Experiência do espelho
- Marcos Nicolini
- Jul 22, 2016
- 9 min read
2 Coríntios 3: 1-18
Conta-se o mito que um dia o jovem Narciso estava andando pela floresta e avistou um lago de águas límpidas e profundas. Ocorreu, porém, que neste avistamento espantou-se que em meio às águas lhe olhava um lindo jovem por quem logo se apaixonou. Como diz o

poeta moderno: não há amor que não seja à primeira vista. Narciso se apaixonou, mortalmente, por aquele que estava diante de si e que não tirava os olhos de seus olhos. Tal foi o enamoramento que Narciso se lançou nas águas profundas e morreu de amor. Narciso é aquele que morre de amores pela imagem de si mesmo que vê refletida como que por espelho. Há uma alteridade determinada pelo eu e o si que resulta no enamoramento do eu a si mesmo imaginado, fazendo-se se perder nesta duplicação radical e mortal. Narciso se enamora pelo que está fora de si, mas que é a imagem de si não reconhecida.
Há uma outra figura, que poderia nos fazer confundir com Narciso. Estaríamos falando, grosso modo, do autista. O autista é aquele que o eu se volta para si mesmo, contudo, sem enamoramento e sem alteridade, sem o outro, sem a imagem exterior de si pela qual morreria de amores. O autista não morre de amores por qualquer um, nem mesmo por sua imagem refletida em espelho, seu eu é absoluto e unívoco. É possível que pensemos nele em crise diante de um espelho que lhe apresente um outro que não o eu preso em si. O autista é a identidade do eu e do si mesmo num abismo mortal, que nega qualquer alteridade, qualquer imagem externa. O autista não reconhece o outro, qualquer alteridade.
Estamos tateando figuras de linguagem, colocadas aqui como metáforas, sem nos atermos às possíveis patologias. Tais narrativas tratam, aqui, do fechamento do humano sobre si mesmo e o lançam numa espécie de abismo de um eu ausente, inexistente, ainda que seja artificialmente produzido pelo narcisismo ou pelo autismo. Estamos pensando no humano fechado sobre si, apaixonado ou identificado, e que se precipitaria em sua própria morte, posto seu fechamento radical e abissal. Este fechamento homicida poderia, diria alguém, ser enfrentado pela religião, mormente a cristã. Poderiam pensar num cristianismo que daria conta deste fechamento, ao deslocar o eu individual do Eu absoluto, rompendo com isto a ensimesmice, o solipsismo. Um Eu absoluto, fundamental, uma morada segura e certa, no qual o eu individual encontraria repouso e descanso, desta maneira, o eu individual pode se identificar com o Eu absoluto, restando a questão de sua diluição, se perda nele, perda esta que levou Thomás de Aquino de confrontar com Averróis.
O eu verdadeiro do eu individual estaria fora de si, e isto o salvaria do autismo ontológico, no reconhecimento do alter-eu ideal e exterior. O eu verdadeiro do eu individual não seria, contudo, a imagem espelhada de si mesmo, pela qual me apaixonaria, e isto o salvaria do narcisismo ontológico, no reconhecimento do alter-eu como um outro cuja imagem não se projeta no real. O verdadeiro eu é o Totalmente Outro, cujo olhar é impossível, portanto, a despeito de Feuerbach, não seria um ideal hiperbólico das projeções narcisistas e nem um abismo mortal da identidade suicida. Perguntamo-nos, aqui, se não seria esta a solução aproximada proposta por Lacan.
Tudo pareceria muito simples, pois o cristianismo teria dado conta do narcisismo, do autismo e de Feuerbach em uma tacada, ao preço do enfrentamento da diluição do eu individual no Eu totalmente outro do Pai. Como dizem: três coelhos com uma cajadada só. Bastaria ao humano olhar para Deus, isto é, Cristo e se espelhar naquele que é além, no entanto, humano, isto é, não é a imagem do humano, retendo em si a semelhança do inapreensível. Cristo, em Jesus, seria uma espécie de além-do-homem, avant-la-lettre, de Nietzsche, ou, em outros termos, o pós-humano, um vir a ser já anteriormente presente, quando deixássemos para trás as picuinhas de um humanismo absorvido pelo ensimesmamento, solipsismo autista, pela paixão de si, pelas neuroses hiperbólicas de ideais transcendentes.
Este movimento para além do humano, da humanidade para o além-do-homem, o pós-humano, implicaria no abandono de tudo e todos que para trás ficaram e um avanço para um não lugar, um aberto obscuro, incerto, não dado ao olhar. Um descompromisso com a humanidade num movimento para o sobre-humano. O além-do-homem cristão se fundaria numa projeção de um Cristo, humano em Jesus, mas que traz em si o Logos eterno, inacessível, imagem e semelhança de Deus inapreensível, inapropriável. Seria imanente enquanto humano, mas transcendente enquanto divindade. Diante do Cristo Jesus, estaríamos no movimento de esquecimento de tudo, para o nada, referenciado apenas nesta disposição de adentrar o aberto. Neste momento podemos nos permitir um espanto, o qual, numa desatenção, poderia aproximar Cristo do Übermensch de Nietzsche.
Espanta-me aquela imagem de um homem, com a esposa que o acompanhava, respondendo a um ide. O homem velho, igualmente sua companheira, abandonando suas referências seguras, sua casa, seus pais, seus parentes, suas histórias e lançando-se no vazio. O que me intriga é a possibilidade de sair sem saber para onde ir, como ir. Um casal que ousou dar as costas para o conhecido, lançando-se ao nada. Indo definitivamente e de maneira singular por um caminho não percorrido, não passível de ser percorrido, um ultrapassador de rios, um habyru. O intrigante é sermos instados a uma herança quando cremos que podemos ser filhos desta fé, abraâmica: de uma resposta ao aberto. Abraão, o pai da fé, é alguém que ousou abandonar o conhecido diante do aberto, do obscuro, do incerto. A fé de Abraão não o move da incerteza para a certeza, do desconhecido para o conhecido, antes, do certo, do apreendido, do conhecido, para o incerto, desconhecido e ao que se abre como convite.
Entretanto, fomos acostumados a pensar que a fé nos coloca em um lugar de segurança, de certezas, e, desgraçadamente, pensamos nisto a partir das referências modernas. O homem moderno é originário desta pretensão de saber, controlar, prever e fazer uso. O homem moderno é tributário deste narcisismo que faz a natureza espelhar nossa face, ou desta razão autista que não reconhece qualquer alteridade além de sua identidade abissal. Podemos lembrar que uma das distinções possíveis entre o civilizado e o bárbaro são as técnicas, os métodos, que produzem saberes, garantem o controle, nos permitem prever e são úteis para diversos fins. Lá trás, os gregos diziam que os bárbaros comiam cru, enquanto eles coziam, lemos isto na Odisséia. A civilização não apenas é marcada pelo fogo, mas pela produção, manutenção e uso do fogo em diversos afazeres: culinários, metalúrgicos, aquecimento, etc. O fogo é a arque-ferramenta da civilização que a segrega da barbárie. A civilização resulta da experiência humana com o fogo.
O homem moderno é o animal da experiência, não só isto, mas a experiência estaria no centro de nossa cultura e de nossa civilização. A experiência é parte do método científico e sabemos mais ou menos do que consiste: produzimos em laboratório, o mais aproximadamente possível, as condições de ocorrência de um determinado fenômeno, garantimos que este fenômeno ocorrerá tantas vezes quantas desejarmos, e enquanto reproduzimos o fenômeno, perguntamo-nos “o que é isto que está ocorrendo?”, “qual a lei que rege este acontecimento?”, até que possamos descrever o acontecimento e a lei de sua repetição. Este saber da experiência, do método científico, permite ao homem moderno o controle do fenômeno, e por meio da lei de sua ocorrência, a previsão, isto é, a garantia que dadas as condições prévias, ocorrerá no futuro aquele acontecimento. Este saber, controlar, prever nos permite produzir dispositivos, equipamentos que torna útil para nós o fenômeno.
Uma vez que já apontamos para Ulisses e a Odisséia, para o fogo, devemos lembrar do fósforo, do isqueiro, de todos os dispositivos que permitem que o fogo nos seja uma experiência cotidiana. Em outras palavras, a lei da produção do fogo, no momento que dele precisarmos, saiu do laboratório e se deu a nós como experiência banal, cotidiana. A experiência do cientista, tornou-se-nos acessível como experiência por meio de uma técnica. A experiência como a produção repetitiva de um fenômeno, tantas vezes quantas desejarmos a repetição do fenômeno. O fogo que outrora fora sagrado e venerado no meio das cidades civilizadas, tornou-se banal, retornando aos lares sem os deuses, longe das lareiras dos lares que cultuavam a tradição.
O culto da tradição com sua oralidade, a técnica da escrita como arquivmento e a gráfica como reprodutividade, e o esquecimento da velha experiência. Dizíamos, até pouco tempo atrás, que as pessoas mais velhas eram mais experientes do que as mais jovens. Esta experiência da idade, todavia, deixou de ser o lugar central de nossa civilização. No passado, o conhecimento era memorial, rememorativo, pois a sobrevivência do humano estava atrelada à reprodução dos saberes adquiridos no passado. A vivência exitosa deveria ser rememorada e recontada para que os mais jovens a reproduzisse e assim garantissem a vida humana. A experiência, como a aquisição e preservação de um feito exitoso, transpassava as gerações, tornando-se tradição. Os mais velhos seriam aqueles que mais vezes ouviram as mesmas histórias e, com isso, podiam reproduzir mais acuradamente. Os meios de armazenamento de conhecimento e as multiplicações e multiplicidade de experiências tornaram a tradição oral e os velhos obsoletos. O jovem e os vícios se tornaram centrais em nossa civilização.
O jovem aponta para o novo, para o que se abre como inusitado, o convite à experiência e para a experimentação. O jovem é a modernidade no que há de mais moderno, a novidade do novo, e que pode se entregar viciosamente ao vício. O vício é o próprio da experiência moderna, é a reprodução ilimitada de um acontecimento, de um fato, de um fenômeno. A reprodução experiencial não ocorre trasgeracionalmente, mas indefinidamente no tempo de uma juventude. É a dependência moderna à repetição, enquanto a repetição se torna a única coisa estável. A modernidade é a experiência da repetição ilimitada, é a dependência da experiência como repetição. Ao repetir viciosamente experiências, a modernidade menos produz o novo e mais reproduz o vício da dependência à lei do novo que garante a previsão da repetição. Não nos importa mais qual será a novidade, antes, precisamos da experiência da novidade, a repetição ad infinitum da experimentação. Como num eu autista, identificamos nosso abismo de si com a repetição do tudo nadificante.
O homem moderno ansioso em se livrar das garras nefastas da tradição, da dependência do passado para garantir que o futuro seria conhecível, estável, inflexível, encontra-se sem futuro, num movimento acelerado da experimentação da novidade. O novo responde à mesma lei da tradição, pois o novo já está dado na experiência, na reprodução de experimentações que tornam o futuro como reprodução do passado, garantindo estabilidade no presente. O vício, hiperbolizado na modernidade, garante este fundamento ontológico ao homem: vício químico, psíquico, laborial, sexual, etc., escolhemos as experiências e fixamo-nos ali em uma reprodução insana.
O homem moderno lutando contra a natureza, construiu uma fábrica de espelhos sobre o lago de águas límpidas. Agora não precisa mais mirar o espelho d’água, pois para qualquer lugar que volte seu olhar, vê-se imaginado ali, indefinidamente. O homem moderno consegui sincretizar numa mesma experiência o Narciso-autista, tal síntese se dá na imanência da Razão, no homem medida de todas as coisas. Mas a experiência humana não se resume a apenas ser a da reprodução visando controle e previsão, visando a sobrevivência e redução de riscos. Conforme dissemos, há uma herança abraâmica que responde a um ir arriscado ao encontro do desconhecido, ao que foge ao controle e à previsão. Há a esperança na ruptura da centrifugação do eu de si e o eu imaginado, reflexionado numa alteridade artificial dada pelo espelhamento. A herança abraâmica ao olhar para o espelho, vê ali não a si, mas alguém que não se reconhece inteiramente como si mesmo.
"Porventura começamos outra vez a louvar-nos a nós mesmos? Ou necessitamos, como alguns, de cartas de recomendação para vós, ou de recomendação de vós? Vós sois a nossa carta, escrita em nossos corações, conhecida e lida por todos os homens. Porque já é manifesto que vós sois a carta de Cristo, ministrada por nós, e escrita, não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas nas tábuas de carne do coração. E é por Cristo que temos tal confiança em Deus; Não que sejamos capazes, por nós, de pensar alguma coisa, como de nós mesmos; mas a nossa capacidade vem de Deus, o qual nos fez também capazes de ser ministros de um novo testamento, não da letra, mas do espírito; porque a letra mata e o espírito vivifica. E, se o ministério da morte, gravado com letras em pedras, veio em glória, de maneira que os filhos de Israel não podiam fitar os olhos na face de Moisés, por causa da glória do seu rosto, a qual era transitória, como não será de maior glória o ministério do Espírito? Porque, se o ministério da condenação foi glorioso, muito mais excederá em glória o ministério da justiça. Porque também o que foi glorificado nesta parte não foi glorificado, por causa desta excelente glória. Porque, se o que era transitório foi para glória, muito mais é em glória o que permanece.Tendo, pois, tal esperança, usamos de muita ousadia no falar. E não somos como Moisés, que punha um véu sobre a sua face, para que os filhos de Israel não olhassem firmemente para o fim daquilo que era transitório. Mas os seus sentidos foram endurecidos; porque até hoje o mesmo véu está por levantar na lição do velho testamento, o qual foi por Cristo abolido; E até hoje, quando é lido Moisés, o véu está posto sobre o coração deles. Mas, quando se converterem ao Senhor, então o véu se tirará. Ora, o Senhor é o Espírito; e onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade. Mas todos nós, com rosto descoberto, refletindo como um espelho a glória do Senhor, somos transformados de glória em glória na mesma imagem, como pelo Espírito do Senhor."
2 Cor 3: 1-18



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