Aforismos civilizatorios
- Marcos Nicolini
- Feb 27, 2022
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Updated: Aug 26, 2022
1 - A civilização, esta força que olhando para si, quer se expandir sobre o que para si é nada, antes, massa destituída de forma e vazia. Este big bang cultural cujo desejo é universalizar a uniformidade, domesticar o bárbaro, submeter as partes livres à sua potência. Mas como já

se disse, a civilização é barbarie e a barbarie é civilização. Dois universos que se entrechocam, cada um como suas verdades incontestes, cada um com sua violência intrínseca, cada um com sua vontade de monopólio, cada um com sua destruição. Bem na fronteira, abandonada ao vazio de uma parte sem parte, uma zona desmilitarizada, está o espaço, o entremeio que a nenhum dos universos pertence e por eles é nadificado, desertificado, abandonado. A violência não houve o som das compressões, não enxerga as lágrimas da destruição, não sente a da mortalha vazia. O poder deseja a violência, esta é sua lei, a lei de sua necessidade, a violência que anima todo movimento sobre tudo, a tudo submeter, a tudo entender-se como civilização.
2- Ouvimos tanto, há poucos dias atrás, se dizer: “a religião é a causa das guerras”. Mantra mentiroso de quem produziu a guilhotina, os campos de extermínio, os gulags, as ilhas malditas…o Iluminismo. Mas, cada vez que o outro cavalo vermelho sai apressado para o campo de batalha sem empunhar um símbolo de religião, a cada vez há de se desorganizar o mundo cujo fundamento se faz sobre a mentira do antigo regime. O mundo, o cosmo, a cosmética, a aparência sofismática, o jogo de imagens vaporosa, quanto tal se faz arriscado, um novo motivo há de se procurar, ou sacar para refazer a beleza harmoniosa da mentira. O tirano é evocado como significante mestre que permite a arregimentação de uma fórmula de estabilidade do cosmos que se dissolve como o vapor das brumas se desfazem com o sopro da brisa. Kathekon, que na fórmula civilizatória é em grego comportamento adequado e em latim é conveniência, em sua fórmula paulina e neotestamentária é o mal que colocado em sua posição adequada impede o mau absoluto. Kathekon, o dispositivo do cosmos civilizatório, civilização esta que se mantém em sua aparência de ordem apenas com o recurso do Bellum, da violência, do gládio, das armas. A civilização necessita do outro-mau para trazer harmonia ao cosmo, às aparências brumáticas, mantendo o medo enquanto ignorância de si. Sim, a mau absoluto existe e ele habita como ameaça e fundamento, como arché, fundo e sentido. O mau é o desejo radical e livre, desmesurado, o desejo do pensamento que apenas contempla a si.
3 - A República de Platão começa e se desenvolve em torno da justiça. Primeiramente se quer definir o que é à justiça, depois se quer definir a cidade justa. Os diálogos passam pela justiça retributiva (fazer o bem aos amigos e mal aos inimigos), pela justiça como interesse do mais forte, chegando até a justiça como virtude da alma e a injustiça como seu vício, tendo em vista que a alma significa aqui poderes da mente, o pensar, conhecer, sentir, ser responsável, etc. Na Política de Aristóteles a questão central não é a justiça, mas o bem. Uma casa (oikós) se junta à altura casa (oikós) a fim de ampliar o bem comum, uma cooperação entre os senhores (basileus) a fim de que a Cidade (Polis) seja autônoma. Este debate chega à modernidade em forma de uma polarização entre deontologia e utilitarismo, entre justiça por dever e busca da maximização da utilidade, isto é, a felicidade, o bem. Há um confronto entre máximas transcendentais e cálculo de maximização da utilidade geral, o bem comum. Já no século XX e XXI este debate se torna obsoleto, pois tanto a busca de justiça quanto a felicidade caem em desgraça, perdem o sentido. O que se busca não é nem a justiça e nem o bem comum, mas a maximização da eficácia do sistema. O oikós, a casa tinha seu nomos, sua ordem interna, a oikonomia; neste século a oikonomia é economia, a ordem interna do sistema. Ainda velhos antagonistas lutam pela primazia quer da justiça, quer da utilidade, enquanto a máquina beyesiana-cibernética estuda os comportamentos dos corpos em sua distribuição estatística e em suas respostas aos nudges. Uma grande máquina que processa dados, buscando conhecimento comportamental, e que prevê cada decisão de cada indivíduo. Não é a retribuição, nem o mais forte, ou a cidade justa, ou o bem comum, com a maximização da utilidade e nem mesmo valores transcendentes que nos levariam a agir por dever, mas a algoritmização do comportamento a fim de maximizar a eficácia do sistema. A questão que se levantaria aqui é: podemos tomar a eficácia pretérita e ampliá-la, dentro da lógica de feed-back, ou retroalimentação do sistema, mas ainda haveria a pergunta, por que maximizar? Diriam os cibernéticos clássicos que é para minimizar a entropia, agir contra a entropia, mas este é um tema vago. As máquinas não possuem telos (τέλος), objetivos, sentido, finalidade em si, auto-fim. O fim do homem cibernético é seu fim. A civilização que tem como τέλος a eficácia é anti-humanista, tem como sentido de seu movimento o fim do homem e sua substituição pela máquina, é a máquina de extermínio da humanidade.



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