significar para nós? Que o crypto esconde o fato que o sacrifício e a guerra (que por sua vez fundam ocultamente a Verdade, a Messianidade e a Identidade da parte no Todo) se funda na arbitrariedade da produção de dominação.
Uma parte tendo pretensões de dominação sobre as demais partes produz textos e narrativas que legitimam seu poder e direito de dominar e se esconde atrás do véu, depois de exigir o sacrifício do self que teme a morte pelas mãos do poder tirânico, psicopático e narcisista, pela promessa da identidade do eu-como-um-outro.
Assim, a falácia da totalidade, da sociedade apriorística está no fato que o Sacrifício, a Guerra, a Verdade Messiânica como Coerência e Pertencimento, portanto existência superior e os valores significativos que fornecem existência e identidade, não são fatos sociais, mas produtos da elaboração arbitrária de uma elite que elabora meios de justificação da dominação de viés maquiavélico. Esta parte dominante ergue um espaço de não visibilidade oculta atrás do véu de ignorância, isto é, da ideologia. A falácia da totalidade (quer ela seja ornada como Nação, Raça, Mercado, Religião, Sociedade, etc) é o produto de uma parte que quer inculcar, colonizar o eu, passando pelo sacrifício do self, mas que oculta esta falácia por meio de artifícios religiosos, os quais fundam o fundamento do fundamento materialista.
Mas a questão é: o individualismo não é saída para esta religião laica, antes, seu outro, sem o qual, sem tal diferença nem o indivíduo nem o todo se sustentam. Mas isto é outra conversa. Por hora ficamos nisto: o materialismo enquanto totalidade legitima nada mais é que uma religião niilista que se nega a ser chamada assim, como estratégia de sobrevivência e dominação.



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