Sois Elohim
- Marcos Nicolini
- Aug 19, 2023
- 7 min read
Diante estou de um Salmo intrigante e que é relembrado por Jesus-Cristo. A fala de Jesus-Cristo que nos abre a possibilidade de atualizar sua verdade, isto é, de nos oferecer seu estar entre nós e a nós como imitadores dele. Relembrar e atualizar o dito pelo salmista por meio daquelas palavras que sempre trazem o tom: “ouvistes o que foi dito pelos antigos...eu, porém, vos digo...”. Lê-lo a partir do Kerigma (mensagem e anúncio) do Euaggélion (boas-novas) de Jesus-Cristo em sua atualização como kenosis (esvaziamento).

Assim, ouvir o dito original como kerigma, sua atualização como euaggélion e sua veracidade como o advento da kenosis: o passado que se atualiza em vista de uma tensão de vir-a-ser. Voltemo-nos, por esta via, ao Salmo 82 e aqueles que nos possam auxiliar neste movimento de leitura.
1 Deus está na congregação dos poderosos; julga no meio dos deuses.
2Até quando julgareis injustamente, e aceitareis as pessoas dos ímpios? (Selá.)
3 Fazei justiça ao pobre e ao órfão; justificai o aflito e necessitado.
4 Livrai o pobre e o necessitado; tirai-os das mãos dos ímpios.
5 Eles não conhecem, nem entendem; andam em trevas; todos os fundamentos da terra vacilam.
6 Eu disse: Vós sois deuses, e todos vós sois filhos do Altíssimo.
7 Todavia morrereis como homens, e caireis como qualquer dos príncipes.
8 Levanta-te, ó Deus, julga a terra, pois tu possuis todas as nações.
Vamos tomar três grupos postos no texto: os que se tomam como elohim, os carentes de justiça (ao que se junta o clamante do último verso) e Elohim, aquele que julga com justiça. Elohim é a palavra utilizada pelo salmista que foi traduzida como deuses e também como Deus: sois elohim.
De um lado temos os poderosos, os deuses (elohim), os quais julgam de modo injusto e ímpio. Tais não conhecem, não entendem, ainda que pensem tudo conhecer e tudo saber, andam em trevas e fazem vacilar os fundamentos, isto é, a partir de seus conhecimentos e entendimento apenas produze um sem fundo carência e vacilo, embora ocultado pela astúcia.
Estes são chamados de elohim, não que o sejam, mas que se entendem como tais. Pensando tudo saberem, tudo conhecerem e terem a razão iluminada como uma brilhante estrela matutina, o que produzem é a demonstração da falibilidade do mundo, sua estrutura vacilante, abissal e nadificante, pura violência e indiferença ao sofrimento e à injustiça. Enquanto erguem para si monumentos à glória divina de si e por si mesmo. É em meio a estes que Deus se coloca e passa a julgar a injustiça e o pleito por justiça. Tais deuses (elohim) são mortais, infantis e frágeis, em suas pretensões de poder e juízo, enquanto produzem a injustiça e o vazio.
Para referenciarmos tais possibilidades interpretativas, tomemos a fala de Ezequiel, sobre os poderosos e sua pretensão de divindade:
1 Veio a mim esta palavra do Senhor: 2 “Filho do homem, diga ao governante de Tiro: Assim diz o Soberano, o Senhor: “No orgulho do seu coração você diz: ‘Sou um deus; sento-me no trono de um deus no coração dos mares’. Mas você é um homem, e não um deus, embora se considere tão sábio quanto Deus. 3 Você é mais sábio que Daniel? Não haverá segredo que lhe seja oculto? 4 Mediante a sua sabedoria e o seu entendimento, você granjeou riquezas e acumulou ouro e prata em seus tesouros. 5 Por sua grande habilidade comercial você aumentou as suas riquezas e, por causa das suas riquezas, o seu coração ficoucada vez mais orgulhoso... (Ezequiel 28)
Aqui basta para nosso propósito, mas vale como um convite à leitura.
Ezequiel anuncia este homem que se diz elohim, cheio de orgulho por seu poder e que diz em seu coração: sou elohim! Conquanto não passa de um humano (addam, alguém que veio da terra, do pó). Enquanto de Deus se diz YHWH (YaHWeH), aquele cuja impronunciação releva a suplantação da abissalidade nadificante. Na soberba o humano se projeta a si como deus, ao olhar para si e ver a maravilha de seu poder, o qual se funda na violência e no nada, isto é, em sua humanidade. Mas YHWH em sua veemente parousia (presença) faz vacilar a arrogância divinatória do humano, do pó.
Vamos procurar caminhar um pouco mais e tomar, com brevidade, cada verso deste Salmo 82, tendo como referência a fala de Ezequiel e apontando às falas de Jesus-Cristo.
Verso 1: Elohim se coloca confrontando elohim e os julga: “pensam vocês, poderosos, que são de fato elohim? Eu, Elohim, proferirei meu juízo a vosso respeito”;
Verso 2: Vocês que se dizem elohim, por que julgam com injustiça e se juntam com os ímpios. Lembrem-se do Salmo 1, tais são os que Elohim rejeita e com os quais vos ajuntais;
Verso 3: Elohim diz qual é a justiça que Ele proclama: acolher, julgar a súplica do órfão, do pobre, do aflito e do necessitado, e não se reunir para glória própria;
Verso 4: O juízo contra elohim continua e Elohim diz: livrai o pobre, o e necessitado, tirai-os das mãos do que comete impiedade. Elohim é o que ouve a súplica e age em favor do injustiçado e do aflito e isto não é obra humana: nem o ouvir e nem a justiça;
Verso 5: Os elohim pensam saber, mas não sabem, pensam conhecer, mas não conhecem (tais quais os amigos de Jó que pensando saber e conhecer, apenas aprofundavam o mal). Aprofundar o mal é tornar abissal o vazio sem fundo da existência humana, resultante da divinização do poder: o poder é vazio como o não-ser, contemplando apenas a si, como um deus dos filósofos;
Verso 6: Neste momento Elohim ratifica a soberba dos que dizem de si “somos elohim”: “sois elohim”, isto é, como o rei de Tiro, cheios de orgulho e soberba, olham para si, este vazio abissal e glorificam-se a si: eis o juízo de Elohim a elohim. Conquanto, aos pobres e necessitados a eles Elohim diz: sois filhos do Altíssimo.
Verso7: E segue o julgamento de Elohim a elohim, tal qual o fará por meio de Ezequiel: pensando serem elohim, são apenas homens mortais e suas vidas são como nada; são produtos e produtores produz de sabedoria e conhecimento sobre o abismo vacilante;
Verso 8: Os pobres e necessitados, os filhos do Altíssimo dizem: somos nada sem ti. Os filhos do Altíssimo são aqueles que reconhecem a kenosis presente no querigma do evangelho.
Qual a questão que paira, então? Os elohim, diferentemente de Elohim, são os que detém o poder de fazer justiça, contudo, apenas multiplicam a pobreza e a justiça. Deus, ironicamente, os chama de elohim a fim de firmar a diferença entre aqueles que sonegam a suplica e aprofundam a injustiça por meio da absalidade do poder e Ele, que ouve, acolhe e responde com justiça. Os elohim são os que jactam em sua glória própria, pensando terem sabedoria e conhecimento, mas que apenas produzem a impiedade e injustiça, a pobreza e a carência: engordam sobre a impiedade.
Podemos, a partir desta perspectiva, tomar o contexto e as palavras de Jesus-Cristo:
22 Celebrava-se a festa da Dedicação, em Jerusalém. Era inverno,23 e Jesus estava no templo, caminhando pelo Pórtico de Salomão.
24 Os judeus reuniram-se ao redor dele e perguntaram: "Até quando nos deixará em suspense? Se é você o Cristo, diga-nos abertamente".
25 Jesus respondeu: "Eu já disse, mas vocês não creem. As obras que eu realizo em nome de meu Pai falam por mim, 26mas vocês não creem, porque não são minhas ovelhas.
27 As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem.
28 Eu lhes dou a vida eterna, e elas jamais perecerão; ninguém as poderá arrancar da minha mão.
29 Meu Pai, que as deu para mim, é maior do que todos; ninguém as pode arrancar da mão de meu Pai.
30 Eu e o Pai somos um".
31 Novamente os judeus pegaram pedras para apedrejá-lo, 32mas Jesus lhes disse: "Eu mostrei muitas boas obras da parte do Pai. Por qual delas vocês querem me apedrejar?"
33 Responderam os judeus: "Não vamos apedrejá-lo por nenhuma boa obra, mas pela blasfêmia, porque você é um simples homem e se apresenta como Deus".
34 Jesus lhes respondeu: "Não está escrito na Lei de vocês: 'Eu disse: Vocês são deuses'?
35 Se ele chamou 'deuses' àqueles a quem veio a palavra de Deus (e a Escritura não pode ser anulada),36que dizer a respeito daquele a quem o Pai santificou e enviou ao mundo? Então, por que vocês me acusam de blasfêmia porque eu disse: Sou Filho de Deus?
37 Se eu não realizo as obras do meu Pai, não creiam em mim.
38 Mas, se as realizo, mesmo que não creiam em mim, creiam nas obras, para que possam saber e entender que o Pai está em mim, e eu no Pai".
39 Outra vez tentaram prendê-lo, mas ele se livrou das mãos deles.
Este é um diálogo que Jesus-Cristo está mantendo, dentro do Templo em Jerusalém, com interlocutores que não estão definidos neste momento pelo escritor, no caso João. Contudo, tendo em vista a tensão presente aqui, podemos supor que sejam representantes do mesmo grupo ao qual Jesus-Cristo chamou de filhos do diabo (João 8: 44). Estes conhecedores da Lei estavam ansiosos por realizarem a justiça própria da lei, isto é, obter uma confissão de Jesus de que ele era o Cristo.
O mesmo desenho, a mesma arquitetônica que vimos anteriormente no Salmo 82, parece se apresentar aqui: de um lado aqueles que se dizem sábios e conhecedores, que valendo-se da Lei podem se colocar sobre a Lei e julgar conforme seus interesses e entendimentos, declarando a injustiça e punindo o transgressor. Ou seja: elohim. De outro lado aquele homem que não levando em conta ser semelhante a Deus, esvaziando-se de sua divindade, faz as mesmas obras de justiça e piedade que o seu Pai faz.
Assim, Jesus-Cristo não atesta neles a imagem e semelhança divina, antes, ironicamente, lhes aponta a similitude com o Salmo 82, como quem diz: tal qual aqueles que se autoproclamando helohim, ao olhar para sua grandeza e poder, contudo, nada mais são do que corruptos e injustos, não atentando paras as obras de piedade e justiça que se faz quando, esvaziados da falsa grandeza, atentamos para a súplica e as demandas dos pobres e necessitados.
Quando Jesus diz “sois deuses” (elohim) não está apontando para a divinização do humano, isto é, como quem dissesse: sois à imagem e à semelhança do Altíssimo. Mas, aponta para a arrogância dos que se crendo deuses promovem a injustiça, os poderosos que são como palha ao vento.
Estes Elohim são filhos da mentira, arrogantes e violentos, que em nome da Lei se colocam acima da lei, como um Legislador e julgam a justiça como injustiça. Ora, quem é aquele que está acima da Lei e julga com sabedoria e conhecimento? Este, no entanto, o faz com misericórdia e compaixão, não com arrogância e violência.
Assim, cada vez que apontamos para a humanidade como objeto destinado à similitude divina, em ser semelhante ou identificado com Deus, nada mais fazemos do que apontarmos para nossa arrogância e soberba, e legitimarmos nossas ações violentas, injustas, impiedosas e mortais.



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