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Esotéricos e exotéricos

  • Marcos Nicolini
  • Nov 30, 2016
  • 5 min read

Poesias e ermetismos

Muito difícil distinguir foneticamente estas duas palavras, contudo não apenas têm significados distintos, como têm sentidos opostos. Do exotérico diz-se de um conjunto de

ree

saberes destinados a qualquer um, acessível, de ensinamentos triviais, que não guardam mistérios; do esotérico diz-se de um conjunto de saberes destinados a um grupo seleto de pessoas, envoltos em mistérios, herméticos, fechados, restrito a um círculo de iniciados, em que um mestre ensina a um grupo restrito de discípulos. Tomemos como exemplo dois poetas.


De Manoel Bandeira podemos ler:


Uso a palavra para compor meus silêncios.

Não gosto das palavras

fatigadas de informar.

Dou mais respeito

às que vivem de barriga no chão

tipo água pedra sapo.

Entendo bem o sotaque das águas.

Dou respeito às coisas desimportantes

e aos seres desimportantes.

Prezo insetos mais que aviões.

Prezo a velocidade

das tartarugas mais que a dos mísseis.

Tenho em mim esse atraso de nascença.

Eu fui aparelhado

para gostar de passarinhos.

Tenho abundância de ser feliz por isso.

Meu quintal é maior do que o mundo.

Sou um apanhador de desperdícios:

Amo os restos

como as boas moscas.

Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.

Porque eu não sou da informática:

eu sou da invencionática.

Só uso a palavra para compor meus silêncios.


Comparemos com a poesia de Paul Celan:


RESTO CANTÁVEL – silhueta

dele, que através

da escrita-foice trespassou silente,

à parte, ao lugar da neve.

Revirando

sob cometas-

sobrancelhas

a massa do olhar, na qual

deriva o coração- satélite

eclipsado miúdo

com a

centelha alcançada lá fora.

Lábio interdito, anuncia

que algo ainda acontece

perto de ti.


De Manoel de Barros podemos pegar qualquer livro de poesia e ler, sossegadamente. Mesmo que as brincadeiras com as palavras não nos sejam de todas imediatas, não as percebamos claramente, nos é claro um sentido primário. Podemos ler sem angústia e culpa. De Paul Celan, ainda que leiamos em português, clamamos por um intérprete, por alguém que nos tomando pelas mãos, nos guie pelas palavras, linhas, poemas, páginas. Ficamos labirintados e presos em nossa ignorância. Olhamos de um lado ao outro envergonhados. Manoel é exotérico e Celan é esotérico, por certo. Pegue o “Poesia Completa” de Manoel de Barros e compare com “Hermetismos e Hemenêutica – Poemas II” de Paul Celan e compare pela perspectiva do exotérico e do esotérico.


Os exotéricos tomam as palavras comuns, as coisas cotidianas, o habitual e de tais nos fazem interessados. Os esotéricos vão além das palavras incomuns e inabituais, do extraordinário. Criam semânticas e formas que apenas tomam sentido no interior de sua língua. Criam para si um espaço fechado de significados e um universo recluso de conceitos. Seria muito simples se dito algo como dissemos pudéssemos separar o mundo em dois: de um lado os populares e de outro as castas. Mas não é bem assim.


Quando nos deparamos com os trabalhos dos sócio-linguístas, percebemos que o esotérico e o exotérico estão muito próximos de nós. Tomemos como referência a premissa de que o esoterismo é um universo fechado, destinado a um grupo específico de iniciados, cuja linguagem( com seus signos e símbolos, sua imagética e seus fins) nos é refratária. A conversação exige uma iniciação nos mistérios que aquele grupo guarda, preserva, mantém e retém.


A sócio-linguística nos fala dos diferentes dialetos de uma mesma língua. Tomemos o português do Brasil (chamemo-lo de brasileiro), por exemplo. Há uma diferença temporal, uma diacronia entre o brasileiro do século XVII, falado em São Paulo e o falado agora no século XXI. Não apenas as palavras, como as construções da língua eram diferentes, por vezes sutis. Caso desejemos ler um texto histórico de época, deveremos nos familiarizar com aquele dialeto.


Em termos sincrônicos, isto é, tomando como referência um mesmo momento histórico, ainda assim encontraremos dialetos no interior do brasileiro. As diferenças podem ser encontradas pelas distâncias geográficas. Não apenas a distância entre o brasileiro falado em São Paulo, comparado com aquele de Salvador, Porto Alegre, Brasília, como o brasileiro falado no Itaim Bibi e em Cidade Tiradentes: sotaques, gírias, semântica, maneirismos, etc.

Outra diferença se dá pelo uso técnico. Temos as linguagens próprias da TI, da Medicina, da Filosofia, da Economia, da Engenharia, da Comunicação Social, das Ciências Sociais, etc. Neste caso fica claro o caráter esotérico da Universidade, ou, da escolarização. Há outros fatores que podem fazer distinguir dialetos no interior de uma língua, por exemplo, a idade, a vinculação com minorias como grupos GLBTx, religião, etc.


Voltemo-nos, um pouco para o esoterismo da escolaridade. Sabemos que uma escola deveria nos propiciar recursos para compreendermos as diferenças e nos auxiliar com os recursos mínimos para podermos caminhar por entre os grupos que compõem uma sociedade. Seríamos, ao nos escolarizarmos, como que poliglotas em pelo menos uma língua. Mas, via de regra, não é o que ocorre, antes, somos colonizados com a língua verdadeira (aquela das elites) e nos especializamos em um dialeto (aquela da especialidade que adotamos: engenheiros, médicos, advogados, sociólogos, filósofos, historiadores, economistas, etc.). A escolarização é um longo e penoso processo iniciático, de passagem do mundo comum para o mundo misterioso e fechado de um grupo. Éramos, antes da escola e da universidade, ignorantes, mas nos tornamos aptos a compreender e a manipular os signos e símbolos secretos, revelados aos iniciados.


A língua que falamos é, o mais das vezes, a de um grupo fechado, embora tenhamos uma pequena flexibilidade em falar um brasileiro médio. O brasileiro médio é aquele do “por favor”, “obrigado”, “bom dia”, “boa tarde”, “será que vai chover?”, “meu time ganhou!”, etc., as conversas de elevador. A língua média é o liame linguístico que mantém um resto de possibilidade em uma proximidade de falantes, num mundo fragmentado. A língua média é o exótico de um mundo cada vez mais esotérico. Em sociedade, como a nossa, em que as distâncias se ampliam pela especialização esotérica, o exótico residual é como uma viscosidade da solidariedade.


Percebemos, então, que o exotérico e o esotérico coexistem perigosamente. Enquanto o exotérico produz um sentido de comunidade, de igual pertencimento social, o esotérico produz conhecimentos especialistas e ampliação do horizonte de saberes, que nos permite enfrentar questões vitais para a humanidade e além. O esotérico colabora com a sociedade quando se permite estar traduzido pela linguagem comum, exotérica, e visa estender os benefícios daqueles saberes, aos ignorantes.


Quando vamos a um médico não queremos que ele nos fale em termos de seu dialeto, quando nos diz seu diagnóstico e seu prognóstico, antes, queremos que nos diga: “seu problema é unha encravada e a solução é retirá-la imediatamente.” Quando buscamos um advogado não queremos ouvir termos em latim e números de leis, mas: “há uma divergência contratual e proponho um acordo.”


O problema com alguns esotéricos (as diversas seitas religiosas, filosóficas e ideológicas) é que ao discutirmos com eles, dirão que estamos errados, pois não compreendemos os significados dos conceitos envolvidos. Para entendermos tais esotéricos precisamos de um exemplo que nos traduza tal fato.


Estes esotéricos, normalmente, são parte de minorias numericamente insignificante, que, visando sua autopreservação como grupo de ideias metafísicos, que se fecham em círculos exclusivos e herméticos. Fazem circular textos (livros e discursos) que fixam e reproduzem os conceitos-chave de seus mistérios. Nunca há a possibilidade de diálogo franco e exotérico com estas seitas e seus representantes, pois as palavras deles estão submersas em sentidos obscuros aos que não são iniciados.


Mais do que apenas isto, tais seitas trazem consigo o ideal messiânico e de pureza gnosiológica. O que quero dizer com isto? Estes grupos são motivados por um evento definitivo que transformará o mundo de tal maneira que todos os ignorantes reconhecerão a excelência daquele saber superior. Não é o Messias enquanto indivíduo que implante um mundo sem males, mas uma ordem messiânica em que os valores até então misteriosos sejam comungados. Uma ruptura entre o antes, caótico da existência de inúmeras crenças falsas e uma verdadeira, para um depois onde apenas a verdade que guardaram será presente: um evento revolucionário e definitivo.


Também defendem uma pureza gnosiológica, isto é (para não sermos esotéricos), defendem a fixidez daqueles conceitos-chave. Cada grupo esotérico conta com um núcleo duro, que lhe confere sentido último de existência, e conceitos-chave que protegem o núcleo e ampliam suas explicações. Este organismo fechado deve sempre expurgar as tentativas de hibridização, de mistura, de perda da pureza inicial. O núcleo duro e os conceito-chave, os mistérios mais profundos dados apenas a alguns “sacerdotes”, são vitais a este organismo.

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