A cosmopolítica da autenticidade.
- Marcos Nicolini
- Feb 20, 2017
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Alguns dizem que a relação direita-esquerda não existe. Não existe pois nunca existiu. A esquerda, dizem eles, é uma espacialidade, uma posição de alguns no parlamento francês. Melhor, a oposição ocupava o lugar esquerdo no parlamento. Esquecem de lembrar,

contudo, que a posição da oposição já traça uma imagem estruturante que marca o nós e o eles. A tradição, a defesa da monarquia absoluta e o direito divino dos reis (eles, que ocupavam o espaço à direita), contrapostos aos republicanos, à ausência de diferença entre os homens no pleito do poder político. Suportando esta contraposição entre o antigo regime e a república, a marcação espacial direita-esquerda, tradição e mudança, há, conduto, um fundamento lógico antigo, que perdurou a despeito das mudanças de cunho estético. Não se trata da relação liberdade-igualdade, que será produzida mais adiante com o liberalismo e o comunismo. Trata-se do fundamento lógico herdado da metafísica grega.
O cosmos grego era binário. Acima o imutável, abaixo o que está sujeito à mudança e corrupção, ao consumo. Acima o que é, abaixo o que não-é-mais. O cosmos era dividido em região supra-lunar (os planetas, as estrelas e na região mais distante, o Motor Imóvel) e em região sub-lunar (tudo que está na Terra, os quatro elementos e a matéria-prima informe). A mesma metafísica suporta a sociedade: homem-mulher, livre-escravo, cidadão-bárbaro. Ou se é homem, ou se é mulher, ou se é livre, ou não é livre (escravo), ou se é cidadão, ou não-é (bárbaro). Ou se habita na região sub-lunar, oou se habita na região supra-lunar. Ou se é, ou não-é. Esta metafísica dual e de exclusões marca a lógica clássica: verdadeiro ou falso.
A lógica da direita-esquerda é fundada, encontra seu aparto de solidez na arcaica metafísica grega. Esta metafísica permitia que a identidade fosse encontrada tanto ao buscar responder a questão, “o que sou?”, quanto a questão, “o que não sou?”. Dizia-se, “eu sou um cidadão livre e não-sou um bárbaro e escravo”. Na Idade Média igualmente se dizia, “sou cristão, não-sou pagão”. Podia-se dizer “sou homem, não-sou mulher”, até mesmo Freud pode dizer isto: “a mulher é o não-ser homem, a carência fálica”. A metafísica das exclusões binárias sobreviveu a modernidade, e até hoje persiste como um fantasma que nos assola.
A direita-esquerda não é uma posição plenária, mas uma estrutura identitária arcaica que nos remonta aos gregos e à Idade Média cristã, que diz respeito, como disse Shakespeare: “to be, or not to be”, isto é, ou-ou. A despeito do desencantamento do mundo promovido pelas crenças cristãs, o secularismo ainda alimenta os “daimones” que ordenam nossas sociedades. Ainda acreditamos nos velhos e obsoletos fundamentos que estruturam e organizam as nossas sociedades. Acreditamos em algo superior e algo inferior, acreditamos que há o imutável, eterno e o que é consumível, corruptível, mutante, acreditamos nas promessas utópicas ou nas distopias. Acreditamos que ou podemos ser livres, ou haveremos de ser iguais, não se pode haver justiça com liberdade. É este o arcabouço obsoleto que recalca as crenças políticas que dividem a sociedade em artificiosos espaços incomensuráveis. Direita e esquerda não se refere a uma espacialidade plenária, mas a um topos de fidelidade.
O confronto binário, excludente, articula não apenas as crenças identitárias que segregam o nós do eles, como nos coloca como a verdade que há de extirpar a mentira, como é o que permanece quando tudo que o que não é sólido se desmanchar no ar. A verdade tem a legítima da perduração, da eternização, que legitima a violência universalista e homogeneizante. Mais do que um confronto espacial, direita e esquerda digladiam como a verdade e a mentira são beligerantes, tendo certo que o verdadeiro permanecerá, enquanto o mentiroso se esvanecerá.
Devemos, por fim, anotar uma última questão. Já não estamos mais sob as sobras das bandeiras dos exércitos em guerra, mesmo que alguns fósseis vivos ainda insistam em vestir os surrados e mofados uniformes de campanha e a fumar charutos fétidos. Já não há mais trincheiras postas nas fronteiras do campo de batalha em que os soldados uniformizados se escondam e escaramuçam os vultos dos supostos inimigos. Já não há mais o exército da verdade contra os amotinados da mentira, cujo sentido e tendência é o desenho histórico da harmonia orgânica. Tudo parece indicar a difusão das diferenças, da pluralidade e a diversidade.
Há pouco mais de um século 99,99% da população brasileira diria ser católica, hoje, porém, dizemo-nos católicos (pouco mais de 50%), evangélicos (pouco menos de 30%), sem religião (pouco mais de 16%), judeus, muçulmanos, espíritas, de religiosidade afro, etc. Há pouco mais de meio século, dizia-se não haver gays, lésbicas, trans, bi, etc., apenas homens e mulheres. Pouco mais de 40 anos do Brasil haveria de amá-lo, ou, odiá-lo, votar na Arena, ou no MDB. Pouco mais de 30 anos atrás o mundo era Capitalista ou Comunista, 1o mundo ou 3o mundo. O bit era zero ou um. De lá para cá reconhecemos a pluralidade de gênero, a pluralidade de religiosidades e religiões, a pluralidade cultural, a globalização de capitais econômico-financeiro e capitais culturais, a diversidade de identidades individuais, etc., mas continuamos a fundar nossas crenças políticas no arcaísmo obsoleto que segrega o comos entre direita e esquerda.
Ou somos a favor do golpe e nos identificamos com a intelectualidade e a alta cultura, ou somos tomados por bestas retrógradas. O discurso medieval que alimentou a cristandade, que fomentou a inquisição, continua vigorante. Antigos “amigos”, aqueles que acreditam que amigo é uma mesma alma em dois corpos, já nos tratam com indiferença e desconforto. Hoje, reconhecendo a obsolescência dos antigos modelos metafísicos, resta a coragem de romper com o espírito de rebanho, colocar-se contra a identificação heterônoma e universalista, e dizer: “não sou nem de direita e nem de esquerda, sou de esquerda e sou de direita, busco a igual liberdade de compor minha autenticidade.”



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