Umbral: entre o abismo e a mesa, e vice-e-versa.
- Marcos Nicolini
- Aug 8, 2022
- 9 min read
Há pessoas que se admiram com o espaço secular - chamemos assim aquele espaço em que a religião não ocuparia um lugar protagonista, mas por hora secundário, coadjuvante

em vias de desaparição -, e outros que se voltam a conhecer os fenômenos em torno do tema da religião. Contudo eu, formado em engenharia e com conhecimentos adquiridos no contato com as Ciências da(s) Religião(ões), ao que se soma minha fé religiosa - herética, mas não negada - fico como que em um umbral. Alguém que habita próximo, ou, oscilando no vai e vem possibilitado pelo espaço aberto pelo umbral entre a mesa de centro e o caos exterior.
Em algum lugar, aqui neste meu universo finito e transcendente, já coloquei o que pensava sobre umbrais, a partir do que me trouxe ao interesse as leituras de Heidegger. Este filósofo alemão trata desta questão e com ele me deparei espacializado ali, em meio ao indecidível-decisório, entre o mistério criativo e a tagarelice formalizadora. Ouso dizer que, igualmente posso supor ver em Jesus esta posição de terceiro excluído: ser-não-ser, melhor, ser isto e aquilo concomitantemente, ser plenamente Mistério, esvaziar-se da divindade enquanto homem e vazio de humanidade (assassinado vilmente como sub-humano), ser plenamente humano, estar dentro e fora simultaneamente, enquanto não se está nem dentro e nem fora, estar no umbral: "eis que estou à porta...". Estar no interior da casa...estar no deserto.
Os dois parágrafos acima, de fato, encetam dois pensamentos e enquanto escrevo penso em quais dos dois encaminharei. Em algum lugar estes pensamentos se encontram, eu sei, mas ainda preciso escolher por qual via darei os passos. Esta metáfora da bifurcação na escolha de caminho, tanto se mostra auspiciosa, quanto engana. Eu posso fazer uma escolha e dar passos em direção motivada por esta decisão e tendo avançado até algum ponto vir a retornar até ao ponto de indecisão e voltar-me ao que supostamente havia sido relegado a uma posição subalterna. Neste momento vou escolher àquela que me exige menos esforço: falarei do umbral e da mesa.
Por conta da morte de Jô Soares me deparei com a imagem deste brilhante intelectual-humorista-entrevistador-etc que se deleitava em conversar com seus convidados. A cenografia repetia uma imagem de similares estadunidenses, enquanto inaugurava um estilo no Brasil. Lá estava ele atrás de uma mesa e ao lado dele um sofá com uma ou mais pessoas que eram estimuladas pelas questões levantadas a exporem narrativas. Em meio a tudo isto, os músicos, as musas distraem os entrevistados e os curiosos consumidores de imagens. O modo como isto se dava, normalmente, era leve e com certo cinismo, típico da inteligência niilista do século XXI. Esta é a leitura que tenho do Programa do Jô.
Mas este apenas é uma memória metafórica que me conduz à imagem da mesa, à qual contraponho à imagem do umbral. A mesa, o umbral e o caos criador.
Indo direto ao assunto de como se apresenta a mim esta questão, vejo a mesa como o lugar da ordem, da hierarquia, do deliberado que se comunica e que requisita uma ação em concórdia, isto é, em sub-missão. Da mesa flui a espacialização ordeira de uma ordem que dali flui como ordenamento. A mesa como a "Tábula" de onde emanam ordenamentos à "Tábula Rasa" cuja forma e informidade, o simples vazio ao qual se cunham ditos e decretos, que se marca como colonização do espaço vazio, como cultura que fala desde o nada como vozes dos deuses.
Aqui cabe dizer que isto se aplica mesmo à "Tábula Redonda", mítica mesa circular onde se sentava Arthur e seus cavaleiros (duas coisas coloquei de propósito: 1o, apenas citei o nome do Rei, do princípio do poder, omitindo o nome daqueles que supostamente estariam partilhando a igualdade diante do ordenamento; 2o, usei o pronome possessivo "seus" para estabelecer uma relação hierárquica entre o Rei e seus súditos mediados e imediatos, estes que simulavam uma pretensa igualdade de decisão, de poder dizer) como a mesa de poder e da ordem. Também há o quadro de Leonardo da Vinci, o qual quer criar a imagem da mesa da ceia de Jesus com seus (novamente o pronome possessivo) discípulos. Este acontecimento místico e inspirador, permutado em ordem e institucionalização que se repete em toda a cristandade desde tempos pós-"isto-é-meu-corpo...isto-é-meu-sangue".
Cabe sublinhar, retificar que a mesa não pode ser pensada como o mobiliário, o dispositivo tangível feito de material paupável. Não! A mesa é o lugar central onde se hierarquiza a voz de comando e de onde saem os ordenamentos que organizam o que se pretende que seja o todo. A mesa é o meson das assembléias da democracia grega, o lugar do discurso como força de lei( expressão plagiada de Jacques Derrida). A mesa é o lugar daquele que ostenta o cetro e que fala, o espaço que dá sentido e fixa semânticas. A mesa é este dentro, que o umbral permite antever neste dentro-fora, e que centraliza o espaço de com-vivência. A mesa é a semântica da língua sobre a qual se coloca o papel em branco que será marcado com a lei, a linguagem geral. A mesa é o transcendente imanente, o que simulando um fora, pertence e fixa pertencimento.
No interior do dispositivo oiko-nomos, da economia, do ordenamento doméstico, da lei interior ao sistema político-social, a mesa é o nomos (a ordem) do oikós (casa). A mesa é o dispositivo do qual emana a ordem que organiza o dispositivo mais amplo que é a sociedade, casa. Dispositivo silencioso como a força, que se sente sem que se possa dizer - justificar um ato, amortecer uma ética, eliminar uma responsabilidade - dela além de "fui forçado a proceder assim...". Da mesa saem as quaestiones (cuja semântica advém das inquisições feitas sob o terror das torturas medievais que buscavam contrapor as heresias e recompor a ordem) que exigem respostas adequadas, que desnudam os inquiridos, que são norteadores de condutas. Diante da mesa, estando nós confortáveis ou não, da mesa são produzidas inquisições que, como diria Michel Foucault, nos obrigam a produzir verdades.
Enfim, entendo a mesa como o lugar da instituição do poder, o lugar da língua que marca o espaço vazio, raso, como linguagem de lei, o lugar da ordem e do ordenamento, da vontade de divinização, quando o humano pretende simular o "Disse Elohim", a fim de que, sem ruídos, haja mundo. A mesa é a inquisição sobre a matéria cuja forma ainda não é da forma que a matéria deveria de ter, segundo a linguagem expressa pelo lugar central, da ordem. Enfim, desde a mesa não se entrevista, mas se busca perceber a identificação do que está sob quaestio diante da forma ideada.
A mesa é a escrita de lei, a ordem formal, a institucionalização dos ritos e procedimentos. A lei é o Sol que emana e estabelece as estações e os ritos. A mesa nomeia, centraliza, espacializa, hierarquiza, a partir dela tudo está em seu lugar. A mesa não vê a mesa como si mesma, em si mesma, mas nas relações internas entre o mobiliário fechado na casa, finitas e ordenadas. A mesa é a instituição metafísica por excelência, a partícula Ad Hoc que diz à criança que puergunta ao Pai, "por que não", e ouve "por que sim"; é a imposição de uma crença fundante que impede de querer ver que abaixo da mesa o nada: a mesa está suspensa em nada. De diante da mesa apenas nos ausentamos com relampejos de experiências limítrofes ou por simulações de nada. De fato não sei. Acho que apenas sendo pego pelas mãos de quem está no umbral e me levando ao não-lugar-atemporal. Quem o sabe?
Aquele não lugar, pré-mundo, o abismo cosmogênico, cosmogônico, ali onde a palavra está por se dar...quase se deu...melhor, brota como pensamento original, como origem de quem há de dizer: "haja...". Haja céu, haja terra. Haja matéria informe, haja tempo: haja espaço-tempo. Quem sabe qual causa eficiente criou o dispositivo que formou a voz? Plagiando e deformando Holderlin, podemos dizer: só um Deus pode criar. Damos de costas para a mesa, olhamos para o abismo, apavorado-nos e como Ester, personagem bíblico, suspiramos quase angustiados e deixamos sair a suplica: "se perecer, pereço. Voltar-se de costas para a mesa é angustiar-se pelo não faceamento, pela ausência de presença, pela transcendência não imanente, pela recusa do Ad Hoc, pela impossibilidade metafísica, pelo inapreensível. Não se vai pro si a este movimento alucinante, mas tomado pelas mãos.
Como Jesus disse a Pedro, palavras estas que nos servem: "quando fores velho te tomarão pelas mãos e te levarão onde não desejas ir."
Heiddeger nos leva pelas mãos até Meister Eckhart e sua mística que diz "Deus é nada"; Derrida a Silésius e sua teologia negativa, com sua experiência do mistério da vida. Agamben perplexo e postado ousadamente em um portal que impõe um questionamento não expresso ao materialismo, mostra-nos que a criação aponta para a transcendência, a voz da origem não está no ente, mas num advir transcendente. Julian Jaynes nos confrontaria com a suspeita de que esta voz é meu lado direito do cérebro, ou seria uma antena que é sensível ao imaterial? Gödel com seu Teorema da Incompletude que nos aponta pala os limites da razão e a exigência da partícula Ad Hoc. Bayes nos fala da impossibilidade da decisão mecânica e as certezas das leis universais, com a exigência de arbítrios enviesados a priori. Kierkegaard nos incita um salto no escuro da fé, um mover ser ver.
Enfim, seria preciso ter uma fé intransponível e trágica na mesa a fim de não permitir saber racionalmente que o portal me apresenta um espaço de deslimitação incomensurável. Seria como uma servidão voluntária a uma lei necessária que me violenta ao dizer que a liberdade é dizer sim à lei racional. Não há o racional, apenas o portal que separa-une a mesa e a criação. A lei racional nada mais é do que "porque sim" do Pai que sabe que nada o sustém. A lei racional é a força de lei que perdeu sua legitimidade.
Mas Jesus foi retratado à mesa, onde estaria Jesus-Cristo? Estaria ele à mesa com seus discípulos? Estaria no deserto exposto à fome, solidão e desejos? Jesus-Cristo é mesa ou é abismo?
Outro dia vi num podcast alguém que dizia: "Jesus não tem religião, não fundou religião, ele não escreveu nada, não prescreveu nenhum rito, não determinou sacerdócio, não ergueu templos, etc., foi Constantino que tornou os seus discípulos em cristãos e impôs o cristianismo", ao que eu acrescentaria, foi Constantino que ratificou o Cânon, os escritos como Escritura. Nos meus termos, o que este está falando é: Jesus, carpinteiro, não é a causa eficiente da mesa, mas habita no abismo, seus ensinos implicam oralidade, informalidade, criatividade como movimento livre do Espírito.
Para mim isto é um engano, pois Jesus-Cristo estaria no umbral, tanto pisaria e andaria sobre as ondas abissais, quanto sentar-se-ia à mesa, tanto traria as palavras de vida eterna, quanto inspiraria a Escritura dos Evangelhos.
Este alguém que disse o que disse, que suporta a tese de que a escrita é ua forma de institucionalização que contraria a origem e a desvirtua em engessamento, como se o corpo fosse a prisão da alma, e como tal funda a religião, a qual é, nada mais nada menos, que um desvio das boas-novas, esqueceu-se de dizer que em sendo o pecado da religião tal institucionalização, esta tem sua gênesis na escrituração das palavras de Jesus-Cristo as quais lê como referência suprema de sua tese. Em outras palavras, este intérprete toma o texto, lê o texto, interpreta o texto e condena a textualização como sendo institucionalização: eis o paradoxo.
Lembramos que a escrituração precede o Cânon e sem os escritos não há substância a canonizar. Mais do que isto, que apenas podemos - nós, crentes do século XXI - citar as palavras de Jesus à medida que elas foram escrituradas em textos que sobreviveram aos milênios que nos separam e que a tradição oral não mostra capacidade de varrer os desgastes desta temporalidade. Se há religião na escrituração das palavras de Jesus, se há pecado de religiosidade no ato da escrita evangélica, não determinada por Jesus, se há a institucionalização do Evangelho em texto escrito, então, citar um texto é inscrever-se no pecado que condena. O mesmo procedimento podemos utilizar para tratar a questão da institucionalização dos ritos, dos sacerdotes, etc. Aliás, este que questiona o erro da institucionalização é um sacerdote. Mas andemos.
Este paradoxo se rompe quando ousamos nos colocar sob o umbral. Neste lugar tanto entendemos o papel da Instituição, quanto nos deparamos com o incompreensível, inapreensível, incognoscível da criação, do original. A nossa humanidade requer a mesa, a qual congela o advento, o evento, enquanto esta se entrega ao envelhecimento suspiramos pelo novo, pela novidade de vida. O novo hora renova a mesa, hora recoloca uma nova mesa que substitui a antiga e obsoleta.
Habitamos, assim, o espaço da decisão entre a mesa que se coloca diante de nós: "preparas uma mesa perante mim na presença dos meus inimigos...". A inimizade para com a morte da letra petrificada. Mas seu óleo transborda, isto é, estamos diante daquele de quem brota a vida, o renovar, o novo. O novo exige uma outra mesa para que possamos deleitá-lo. Assim, novidade e conservação não se excluem, posto que a novidade sem mesa é niilismo, mesa sem novidade é obsoletismo. Estamos condenados a servir a mesa, à diaconia. Novidade que não é partilhável e degustáveis torna-se progressista vazio. Conservadorismo que se aferra ao usual e ao passado é medo, em em Deus não há medo.



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