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As abstrações do homem-livro

  • Marcos Nicolini
  • Dec 26, 2016
  • 3 min read

Há uma sensação de que a vida não me pertence. Ouço um barulho que diz “liberdade”, “autonomia” e até mesmo “autarquia”, mas quando me movo em direção de normas instituídas por mim mesmo as quais devo obediência, sou coagido a aderir a um projeto

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que me é estranho, normas que são decretadas por outros como se fossem por mim. Que estranha esta força que contradiz a promessa.


Quando digo isto, logo surge um homem-livro, cheio de palavras difíceis, como um estrangeiro. Palavras que nunca tocam o chão, pois não se sujeitam à sujidade de uma terra batida. O homem-livro de fala difícil me diz que não compreendo o significado das palavras, o sentido e movimento de preceitos e conceitos que me elevarão além da barbárie de mim mesmo. O homem-livro grita em meus ouvidos (bastaria, porém, dizer aos ouvidos, mas se nega a não me amedrontar): “é o homem abstrato que é livre e em sua liberdade impõe leis às quais há de se submeter!


Nele, no homem abstrato, está o princípio de si mesmo que o torna legislador e cidadão, livre, cabendo ao homem concreto reconhecer no abstrato a elevação do homem”.


Não sei como lidar com abstrações, pois sinto frio e calor, fome e sede, desejo e repulsa, calma e temor, paz e motivos, enfim, meus ossos doem e meus cabelos embranquecem. Quando amo, meu coração acelera e minhas pupilas dilatam. Não sou abstrato, mas concreto, ocupo um lugar no espaço e meu tempo é curto. O homem-livro fala a língua do homem abstrato, enquanto, eu, homem comum percebo que me perco de mim mesmo.


A sensação de que a vida não me pertence continua mesmo que simule escolhas livres e perfeitas. Escolho qualquer carro, desde que seja um carro. Escolho qualquer celular, desde que seja um celular. Escolho falar qualquer palavra, desde que seja aquela que a chame de minha língua. Ora, alguém projetou o carro que escolhi, igualmente o celular, tanto quanto a gramática. A língua não surgiu de uma magia, ou de um encantamento. Alguém, em algum lugar fez um barulho com a boca e outro reconheceu um significado partilhado para este som e ambos agiram em uníssono. Não sabemos quem lançou no ar o primeiro som com significado partilhado, e nem quem produziu o primeiro dispositivo, isto é, não sabemos quais foram os primeiros humanos, mas não podemos confundir moléculas de carbono, com um sujeito dispositivante.


Em algum momento deixamos de dispositivar e tornamo-nos dispositivos. Teríamos ultrapassado o limite tal que nos confundimos, identificamos em nós os objetos e os sujeitos? Não para todos. Apenas para aqueles quem a vida há de lhes escapar às mãos. A estes humanos concretos paira sobre si uma humanidade abstrata, abstraída na língua dos homens-livros. Esta nuvem de homens-livros, sem corpo, sem matéria, intangíveis. Os homens-livros abstraem a vida no afã de serem autores das vidas concretas. Vista isto, coma aquilo, comporte-se desta maneira, creia em tais coisas, produza, leve nas costas o peso da civilização. Os homens-livros encontram unidade nas mil línguas. Como numa rede pós-babélica, abstrata, os homens-livros encontram na dispositivação dos homens concretos o peso de uma pedra que devemos carregar tragicamente.


Como Sísifo, o homem concreto carrega a pedra que o panteão de homens-livros coloca em suas costas. A pedra mais pesada que qualquer pedra é posta nos lombos daqueles que devem realizar infindamente o trabalho que o homem-abstrato, o homem civilizado requer que seja realizado. A pedra que não é minha furta a vida que é minha. A civilização é o peso que pesa apenas sobre aqueles homens concretos, pedra que se chama a civilização do homem-abstrato: livre e autônomo, além de autárquico. Os homens-livros produzem os dispositivos civilizacionais, os quais são postos sobre os ombros dos que realizam trabalho. Os homens-livros nada fazem além de abstrair, enquanto tais abstrações penalizam os que hão de carregar o peso dos trabalhos forçados.


Os homens-livros com suas abstrações, nutrem-se dos homens concretos. Sempre olhando para os homens concretos, os homens-livros estudam, analisam, teorizam, sintetizam, produzem conhecimento do trabalho alheio. Sugando do trabalho do homem concreto, os homens-livros produzem novas normas, novas leis, novas abstrações que visam aumentar o peso que se há de carregar infinitas vezes. O que escondem como o segredo mais secreto é que não há homem abstrato e que a língua dos homens-livros é apenas uma as muitas que os homens falam. O que os homens-livros escondem é que são homens concretos que parasitam nas costas dos outros homens, como cargas pesadas e inúteis, enquanto dispositivo aparte da humanidade. Os homens-livros ao esconderem suas humanidades, como os faraós se diziam reis-divinos, criam abstrações que retiram de todo e qualquer homem sua livre autonomia se ser com o outro.

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