A peste, a guerra...
- Marcos Nicolini
- Jul 15, 2023
- 5 min read
Aqui estou com uma espécie de diário de bordo, uma caixa preta de um tempo de exceção. De Giorgio Agamben, Em que ponto estamos? A epidemia como política. (Ed. N-1, 2021). Não sei como este livro foi publicado! Nem lá, na Itália, e muito menos cá num país de censura prévia, aquela que nos faz lembrar do filme Minority Report, no qual as pessoas eram presas por possibilidade de crimes no futuro, ou seja, condenadas por um crime que não houve.

Quando daqueles dias, ficava claro que estávamos diante de três crises: uma crise sanitária, uma crise econômica e uma crise social. Hoje poderíamos acrescentar uma quarta: a crise da ciência.
A crise sanitária seria aquela que se propalou, que se divulgou, que esteve em quase 100% dos noticiários, que se falseou 24 horas por dia. Aliás no Brasil havia duas notícias: sobre a Covid-19 e sobre a incompetência do governo, o qual teria simulado uma tentativa de assassinato contra, si em dar conta do que o Dr Drauzio Varella chamou de gripinha. Qualquer ação ou inação era um ato genocida. Da crise sanitária rapidamente se instaurou uma permanente crise política, esta que é a chave significativa para o estado de exceção.
Certamente, como os dias que passaram deram confirmação, que a política não sobrevive sem o medo, o terror, desde Maquiavel até Hobbes, chegando aos nossos dias. As forças e o projeto de poder contrários e inimigos do então governo se solidarizaram num bloco monotônico que repetia mantras a fim de obterem vantagens na guerra pelo poder político. Que se torne claro: a política é guerra por outros meios e ambos os lados estarão, permanentemente, visando o extermínio dos seus inimigos.
Neste ponto podemos fazer menção e nos lembrar daquele opositor que estava em cárcere por excesso de corrupção comprovado por suas inúmeras condenações em todas as instâncias legais. Segundo ele (e uma atriz estadunidense que fazia oposição ao governo dos EUA) a Covid-19 foi uma benção para os opositores, pois com as mortes exponencialmente crescentes a opinião pública, pensavam eles, estaria certamente receptiva aos discursos e às narrativas dos que certamente retornariam às posições de gestão de tráfego de poder e dinheiro. Isto é, aqueles que poderiam recarregar suas cuecas e apartamentos com montanhas de dinheiros.
A questão não era apenas a incompetência do governo em tratar da questão, o que apenas facilitava a produção de narrativas por porte da oposição. Ou mesmo o volume das mortes. Como exemplo podemos lembrar as mudanças de Ministro da Saúde numa velocidade apenas superada pelo fluxo de corrupção instaurado no governo precedente (as chapas completas). A questão era da unanimidade das vozes opositoras a quaisquer ações, legítimas, justificadas, legais ou não.
Fato memorável foi a adoção de certa vacina, aquela que não atingindo os níveis mínimos de segurança e eficiência, segundo os órgãos responsáveis por atestar e liberar o uso, foi, mesmo assim, utilizada amplamente com apoio incontestável e incontestado da mídia e de políticos, assim como contando com o silêncio dos agentes de saúde, pública e privada.
Sabíamos, à época, que o terror causado com a mortandade decorrente da virose era o elemento chave para a difusão de caricaturas (muito além dos fatos as produções caricaturadas de narrativas que buscavam negativar a imagem) que visavam apenas um estado de pânico propício ao fazer político. Desde Hobbes que o poder soberano é aquele que determina a morte e permite a vida. Mas naquele momento era a morte como imagem de propaganda propícia a um poder que, como um anti-Messias, se esperava a volta, e vida como submissão aos ditames científicos segundo os cânones da política messiânica: o Messias que haveria de voltar aos traficantes de poder e recursos.
O terror difundido permitiria o exercício de estado de exceção e é disto que falamos.
O estado de exceção foi modelado, testado e atestado naquele período de pandemia. A sociedade brasileira que entre os anos de 2013 a 2016 se mobilizou para expurgar a corrupção, a incompetência e a privatização da Res-Pública foi submetida, em 2020 e 2021, a um experimento monstruoso de enclausuramento com uso de forças públicas que, com uso de violência efetiva quando julgava preciso, coagiu indivíduos a estarem presos, como se fossem presos políticos-sanitários, em suas casas. Apenas aqueles que tinham ligação com tráfico de drogas e que habitavam comunidades de grandes cidades como o Rio de Janeiro obtiveram privilégios de não serem coagidos pelas forças policiais.
Como ratos de laboratório fomos habituados, não à permanência em nossas casas, mas ao isolamento social, ao poder de coação segundo a violência definida exclusivamente pelas forças repressoras e em nos calar diante da ação arbitrária e mesmo ilegal (se assim fosse preciso) realizada pelos agentes do Estado: polícia e judiciário em nome da ciência. Habituamo-nos, também, à guerra como modus operandi da política. Habituamo-nos à unanimidade propagandística contra um grupo político que representava aquela ideologia que havia logrado êxito em exercer o governo. Habituamo-nos a adjetivação vil ao governante e seus ministros, impensável em um Estado de Direito, enquanto se preservava (contra si mesmo: seus atos e palavras), de um candidato que se fazia simpático, amigável à regimes espúrios, tirânicos e assassinos. Enquanto um deles era chamado de genocida, o outro não podia ser chamado de ladrão, ainda que tivesse sido condenado por corrupção em todas as instâncias do judiciário. De um lado se multiplicavam os adjetivos (genocida, golpista, fascista, etc...) enquanto para o outro se proibia a lembrança de seus feitos e ditos.
Em 2022 a sociedade estava pacificada, como diria Kant: a paz dos cemitérios. De tudo isto somos testemunhas. Toda oposição era tratada como alguém a ser exterminada, como um vírus, uma excrecência. O que surpreende não é este fazer político extremos resultante da política como política. O que surpreende foi que o Estado de Direito foi desmantelado, a Constituição desprezada e as instituições de Estado se calaram frente à truculência da politização do STF. Não testemunhamos a judicialização da política, mas a politização do STF, uma aberração. O elemento icônico foi a presença de um condenado da justiça como candidato a um cargo eletivo da República.
Tudo isto sabemos e não há novidade. O que poderia ser tomado como novidade é o que ocorreu no início de 2023. Uma semana após a posse do novo-velho governante-ex-presidiário, foram feitos mais de 1.000 presos políticos no Brasil, muitos dos quais permanecem encarcerados, depois de 180 dias. Estas prisões se somam à censura de meios de comunicação, à violação das prerrogativas de Deputados Federais com prisões, condenações de Deputado por um crime que não cometeu, etc.
Mas a violação do Estado de Direito e o abandono da Constituição em nome da razão de Estado não é novidade. A novidade está em que o experimento iniciado na Covid-19 com o isolamento social e o uso de terror como meio explícito de exercício do poder político lograram êxito: a sociedade brasileira se habituou a canga imposta pelo terror da morte violenta.
Todas estas atrocidades apontadas acima e muitas outras aqui não elencadas foram realizadas sistematicamente e ninguém saiu para protestar. Estamos como aquela mulher que apanha do marido bêbado e frustrado (dentro de casa, pois fora desta o Lula não permite) e guarda silêncio na falsa ilusão que ele a ama e que não fará mais isto. A novidade é que uma sociedade que aprendeu a depor criminosos e a retirá-los do exercício político, agora aceita servilmente a posição de silêncio e subalternidade, ainda que sabendo da vileza ainda maior praticada pelos poderes de Estado.
Bastou dois anos de conluio em torno do slogan do terror para que esquecêssemos como a democracia não se realiza em eleições (cujo resultado, sabemos pelas falas de Ministros do STF, não pode ser auditado). A democracia, por sua vez, é um estado em que o poder se realiza em contínuo pelo exercício de cidadania, isto é, pelo zelo da Res-Pública. Res-Publica que foi tomada por um golpe dado pelos enamorados da tirania.
Onde estariam as lideranças que poderiam chamar as vozes cidadãs às ruas? Enquanto os bons se calam, os monstros refestelam-se em nosso quintal.



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