Uma narrativa sobre a mulher e a humanidade a partir do Gênesis bíblico.
- Marcos Nicolini
- Feb 25, 2017
- 9 min read
“De todas as árvores que estão no jardim, tomarás livremente, mas se tomardes da árvore do conhecimento do bem e do mal, certamente morrerás...a serpente, o mais astuto dos animais sobre a terra disse à mulher: Deus sabe que o dia que tomardes do fruto da árvore

do conhecimento do bem e do mal, sereis como Ele...então a mulher tomou do fruto, comeu e deu a seu marido que fez o mesmo...o homem viu-se nu, teceu uma roupa com folhas das árvores e cobriu-se...Deus veio ao Jardim e procurou o homem que se escondia perguntou: homem, por que você se esconde. O homem lhe disse que sabia estar nu e, por isso se escondeu. Deus lhe pergunta: quem lhe deu a saber que estavas nu?”
Muita arrogância de minha parte querer propor uma interpretação sobre a narrativa do Gênesis, sem as referências teológicas que são requeridas. Ainda mais quando percebemos que narramos sobre a narrativa alheia, especificamente aquela que nos propõe Michel Serres em “Histórias do Humanismo”. Ele, um filósofo sério, eu, um escrevente de textões; ele, uma leitura importante, eu, alguém que se deve excluir do facebook. Ele, alguém que toma seus pares à sério, eu, um patchworkista incontrolável. A ideia central do que escrevo é dele, diríamos, o grito de eureca vem dele, mas, de minha parte, vem o desvirtuamento, as modificações, os descaminhos. Ele acompanha a humanidade e seus passos civilizacionais, eu continuo nômade. Mas, adentremos os labirintos da narrativa genética, como diria Umberto Eco, temos a nosso favor que podemos apelar a um início.
No início os Deuses (Elohim) criaram os céus e a terra. Havia separação entre céu e terra, a terra era sem forma e vazia, e o espírito dos Deuses (Elohim) pairava sobre a face abissal da separação. Não sabemos o que havia antes do Gênesis 1: 1. Como dirá Santo Agostinho, na criação não havia o antes, posto que o tempo, tanto quanto o espaço (quer seja ele o espaço material, quanto a espacialidade que distingue, segrega e distancia a terra do céu), tiveram ali início. Os Deuses (Elohim) criaram os céus, portanto, o celeste teve um início, tanto quanto o terrestre e o tempo. Isto nos permite dizer que a narrativa bíblica fala de uma criação ex nihilo (proveniente do nada), mas muito mais ainda, nos fala de uma incomensurabilidade (o Criado e a criatura não se podem comparar por uma medida comum, haveria uma descontinuidade que torna o Criador e a criatura incomparáveis).
Este pequeno versículo do Gênesis 1: 1 nos permite perceber o quanto a narrativa bíblica se distingue das narrativas do gênesis grego. Os deuses gregos são cósmicos, estão no interior do cosmos e o cosmos e os deuses são desde sempre. A cosmogonia se confunde com a teogonia, o cosmos e os deuses se confundem e a confusão (a fusão com) se dá inclusive com o tempo. Os deuses são cósmicos, e estão no cosmos, por isso dizemos que o cosmos grego é encantado, está pleno de deuses. Contudo, na narrativa judeu-cristã há uma separação entre os Deuses (Elohim) e a criação, o mundo criado (céus e terra), o que implica num desencantamento do mundo cristão.
O importante na leitura judeu-cristã, para nós aqui, é percebermos que os Deuses (Elohim) criam algo que é distinto de si. Para os gregos os céus é Ouranos, a terra é Gaia e o tempo é Kronos. Para os judeus-cristãos há Deus (YHWH) e há os céus, a terra e o tempo, em que o criador e a criatura são distintos e incomensuráveis: medidas diferentes, que não se podem comparar ou estabelecer relações de continuidade. Os Deuses (Elohim) ao criarem criam o que vai além de si, transcendem a si, dão ao surgimento aquilo que não é algo de si. Os deuses gregos ao produzirem, tomam elementos cósmicos. O homem e a mulher na narrativa grega são distintos, antagônicos, conflituosos e são produzidos (produzir é um agir em prol do vir a ser) a partir de elementos cósmicos, inclusive divinos. Por conta do ardil do homem, em conluio com Prometeus, os deuses produzem Pandora, a fim de atormentar o homem. Homem e mulher, sobretudo, são deuses mortais, pois tanto coparticipam no cosmos, quanto têm em si a presença dos deuses.
Na criação bíblica homem e mulher não compartilham da divindade, antes são feitos do pó da terra e um dia retornarão ao pó da terra. No feitio do homem e da mulher, são utilizados os mesmos elementos materiais e eles se complementam, enquanto se diferenciam. Não há entre ambos relação de dissimetria e de submissão. Homem e mulher são colocados no Jardim do Éden e no meio do Jardim há uma árvore cujo fruto é o do conhecimento do bem e do mal. Deus (YWHW) diz ao homem que no momento que comerem do fruto conhecerão o bem e o mal e certamente morrerão. Tem-se dito que esta é uma ordem divina para que o homem não coma do fruto, sob o risco de vir a morrer.
Aqui que as coisas se complicam. O Jardim do Éden, como nos lembra Michel Serres, lembrava a eternidade, ou seja, aquela dimensão espaço-temporal em que tudo permanece igual a si mesmo, em plena identidade. Tudo se passa sob a lei da repetição, da igualdade absoluta, da identidade, do controle e da previsibilidade, em que o mundo e o homem são mais do que contíguos, são contínuos. Sabe-se o que irá acontecer amanhã, pois é o mesmo que aconteceu ontem. O homem ali era um animal entre animais, não consciente da morte e nem agente de transformação de sua condição. Cabia ao homem, como aos animais, o hábito obediente à natureza. O homem posto no Jardim do Éden apenas precisaria saber que a obediência, isto é, o hábito, garantiria sua perpetuação, sua vida eterna.
No entanto Deus (YWHW) coloca no meio do Jardim do Éden uma árvore cujo fruto confere conhecimento e abre a existência para a morte. A negação divina é posta como um convite: “não comas, pois haverás de ter o conhecimento sobre o contingente e ter a consciência da morte.” Não é uma proibição, mas um alerta, como quem dissesse: “esta árvore é a que ocupa o lugar central na criação, por meio dela o animal humano, entre todos os animais, se distinguirá pela ação do conhecimento, mas tal conhecimento trará consigo a consciência de um ser para a morte.” A centralidade do conhecimento está em que permitiria ao humano saber que o hábito, a repetição, a identificação ao imutável não é a vida. Tomar do fruto que oferece o conhecimento do bem e do mal, trazendo consigo a consciência da morte, aponta para a vida, fora da jaula do hábito, da repetição e da identidade essencial.
A árvore cujo fruto é o conhecimento do bem e do mal, que confere a consciência da morte, não é posta como uma tentação contínua ao humano, mas como um convite ao animal humano, oferecendo a ele uma diferenciação diante dos demais animais, tornando-o agente de sua vida. Contrariamente ao que pareceria numa leitura inicial, não tomar do fruto do conhecimento do bem e do mal seria o erro do humano, pois o manteria como uma animal, preso ao hábito, à repetição, à identidade de si mesmo, fundado na crença de uma obediência que lhe conferiria a eternidade. Comer deste fruto lhe traria a consciência da morte, mas o tiraria da tirania da lei da eternidade, da igualdade, da identidade, do hábito, da inconsciência para a vida. A vida não é o que provamos quando há a ausência de riscos e mudanças, mas o que ocorre para fora dos controles e do habitual. A vida é a descontinuidade que perpassa o contínuo, são os acontecimentos que marcam o tempo, são as mudanças imprevisíveis e imprevistas. A vida é o incontrolável. O Éden era a utopia da identidade e da igualdade, de um lugar seguro e constante, de uma eternidade revelada na existência vital da humanidade. O Jardim do Éden é o não-lugar de onde os humanos deveriam escapar.
A tentação do humano era não comer do fruto do conhecimento do bem e do mal e manter-se em sua bestialidade identificado aos deuses. Isto é, uma vez que o homem e a mulher não comessem do fruto, não teriam o conhecimento do descontínuo, da mudança, do incontrolável, tal qual os animais, mas também não teria o saber sobre a morte, trazendo em si uma certeza de imortalidade, como a dos deuses. Não comer lhe tornava prezo ao habitual e lhe conferiria uma identidade com os animais e com os deuses. O homem se nega a tomar do fruto a fim de manter a identidade da eternidade em si e, portanto, identificar-se com as divindades. A inocência lhe conferia a identificação como besta e deus, concomitantemente. Tomar do fruto lhe possibilitaria romper com sua identificação com as bestas e com os deuses, assumindo uma posição singular na criação: nem besta e nem deus, conhecedor e consciente da morte.
A lei do Éden é a do hábito, da repetição e da identidade, cujo sentido é o da igualdade absoluta entre besta e deuses, a partir do humano. Devemos lembrar, no entanto, que os Deuses (Elohim) criaram algo incomensuravelmente distinto de si, ex nihilo. O movimento da criação é o da transcendência de si, ir além de si para o outro, isto é, o acontecimento criativo não está submetido à lei do hábito, da repetição, da identidade. A criação no Gênesis bíblico difere daquela das narrativas dos gregos, nas quais a produção de mundo é imanente ao que existe no cosmos. A criação na narrativa bíblica traz consigo a ruptura, o acontecimento, o imprevisível. Tomar do fruto do conhecimento do bem e do mal é agir, pro-agir em sintonia com o movimento divino sem se identificar com o divino, antes, romper com tal identidade ao ter consciência de um ser para a morte.
Enquanto o homem mantém-se sob o domínio de uma tentação de manter-se sob a identidade da besta-divina, a mulher move-se no sentido da ruptura da lei do Éden. A mulher não rompe com Deus (YHWH), mas rompe com o Éden, com a proposição de uma bestialidade-divina. A mulher toma do fruto do conhecimento do bem e do mal pois é isto que o convite divino ao humano espera do humano: sua humanização. Enquanto o homem peca, isto é, desvia-se do sentido esperado para o animal, que seria a humanização do animal humano, a mulher acerta ao mover-se n sentido do incontrolável, do acontecimento, do inesperado e inusitado. A mulher, negando-se à obediência à lei do habitual, da repetição e da identidade que iguala o humano às bestas e aos deuses, move-se para a produção ex nihilo da humanidade. A humanidade passa a conhecer, tal qual Deus produz conhecimento, mas torna-se consciente da morte.
O humano passa a ter consciência de sua humanidade, vê-se nu. Qual animal que estando nu, percebe-se nu? O aceite ao convite e o movimento da mulher produz na humanidade a consciência de uma abertura a um vir-a-ser do humano, sempre em aberto. O humano torna-se esta abertura ao conhecimento (tal qual YWHW) incompleto, enquanto consciente de sua morte, o que o distingue dos deuses e das bestas. O homem, o humano macho, habituado à sua bestialidade-divina, mas consciente de sua abertura à humanidade, posto nu diante de si, envergonha-se de sua nudez, isto é, de sua humanidade inabitual, buscando esconder-se sob tecidos. Quando Deus (YHWH) lhe pergunta sobre como obteve consciência da nudez, de sua humanidade, o homem nega-se a dizer que moveu-se, como Deus, para fora de sua identidade, habitual, em favor de uma humanidade sempre a via-a-ser.
Se esta perspectiva se mostra plausível e viável, então, a primeira coisa a destacarmos é que a mulher não é aquela que introduz o pecado na humanidade, mas a que, negando-se ao erro da habitualidade, da repetição e da identificação como besta-divina, faz mover o humano no sentido de uma abertura à humanização, que conta com o vir a conhecer e a consciência da morte. Isto implica em dizer que o pecado, o erro está no sentido oposto, aquele que quer retornar o humano ao Éden, aquele que busca uma natureza perdida, uma inocência que o colocaria novamente como o deus, que caído, retornaria à casa. A narrativa aponta para uma incompletude do saber e uma experiência (o movimento para o limite exterior do ente em vista do ser) com o Ehyeh Asher Ehyeh (Eu serei o que vier a ser).
A segunda coisa é que a narrativa bíblica não trata de recolocar o homem no céu, caminho buscado pelos construtores de Babel, pelo rei de Tiro e da Babilônia e aquele retratado na tentação de Jesus. A narrativa bíblica seria aquela de um convite divino a uma humanidade que escapa da tragédia, isto é, das mímesis, das repetições, do inelutável. A narrativa bíblica seria aquela simétrica com as palavras de Jesus, quando disse, “venha a nós o teu reino”, isto é, de uma humanização do humano, enquanto experiência de um ser-para-a-morte. A narrativa é um convite à humanização como experiência da transcendência resignificadora da imanência. O convite a uma vida que ultrapassa os limites do vigor imanente. A esperança para além da razão fundada no fato e no imediato, tendo em vista o incontrolável que é vida.
Eva, então, não é a que traz ao mundo o pecado, mas o Emanuel, a abertura de um divino em nós (o conhecimento), em meio à consciência de morte. A esperança que o amor seja mais forte que a morte. Que a tragédia, o inelutável do imanente, não pode reter a humanidade, a vitalidade que está além do hábito, da repetição, da identidade, do igual destino de todos as bestas-divinizadas.



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