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O idiotes Jesus o Cristo, feito preso político

  • Marcos Nicolini
  • Jan 17
  • 8 min read

Jesus foi um preso político, canta o mantra de uma teologia que se deixou enredar pela narrativa política, aquela que quer submeter qualquer hermenêutica a uma tragédia inelutável, a qual diz: tudo é política. Retornemos às referências que formam a minha rede de significados.


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Primeiramente devo tomar Isaiah Berlin, que em seu texto “Ainda existe a teoria política?” ((In) Estudos sobre a Humanidade: uma antologia de ensaios, Ed. Companhia das Letras, 2002) dirá algo que há muito já ocupa a rede que constitui minhas certezas, mas que faltava a palavra de alguém que corroborasse:

 

“[...] não há consequentemente consenso sobre a fronteira entre a crítica pública válida e a subversão, ou entre a liberdade e a opressão, e outros casos semelhantes. Enquanto respostas conflitantes a essas questões continuam a ser dadas por diferentes escolas e pensadores, a perspectiva de que se estabeleça uma ciência nesse campo, seja empírica, seja formal, afigura-se remota. Na verdade, parece claro que as discordâncias sobre a análise de conceitos de valor geralmente nascem de diferenças mais profundas, pois as noções de, digamos, direito, justiça ou liberdade serão radicalmente dessemelhantes para os teístas e ateístas, os deterministas mecanicistas e cristãos, os hegelianos e os empiristas, os irracionalistas românticos e os marxistas, e assim por diante. Parece não menos claro que essas diferenças não são, pelo menos prima facie, lógicas ou empíricas, sendo em geral e com razão classificadas como irredutivelmente filosóficas.” (pg. 105)

 

Por certo que a liberdade, a justiça, a democracia, etc. não são conceitos unívocos. Uma é a Democracia Liberal (multipartidária e que cada indivíduo um voto, e assim por diante), outra coisa foi (a falida e cruel) República Democrática da Alemanha, a qual faz lembrar a Venezuela e nos aterroriza com seu espectro macabro que se aproxima ferozmente. Uma é a Liberdade positiva (sob o regime das leis e da negação do indivíduo em prol do coletivo, digna de Cuba e de Tribunais de Exceção), outra é a Liberdade negativa (como ausência de constrições externas, ainda que tal flerte com o kantismo e o espinosismo): aqui ainda estamos acompanhando Isaiah Berlin em seu ensaio sobre “Dois conceitos de liberdade” (do mesmo livro citado acima). Uma é a justiça retributiva, tão cara à meritocracia e outra é a justiça distributiva, como produtora de Impostos e Taxas, constrangendo o empreendedorismo, e ainda, a justiça como equidade (aqui nos lembramos de John Raws e seu “Uma Teoria da Justiça”), que atrai sob a tentação de uma utopia.

 

Assim, há Jesus, o homem (tal qual Confúcio, Buda, Maomé, Zaratrusta, etc.) que sendo historicizado, esteve, como qualquer outro, sob o regime do “tudo é política”. Há Jesus o Cristo, conforme nos permite dizer Paulo, o Apóstolo. É este ex-fariseu convertido a “homem do caminho” (nômade) que deve ser enfrentado, posto que disse: “se outrora conheceram a Jesus, contudo entre nós não é assim, pois que conhecemos a Jesus o Cristo”.

 

Este é o primeiro embate: reduzir Jesus Cristo ao Jesus histórico e como tal submetê-lo às leis da história, determinadas pela tragédia da política: tudo é política. Como tal, o homem Jesus torna-se um preso político, torturado e morto por seus inimigos políticos, por ser um agente de sedição política, que os gregos chamam de “stasis”. Jesus se torna o ícone do enfrentamento político, por excelência, mais ainda, aquele que é marginal e de seu ponto zero passa a ter o direito de reivindicar sua fala social (mostrando aqui todo anacronismo do discurso). Estamos aqui no campo estrito dos jogos de linguagem e o manuseio dos significados dados dentro de uma rede semântica, jogo este que desconstrói e ressignifica os Escritos.

 

Uma segunda referência que tomo é o texto de Leo Strauss, “Jerusalém e Atenas” ((in) Fé e Filosofia Política: a correspondência entre Leo Strauss e Eric Voegelin, 1934-1964, Editora É Realizações, 2017, pp. 135-165). Neste texto também verificamos o confronto de significados a partir de um mesmo signo. No caso de Leo Strauss confronta o significado de sabedoria dado a partir de Jerusalém e dado a partir de Atenas, como ele nos diz: “[...] será que existe uma noção, uma palavra, que refira ao mesmo tempo aquilo de mais elevado que tanto na Bíblia quanto nas maiores obras gregas afirmam transmitir? Essa palavra existe: sabedoria. [...] Segundo a Bíblia, a sabedoria começa com o temor de Deus; segundo os filósofos gregos, a sabedoria começa com o espanto.” (p.138)

 

O texto de Strauss se demora na elaboração do conceito de sabedoria entre os hebreus, desde o Gênesis, passando por Adão, Caim e chegando em Abraão e, finalmente a Moisés. Mas somos apresentados à possibilidade de podermos perceber que a sabedoria está em voltarmos às coisas divinas, atentar à lei divina, pois o Deus dos hebreus é um legislador e garantidor das cláusulas legais. Seria este o Deus de Cristo? Qual seria o deus de Jesus histórico?

 

Embora Strauss se atenha ao Velho Testamento na busca de um conceito que traduza a sabedoria dos hebreus, permitimo-nos incluir Jesus Cristo sem a permissão do autor. Fazemos com um intuito claro, comparar sua morte com a de Sócrates, o qual é posto como ícone da sabedoria grega. Deste filósofo salienta as palavras: “Sócrates disse ao povo: ‘Não nego sua sabedoria divina, mas digo que não a compreendo; só conheço a sabedoria humana’.” (p.163)

 

Mais adiante Strauss nos lembra que “[...] se os profetas preveem a chegada da era messiânica, Sócrates tão somente diz que a sociedade perfeita é possível: se ela algum dia se concretizará depende de uma coincidência improvável, embora não impossível, a coincidência da filosofia com o poder político.” (p.164) Então temos uma diferença clara entre a ordem messiânica (cristológica) e a ordem política: a esperança da intervenção divina na história e a ação humana por meio da sua sabedoria. A filosofia, a amizade pela sabedoria, ou a amizade dos sábios, é a busca de uma virtude política que seja o motor da vida social; a esperança messiânica é o aguardo pela presença de Deus entre os homens.

 

Assim, podemos ir direto para duas sentenças de morte: a de Sócrates e a de Jesus. Sócrates, acusado de seduzir os jovens e não cultuar os deuses da cidade, foi sentenciado à morte. Seus amigos buscaram convencê-lo a fugir da execução da sentença. No entanto Sócrates sabia que ao fazê-lo iria contra a Cidade, contra a Lei. Acata a sentença como quem diz sim à Cidade. Dizer não era ir contra a política. Não disse sim à sentença, mas à cidade, à política, à qual viveu para enaltecê-la, pois o homem virtuoso, o sábio era aquele que era político.

 

Jesus, por sua vez, foi sentenciado à morte sob a acusação de dizer que seu reino não era deste mundo. Em algum momento dividiu o império do reino ao dizer: dai a César o que lhe é próprio e a Deus o que é de Deus. Em outro lugar dirá: entre os homens há os que exercem domínio e poder, e aqueles que a eles se submetem; mas entre vocês não será assim, pois aquele que mais servir, maior será. Mais adiante se ouvirá dele: não é pela sentença alheia que serei executado, mas eu mesmo me encaminharei para a morte. E, diante da morte iminente, ourou Àquele que tinha o poder e o domínio sobre a história, dizendo: Pai, se possível passa de mim este cálice, mas faça a Sua vontade acima de qualquer outra. Jesus, o Cristo, não era um preso político, mas alguém que desfazia a política e a conduzia a fim da emergência de um Reino, apolítico.

 

A influência do movimento apolítico de Jesus se faz sentir em Henry David Thoreau e sua “Desobediência Civil”, mais tarde retomada por Mahatma Gandhi. O cerne da desobediência civil é deslegitimar a política a partir da negação à obediência a uma ordem dada. A política como poder fundado no medo da morte pela violência decreta uma ordem e exige a submissão plena daquele a quem o ordenamento é apontado. O indivíduo, ou grupo, apenas diz: não reconheço sua legitimidade em impor tal ordem, portanto, agirei conforme minhas convicções me determinarem. Este movimento decisório não está em Sócrates, mas em Jesus, pois que o primeiro é um aristocrata sustentador da ordem política, um preso político, enquanto o outro é um classe média idiotes.

 

Apenas para marcar esta diferença, ouçamos Hannah Arendt, quando fala de Sócrates:

 

“Em primeiro lugar porque Sócrates, durante seu julgamento, nunca contestou as leis em si mesmas – mas sim aquele erro judicial específico, ao qual ele se referiu como ‘acidente’ que lhe tinha ocorrido. O seu infortúnio pessoal não lhe dava o direito de ‘romper seus contratos e acordos’ com as leis [...] Sócrates não teria honrado suas próprias palavras se tivesse tentado fugir; teria destruído tudo o que tinha feito durante o julgamento [...] Ele se impôs a si mesmo, e aos cidadãos aos quais se expressava, ficar e morrer.” (Desobediência Civil (in) Crises da República: Perspectiva, 1999, pp. 56-57)

 

 Ouçamo-la falando de Thoreau:

 

“O caso de Thoreau, embora muito menos dramático [...] parece à primeira vista mais pertinente para nosso presente debate porque, ao contrário de Sócrates, ele protestou contra a injustiça das leis em si mesmas. O problema com este exemplo é que um ‘On the Duty of Civil Disobedience’ [...] o termo desobediência civil [...] ele debate sua causa não no campo moral do cidadão em relação à lei, mas no campo da consciência individual e o compromisso moral de consciência.” (p.57)

 

O texto de Arendt é sinuoso e visa marcar os limites da desobediência civil e não nos ateremos a todos os termos. Contudo, a politólogo desatrela-a tanto, de um lado, da revolução, e de outro do crime. Se a desobediência civil é um desprezo para com as autoridades (também o são o crime e a revolução, contudo, ela “desafia não somente as leis dos Estados [...], mas toda ordem legal.” (p.69) “A segunda característica necessária largamente aceita pela desobediência civil é a não-violência e daí decorre que a desobediência civil não é revolução [...] O contestador civil compartilha com o revolucionário o desejo de ‘mudar o mundo’, e as mudanças que ele quer executar podem ser realmente drásticas.” (p.70)

 

É sob a égide da metanóia, isto é, da mudança radical das crenças e valores, não mais baseada na relação crime-castigo garantido pela violência e medo (terror estatal) que a apoliticidade de Jesus o leva à cruz e não a própria violência do Estado conduzindo-o à morte como criminoso político.

 

Para não nos alongar ainda mais, passemos pela referência feita a Jesus como idiotes. Esta referência, de Jesus o idiota, é feita por Nietzsche em seu texto “O anti-Cristo”. Conforme nos fala Renato Nunes Bittencourt:

 

Nietzsche pretende então conceder uma definição categórica para a personalidade de Jesus, definição essa que seria a senha para a compreensão do grande enigma que foi a vida do Nazareno: este seria um "idiota", não na sua depreciativa conotação usual do senso comum, mas no sentido original do termo grego, ou seja, de uma pessoa indiferente aos valores estabelecidos usualmente pela sociedade, pela civilização, pela coletividade humana, por não compactuar com as circunstâncias que envolvem a realidade cotidiana (NIETZSCHE, 2007, p. 35-36).” (Kriterion 52 (123) – Jun 2011: Revista de Filosofia - https://doi.org/10.1590/S0100-512X2011000100006)

 

Também Dostoiévski capturou esta dimensão de um Jesus Cristo idiota, apolítico. Retomemos às palavras de Bittencourt:

 

“Dostoiévski, no seu romance O Idiota, através da figura do príncipe Míchkin, apresenta a beatífica personalidade do indivíduo incapaz de compreender e adquirir domínio cabal sobre as vicissitudes externas que o rodeiam. Sufocado em uma atmosfera social marcada pelo oportunismo dos indivíduos e pelo ímpeto destes em fazer imperar os seus desejos egoístas, a mescla de inocência e sublimidade de Míchkin tornam-se disposições que se voltam contra ele mesmo, por sua inaptidão em pertencer ao jogo de manipulações dos seus interlocutores. Somente quem se destaca da moral de rebanho é capaz de intuir a essência crística e a distorção operada pelo estabelecimento eclesiástico ao longo da história. Com efeito, o tipo "idiota" está mais próximo da vivência evangélica do que a falsa consciência devota "cristã", que prega um Cristianismo deformado, prenhe de calúnia e deturpado, ou seja, um verdadeiro "Anticristo" (DOSTOIÉVSKI, 2002, p. 606).”

 

Assim nos parece que de fato Jesus é escandaloso para a sabedoria dos judeus e loucura para a filosofia grega. Aquele que enfrentava a Lei como meio de salvação e a política como totalidade da vida humana. Alguém que levou às últimas consequências sua apolicidade idiótica e seu amor como entrega voluntária que propunha não uma revolução, mas uma metanóia, uma transformação da interioridade que redundasse numa ordem eclesiástica. Dizer que Jesus, o homem histórico, foi um preso político é manter a violência legal e o Estado soberano como destino inelutável que torna a vida de Cristo uma quimera mítica. É a covardia de quem não mais tem a coragem de enfrentar a fé nas consequências mais radicais e abandonou a esperança como a providência de Deus na história. É abandonar o amor na cruz.

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