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- Marcos Nicolini
- Jun 8, 2023
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Como se lê, “o homem é a medida de todas as coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são”, isto é, quando se lê as palavras que permaneceram de Protágoras.
Devemos, também, lembrar sobre a verdade como correspondência (ou realista), aquela que diz que a verdade é “dizer do que é o que é e o que não é do que não é.” Haveria um estado de coisas e uma dada representação pela linguagem. A verdade se dá quando a representação pela linguagem corresponde ao estado de coisas: ser ou não-ser. Se eu digo que há um elefante no meio do meu jardim, será verdade se e somente se houver um elefante no meio de meu jardim (aqui me lembro da introdução deita por Paulo Ghiraldelli ao livro de Davidson, “ensaios sobre a verdade” e o artigo na Polémos, de Matheus C. do Nascimento, “Teorias da verdade como correspondência”).
A mentira, no entanto, é um pouco mais complexa, pois não se trata apenas de não haver correspondência entre a representação pela linguagem e o estado de coisas. A mentira tem a ver com obter vantagens a partir da manipulação. O mentiroso não apenas representaria o estado de coisas de modo distorcido, como o faz a fim de obter alguma vantagem para si, como por exemplo, impor ao outro um domínio ou vontade de poder. No entanto, a não correspondência, para longe da mentira, pode ter a ver com desconhecimento, imprecisão, confusão, engano, etc (neste ponto lembramos de Franca D’Agostini em “Mentira” e de Santo Agostinho, em “sobre a mentira”).
Voltemos ao homem de Protágoras, mas, por conta das convenções atuais, deveríamos chamá-lo de humano, assim, o que redundaria em representar falsamente como humano o homem de Protágoras. Mas dizer “humano” faz com que percamos a sutileza desta fala protagórica. O sofista não está falando necessariamente da humanidade, mas do indivíduo, deste ou daquele indivíduo, do homem enquanto singularidade. Quer dizer ele: “o homem como indivíduo é a medida de todas as coisas e as coisas são medidas por cada singularidade de um homem.” Transformar o homem em humano é perverter a correspondência entre a representação singular e o que a diz, portanto, proferir uma mentira, ou enganar-se no dizer (aqui me dou seguindo, mesmo ao longe, a Feyerabend em seu “Adeus à razão”, mais propriamente entre as páginas 29 a 110).
O indivíduo representa linguisticamente as coisas como elas são, ou representa-as como não são. Em outras palavras, haveria um estado de coisas e tais são representadas pelo indivíduo, no que são e no que não são. O homem, o indivíduo em sua singularidade, representa o estado de coisas de tal modo que diz o que é o que é e o que não é o que não é. O indivíduo é verdadeiro, ou seria, o indivíduo/homem é a verdade? Seria o Relativismo da Democracia o lugar da apuração da verdade, ou deveríamos deixar isto à cabo dos especialistas, dos estudiosos, dos acadêmicos, dos filósofos?
Neste momento nos deparamos como duas questões. Primeira, da fragmentação relativista da verdade, pois que cada homem/indivíduo representaria a partir de si o estado de coisas que o afetam e tal representação seria verdadeira; contudo, não é absurdo pensar que haveria miríades de representações conflitantes, sem, no entanto, haver um fórum de decisão ou de ajuste de representações, antes, confrontos de verdades. A segunda questão é saber se o homem, ou, aqui, a humanidade é ou pode ser fundamento de si mesmo ou lugar de onde se pode representar a verdade. Perguntar-nos-íamos se o humano se identificaria com a verdade, isto é, se há uma instância fundante para a verdade e tal instância poderia ser nomeada pelo nome de homem. Aqui cabe a pergunta: há ainda algo que podemos nomear de humano? Tendo alcançado o fim do humano, transcendemo-lo de tal maneira que estamos num pós-humano, no inumano, na ausência de representação daquilo que algures foi descrito?
Alternativa seria dizer que não há instância representacional que possa dar conta do estado de coisas, quer seja tal estado o humano, quer seja quaisquer objetos que estejam postos diante dos afetos daquela coisa que alhures foi descrita como homem. Ou seja, que o próprio estado de coisas seria ficcional, ou, como se queira, consensual, ou, em termos mais adequados, uma instância aristocrática em que haveria um consenso acadêmico o qual se imputaria como a verdade de todos. (consensual ou convencional, passando do fundado para o aceito como descrição coerentista – dentro de um jogo de linguagem ou em meio ao rizoma linguísitco -, ou justificada – por meio de clausulas circulares.
Não apenas o homem, ou se desejarem o humano, é medida de todas as coisas, como tais coisas não são uma realidade para a qual possamos representar verdadeiramente. Estaríamos fadados ou à mentira (dizer que há uma representação linguística proferida pelo homem, ou por uma instância superior e aristocrática que daria conta de certo estado de coisas, algo sabidamente falso), ou fadados a dizer coisas sabidamente sem teor de verdade mas que obtém consenso de um grupo dominante, ou que são legitimadas – lembrando de Max Weber e sua definição de Estado. Ou mentimos ou falamos vacuidade: ou impomos desejos privados (de um grupo) à totalidade, justificando-o como interesse universal, ou proliferamos vozes num mundo relativista-fragmentário.
De qualquer maneira estaríamos diante de uma fragmentação relativista das representações de estados de coisas; e estaríamos diante da ausência de uma instância que pudesse ajuizar e determinar qual representação é a verdadeira, qual é a enganosa e qual é a mentirosa, sem o uso da mentira ou da violência (basta ler as primeiras páginas do texto de Michel Foucault, “Em defesa da Sociedade” para chegarmos a este veredito). A solução não é a escolha consensual de uma instância de ajuizamento e arbítrio da verdade, pois o consenso exige um lugar de verdade reconhecido por todos. Não vivemos um tempo de consenso, mas de dissenso maniqueísta proliferado por uma política niilista.
Temos, aqui, de dar um passo para trás e dizer: o homem medida de todas as coisas não é medida de coisa alguma, isto é, nada pode ser medido pelo homem, pois o próprio homem não é medida para si mesmo. Ainda mais: aqui se pode dizer que a ausência de medida é a medida de uma ausência. O homem já não é. Uma medida é algo que se fixa e passa a medir, enquanto o homem é transitivo. Hoje mede uma coisa com certa medida, amanhã sua medida é desmedida.
Juntamente com a desmedida, a ausência de medida, foi-se o homem e com ele a verdade. Toda narrativa que reclama uma verdade que se possa contrapor à mentira, mente ao não declarar que no interior recôndito desta justificativa se esconde a pretensão de um poder maquiavélico de dominação. A verdade, hoje, é o slogan (grito de guerra) que remete à arregimentação de certos ânimos de enfrentamento do contraditório a fim e eliminar seu proponente.
O homem, o verdadeiro humano é aquele que ao ouvir o slogan reduplica-o e lança-se freneticamente contra o falso que é a mentira. O verdadeiro humano, medida de todas as coisas, que realiza o mando do slogan de permitir viver-fazer morrer, reage insanamente ao estímulo da aristocracia que ainda vive como os grupos guerreiros lutando para impor suas verdades, procriar-se, expandir-se.



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