Sobre o Pecado Original
- Marcos Nicolini
- Aug 30, 2020
- 7 min read
A Religião se opõe ao Conhecimento: esta é a ideologia que foi inculcada como forma de legitimar o movimento Iluminista, aquele que dizia iluminar o obscurantismo medieval-religioso. Mas será mesmo?
Esta oposição me intriga há décadas. No entanto, lá pelas tantas tive a oportunidade de ler um pouco Agostinho e uma coisa ou outra sobre Agostinho (devo estas lições ao Prof. Dr.

Moacyr Novaes da FFLCH-USP). Pude entender algumas poucas coisas sobre o Bispo de Hipona, uma delas, porém, é que ele não opunha Conhecimento e Fé, pelo contrário, opunha soberba e humildade, isto é, o Conhecimento nos leva até Deus, tendo em vista que o caminho para o Verdadeiro Conhecimento se abre com a chave da Fé. (Não podemos jamais nos esquecer da importância deste homem na formação do cristianismo como pensamento organizado).
De fato, a Fé seria mais do que uma chave que nos abre uma porta, antes, é a pedagoga que nos conduz desde a porta, através do caminho, até ao pleno Conhecimento de Deus. (quanta pretensão, mas vamos lá, mormente quando damos ouvidos a Jesus que diz: “a vida eterna é conhecer a Deus”).
Mas, resta ainda uma questão, a da ideologia Iluminista que opõe Religião e Ciência, Fé e Conhecimento. Ideologia esta que faz parte da crença comungada por Iluministas e Cristãos, em grande parte. Sim, muitos cristãos acham que ter Fé é opor-se ao Conhecimento, pois este desvia o homem de Deus. Muito estranho isto, pois Agostinho dizia exatamente o oposto: uma vez aberto a porta pela Fé, o caminho do Conhecimento nos leva inexoravelmente até Deus. O cristianismo está intimamente ligado ao Conhecimento.
No entanto, a aderência desta oposição se funda numa leitura do texto de Gênesis, quando Deus diz a Adão: “de todos os frutos que há no Jardim você pode comer, mas não o do fruto do Conhecimento do Bem e do Mal.” Assim, a ideologia nos propõe que entendamos assim este estrato: Conhecer é voltar-se contra Deus.
Continuemos na leitura deste relato, deste mito. Mais adiante Eva ouve a serpente, que perambulava livremente no Jardim, toma do fruto e dá uma mordiscada, e (dizem alguns) seduz Adão que também tira seu naco. Tendo comido o fruto proibido, que é o correspondente à queda original, pecado original, percebem-se nus e se escondem de Deus, tanto quanto escondem suas genitálias com folhas de parreira.
Deus, a certa hora, passa por ali e inicia uma conversa bem tensa, e pergunta: “quem disse a vocês que vocês estavam nus? Vocês comeram do fruto que eu disse para não comer?” Adão retruca e a coisa fica feia, a tal ponto que eles são expulsos daquele Jardim, ao qual jamais voltarão. Não existe retorno na Bíblia, mas sempre um andar para lugares inusitados. Uma vez que a porta foi fechada, esquece, sai andando. Não há no armário do tempo uma era de ouro à qual se pode desejar voltar. O tempo é linear e acontecimental.
Pronto, o pecado original tornou-se, para muitos, o Conhecimento do Bem e do Mal.
Entretanto, mais adiante, Deus fala consigo, (os cristãos diriam: “a Trindade dialoga”): “o homem e a mulher se tornaram como um de nós, conhecedores do Bem e do Mal.” (vamos guardar esta identificação aqui celebrada por Elohim: os humanos se tornaram como nós).
Uau! O que significa isto? Como assim? Os humanos se tornaram como Elohim, conhecedores do Bem e do Mal? Conhecer torna o humano como Deus? Mas o Conhecimento não seria o pecado original?
(Aqui devemos abrir um parêntesis: Elohim deveria ser traduzido por “deuses”, isto mesmo, no plural. Esta questão da pluralidade da divindade no monoteísmo judaico-cristão é enfrentada de diversas maneiras. Uma delas nos fala que a Torá fora escrita por grupos diferentes de pessoas. Certas partes teriam sido escritas por pessoas que se referiam a Deus como YHWH, ou, Javé, por isso tais escritos são chamados de Javistas; outras partes teriam sido escritas por pessoas que se referiam a Deus como Elohim, por isto tais escritos são chamados de Eloista. Há, segundo os eruditos, outras canetas que lançaram tinta na composição da Torá, mas não vem ao caso. Os cristãos trabalham isto como expressão da tensão entre o monoteísmo trinitário, onde Deus é um e três. Neste sentido que uma trindade que dialoga se torna pensável, uma vez que diálogo nos fala de um logos que atravessa uma distância. De minha parte gosto de pensar que Elohim me permite perceber em Deus o princípio ético, presenta já na concepção de um Deus dialógico. A ética apenas se torna possível a partir da alteridade, da distância e da aproximação, há de se ter um outro ao qual me dirijo e que me permite ir além do “eu” e voltar-me para o “tu”. Mas ir ao “tu” não a partir do olhar da teoria, que é o próprio princípio ativo da serpente do gênesis, ou seja, a serpente é o olhar que apreende, controla e se apropria; a serpente se espreita a fim de capturar. A ética é uma abertura ao “tu” hospitaleiro. Neste sentido, a ética está menos para “ethos” – como diria Heidegger, morada do ser – e mais para o “mores” latino, a composição de um modo de relacionamento. Elohim seria, então, a possibilidade de uma ética da hospitalidade dialogal por meio da qual o conhecimento se daria por troca e complementariedade. Fechamos o parêntesis.)
Ora, se assim o for, ou Deus (Elohim) está em pecado, pois Conhece, ou o Conhecimento não é o pecado original. Eu (seguindo a linha de Pascal) aposto na segunda alternativa: o Conhecimento não se opõe à Fé e a Religião não é contrária à Ciência. Portanto, a ideologia Iluminista que quer impõe, impingir uma oposição entre Conhecimento e Fé, Religião e Ciência, deve ser posta em questão, deve ser arguida em sua falácia.
Então, se o problema não está no Conhecimento do Bem e do Mal, que falha foi esta que redundou na expulsão do homem do Paraíso? (como podemos perceber, temos mais perguntas do que respostas, e isto é muito bom).
Então, apostamos na hipótese que Deus não peca, portanto, se Ele conhece conhecer não é pecado. Pelo contrário, a vida eterna é conhecer, e um conhecimento tal que nos permita uma intimidade com Deus. A intimidade aqui é dada pela hospitalidade dialogal possível na ética como reconhecimento. Ok, não alarguemos tanto o nosso horizonte.
Dito isto, podemos fazer um outro movimento. Se o conhecer não é idêntico ao pecado original, devemos sublinhar outro aspecto: o obter. O pecado não estaria no conhecimento, mas na aquisição. Nossa preocupação estaria voltada à aquisição de um bem e não no bem adquirido. Esta distinção é muito importante. O mesmo texto do Gênesis, o relato mítico da criação, diz que depois de ter feito tudo, viu Elohim que tudo quanto tinha feito era bom. Tudo inclui não apenas o cosmos criado, o céu e a terra, e tudo que neles há, como inclui também a árvore do conhecimento do bem e do mal. Tanto a árvore, como também o fruto desta, do conhecimento é bom e Deus se alegrou em tê-la feito.
Para esta tradição, não são as coisas per si que são boas ou más, mas algo outro. Temos que ir um pouco mais. Neste ponto nos lembramos de uma cena do filme “O advogado do diabo”, quando Milton (o diabo em pessoa) conversa com Lomax (seu filho que o rejeita) e num monólogo brilhante ouve-se satanás dizer: “Deus gosta de observar, é um bricalhão. Ele dá ao homem instinto. Ele dá este presente extraordinário e depois o que ele faz? Eu juro, para seu próprio divertimento, para seu próprio espetáculo cósmico particular, estabelece regras opostas, contrárias. E esta é a pegada maior: olhe, mas não toque. Toque, mas não prove. Prove, não engula. E enquanto você tenta entender o todo poderoso, o que ele faz? Ele fica lá em cima morrendo de rir de você. Ele é o intolerante, ele é o sádico. Ele é o senhorio relapso...”
Esta é a crença que suporta a ideia de pecado original, segundo a tradução Iluminista e teológica que bebeu desta fonte: Deus faz algo muito bom, mas proíbe o frágil homem de tomar tal coisa para si, estabelecendo uma lei, cuja gravidade exige a pena de morte. O homem sucumbe a esta contradição (de um lado Deus faz algo extraordinariamente bom mas proibido e de outro produz um humano incapaz de cumprir tal mandamento) e toma a coisa e com ela se satisfaz. Deus estaria sendo, realmente um sádico: coloca uma impossibilidade e exige que o humano, aquém desta impossibilidade, suplante-a. E como este humano não consegue suplantar este desafio além de suas forças e habilidades, é punido com a morte. Tal formulação deve ser questionada e abandonada, pois ela não se sustenta.
Apostamos que o Conhecimento é bom e divino. Mas também dissemos que a vida eterna é obter o conhecimento, ou melhor, a vida eterna é este movimento de obtenção de um tal conhecimento de nos conduza a Deus. Não propriamente conhecer a Deus, mas conhecer pela perspectiva divina. Não é o conhecimento da totalidade, mas o conhecimento proporcinado por uma ética da hospitalidade dialógica. Portanto, o pecado original nem é o Conhecimento e nem o movimento de obtenção do conhecimento. O pecado original, o desvio de rota, erro do alvo não é a obtenção do Conhecimento e nem mesmo o Conhecimento em si. Est originale peccatum está em outro lugar.
Retornemos a um apontamento feito acima: “o homem se tornou como um de nós...”. O que isto quer dizer? Grosso modo, quer dizer que o humano não era como os deuses e se divinizaram quando se determinaram a comer do fruto do Conhecimento do Bem e do Mal!
O Pecado Original, para não nos alongarmos, não é o Conhecimento, nem mesmo é a obtenção do conhecimento. O Pecado Original é o movimento humano de auto-divinização. Quando o homem se quer ilimitado, deseja ser o ilimitado, move-se pela vontade livre como vontade sem alteridade. Quando o homem se quer medida de todas as coisas. Quando seu olhar é o olhar da serpente, que se arrastando e se espreitando entre as coisas, toma-as violentamente, inoculando seu veneno, destrói o que deseja para o prazer único de si mesmo. Quando o homem quer ser fundamento e centro do mundo. Quando o homem se diz: eu sou imagem e semelhança de mim mesmo. Quando Narciso olha no espelho e vê neste um deus em si mesmo, e não o pó da terra de onde proveio e para onde há de retornar.
A questão, devemos ressaltar, não está no desejo, mas num certo desejo metafísico. Não é o desejar, este que nos permite exercitar a escolha e construir uma ética. Pois é o desejo de muitos confrontado pelos limites da humanidade e do mundo que nos permite o exercício do encontro da alteridade, o diálogo de caminhos solidários, a construção de modos de hospitalidade e comunhão. É o impulso humano de ser Deus, eliminando Deus, que transforma o caminhar num erro. Quando o humano quer ser senhor de sua própria história, quer ser soberano sobre o mundo. Não é o querer, o desejar, nem mesmo a vontade, mas o desejado. A confusão entre o Conhecimento e Deus. O homem, cuja vontade é vontade de ilimitação é o homem que conhece o fim de si mesmo no limite de sua morte.
O Pecado Original é o homem que olhando para o espelho vê o reflexo da imagem de Deus.



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