Quatro crianças nos extremos da cruz
- Marcos Nicolini
- Apr 7, 2023
- 5 min read
Lá estava eu lendo os jornais, aqui me encontro diante de um livro e sempre faceado pelo Evangelho nestes dias de luto, esperança e júbilo.
Dos jornais soube que alguém entrou numa pré-escola e sacrificou quatro crianças tendo por justificativa nada. Fiquei sem conseguir produzir uma narrativa, diante do horror do acontecimento. Minha emoção não me deu chance a alguma síntese. Apenas me percebi compondo uma situação de analogia trágica: assassinato trágico em um tempo niilista em seu materialismo, o qual funda um discurso de utilidade do fim do humano.

Do livro eu li: “O percurso narrativo é estreito. Por essa razão, ele é muito seletivo e não produz massa de informação. A informação é uma categoria pós-narrativa. A sua negatividade impede a proliferação e a massificação do positivo. Em oposição à memória (Gedächtnis), que aponta para a estrutura narrativa, a memória virtual (Speicher) é sem história, isto é, sem conclusão. A memória (Gedächtnis) é, hoje, desnarratizada, tornando-se um amontoado de lixo e de dados, um ‘depósito de tralhas’ (Paul Viriio), que está inteiramente entupido com todo tipo de imagens e símbolos desgastados, inteiramente desordenados e mal adquiridos. No depósito de tralhas, as coisas estão meramente uma ao lado da outra.” (Han, Byung-Chul: Favor fechar os olhos, pg. 19-20)
Das Boas-Novas não me deixei ser arrebatado por nada. Apenas fechei os olhos e disse, lembrando de orações: Pai, temos pecado contra tudo que se chama vida e que nos foi graciosamente dada pelo Senhor. Arraigados na morte, chamamos os abismos. Mas, de olhos fechados, pois não andamos por vista, voltamo-nos em fé ao que descansamos em Teu Revelar e, ainda que não sejamos dignos de sermos seus filhos, suplicamos misericórdia e reconciliação por meio desta cruz, em nome daquele que nos consola.
Diante de tudo isto, coloquei meu sangue (lembrando de Paulo que diz que somos um livro escrito com a tinta de sangue, dele e nosso) nestas palavras abaixo que represento. Sangue de dor e esperança, por meio de fé e no encontro amoroso neste dia de trevas.
São dois textos aproximados, cada um relata minha tristeza e inconformidade, minha leitura de um tempo sem tempo de insensibilidade diante do que nos afeta, de produção e reprodução deste retorno ao sem entorno, desta miséria de um mundo sem alma, sem nada além de matéria totalizante, trágica, necessária e inexpugnável. De uma produção de mundo que nos diz: os sacrifícios de hoje serão a semente de um homem novo, superior e se justifica um absoluto superior.
O mal é nada
Este vazio insensível e indiferente
às lágrimas da mãe que chora;
ao pai desfalecido que teima em segurar o brinquedo não mais divertido.
O vazio do silêncio de um quarto escurecido.
Inventamo-lo como artifício de uma marcação de fronteiras?
Assim como criamos a fogueira, o cozido, o moinho, o algoritmo...
Tal qual, produzimos este desartifício: indispositivo.
O Mal!
Será?
Esta porção da matéria que aprendeu a contar histórias.
Maleável a qualquer feitura do presente.
Hora deus;
hora besta.
Nunca si mesmo.
Tanto faz.
Vazio nadificado por suas crenças febris;
rocha largada no caminho de ninguém.
Maleabilidade e dissolução de si em nada.
Sofismático,
deixou-se enredar por falácias saborosas:
úteis e eficientes.
Tão jovem andarilho dos campos
que logo dele fez estrada,
limpando a mata, matando a vida alí agente,
cujo fim é o abismo infinito que tudo consome
sem jamais saciar-se,
até ao deserto.
Estes deuses assassinaram Deus,
e corpos de crianças sacrificadas.
Desesperança.
Quem poderá consolar?
Quem enxugará as lágrimas vertidas no solo avermelhado?
Quais Marias abraçar-se-ão?
Qual João recolherá o choro?
Aquele jovem, estas crianças:
Pontificado na cruz, apontando aos quatro cantos do universo. enquanto o assassino diz: não fui eu, foi o mundo que me fez assim.
Maria, estes são seus filhos;
Filhos e filha, eis sua mãe.
Sacrifício inútil que jamais se basta;
Eficiência maquínica que reproduz o nada.
O mal é nada algoritmado em cálculos infinitos e cruéis
Enquanto a dor inútil é metamorfoseada em esperança
Tuas lágrimas no escuro do quarto vazio são sementes do encontro com o amor acolhido
...
O tempo presente caminha para a intemporalidade. Perguntar do tempo, hora é perguntar sobre o impossível de obter resposta, exemplarmente como diria Agostinho, é saber a resposta quando não perguntado e saber-se sem conhecimento ao dar acolhida à questão; hora é dizer que o tempo não há, antes, apenas a vivência do agora, cuja memória é desconstrução narrativa e o plano se dão com ficção de mundos possíveis, impossíveis utopias.
Os deuses primordiais são fora do tempo e ao tempo geram. Cronos, pai de Zeus e filho de Ouranus (“o que paira sobre”, o céu) e Gea (terra, a mãe). Por sua vez, estes vieram do Caos, quem sabe, de Nada. Assim, o tempo adviria de Nada e com isso sua essência paira sobre tal. Caos-Nada: criação e destruição, gerar e consumir, tal qual seu neto Cronos viria a reproduzir. Linhagem de criação e destruição, de sacrifício cruento que reclama a tragédia do viver como morte. Perguntamos se os deuses que geraram o tempo não o fizeram para que este fosse sacrificado em nome da atemporalidade.
Ah, os humanos, a medida de todas as coisas. Seu desejo mimético de auto-divinização, quando olham no espelho veem o belo rosto de um deus narcisista. Como diz o profeta Isaias, olhou para Deus e desejou colocar seu trono acima do trono dEle (esta é a visão do profeta ao olhar para o humano e não para um anjo rebelde, reportar esta fala a um anjo é nos colocar acima do bem e do mal, ou seja, entronarmo-nos acima e além). Qual filósofo depois de Marx e Nietzsche não pensou num humano além da humanidade? Ou, como diriam Heidegger e Derrida: o fim do homem. Ah, os deuses, estes seres atemporais que falam uma língua abstrata e com a qual se confundem.
Ser como deus e superar a humanidade, assim, ser a medida de todas as coisas, transcender na temporalidade e a materialidade imanente (ultrapassar Zeus, Cronos, Uranus, Gaia, adentrar no ato criador, ser-não-ser Caos), sem delas escapar, mas realizar-se plenamente nelas: x $ « x Î no espaço-tempo presente, onde x = sobre-humanidade-deificada e caótica, ou seja, o espaço-tempo presente é necessário. Ser como deus, portanto, proficiente na linguagem imaterial e abstrata, que cria mundo, que rege mundo, que ordena e projeta mundo: criação, ordem e progresso.
A linguagem das linguagens, desde Pitágoras, passando por Parmênides, Platão, também Aristóteles e sua lógica, Francis Bacon e sua Nova Atlântica, Galileu, Newton e suas lei, Comte e sua linguagem positiva, Hegel e sua dialética, Marx e seu desumanismo, etc. A linguagem que é a escrita do mundo, cujas qualidades são quantificáveis, cujo evento é legalizado, que reúne as particularidades e universais. A linguagem do quantum, da narrativa feita informação, a informação fundada no dado, o dado é o nada, apenas utilidade atemporal que se empilha e duplica. O dado que alimenta o cálculo, o algoritmo, o modelo matemático que se impõe insensivelmente e indiferente à dor, ao choro, ao tempo como memória e esperança.
A linguagem espaço-temporal que diz o que é e que nada fora do que é existe, que diz ao indizível: tu és nada: o mundo é tudo o que há e do que não há deve-se calar, fazer calar o narrável inquantificado, inquantificável. Cale-se a dor. Calem-se as crianças. Cale-se Ecce Homo que ousa dizer o paradoxo: Pai, perdoa-lhes...Eli, Eli, mamá sabactani.



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