Natal de 2016
- Marcos Nicolini
- Dec 24, 2016
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O Natal, o meu pequeno Natal: a esperança da Graça amorosa em nós.
Lembro-me de uma velha música que costumava cantar, que dizia assim:

“Muito embora um só Jesus exista
Nem todos sabem vê-lo como é,
Filósofo, poeta ou comunista
Ou hippie já se disse até.”
Hoje já não mais conseguiria cantar esta música, muito menos hoje, dia de Natal.
Não consigo crer que haja um e apenas um Jesus, e menos ainda que alguém possa dizer quem é, qual sua essência e ser. Não apenas por nossas limitações intelectivas, mas pelo caráter fugidio daquele que não se deixa apreender e limitar pelas palavras e pelas coisas. E as provas são inequívocas para este fracasso: 2.000 anos de trabalho de homens e mulheres brilhantes que não obtiveram êxito nesta tarefa. Mais ainda, todos que disseram o que esta unidade significada pelo signo nominativo Jesus, todos estes cometeram atrocidades que negam o sentido, inapreensível porém, de sua pregação: o amor e a graça.
Hoje preferiria cantar algo como:
“Muito embora tanto de Jesus se diga
Ninguém pode dizê-lo sem um nó.
Antes, convite, diálogo e troca
Com experiência, sem estar só.”
Falar de Jesus, no Natal, é falar de mim e de minhas crenças entrelaçadas com minha fé. É tomar um estrato de tudo que vi, ouvi, experimentei e vivencie e traduzir pelo nome Jesus, sem que meu relato presentifique aquele que não é contível no infinito.
Lembro-me de Salomão, quando deparou-se com a possibilidade da Glória de Deus e perguntou: como o finito poderá conter o que não pode ser contido pelo infinito? O meu Natal é este absurdo.
O que não pode ser contido pelo infinito se torna presente no finito, contudo, no Natal. O Natal é quando a promessa da Criação se torna Verdade: “façamos o homem à nossa imagem e semelhança.” É perceber que a Emunah, a verdade como promessa como compromisso firme, se confunde com a Alethéia, a verdade como o verificável empiricamente. A Emunah do Gênesis se torna Alethéia dos Evangelhos.
O animal, bípede implume que faz dispositivos que produz dispositivos abrigou o Criador. Como diz o autor de Hebreus: “um corpo me criaste.” Este homem, ecce homo, este pedaço de barro vivente realizou a promessa e conteve em si o incontinente. Antes dele aguardávamos que um homem pudesse vir a ser imagem e semelhança, agora, porém, ouvimo-lo dizer: eu sou a verdade e a vida. A economia divina, que é a ação de Deus na história que prepara e realiza o cumprimento de sua promessa, se realiza no Natal e não na memória.
O escândalo do Natal, das boas novas, do evangelho não é que uma virgem deu a luz a um menino, mas que o Emanuel é presente, o Deus caminha em um corpo, do animal humano. A promessa aguardada desde o Gênesis se realizou, no Emanuel, em Jesus o Cristo. Mas esta é uma leitura que confronta aquelas tributárias ao paganismo neoplatônico, as quais dizem que a humanidade é a Imagem e Semelhança de Deus, portanto, somos pequenos deuses que se esqueceram de sua herança. Não somos pequenos deuses que se entregaram à orgia cósmica, mas animais que andam em duas patas, usam o polegar, produzem ferramentas que produzem ferramentas e comem comida cozida.
Deus amou este pequeno animalzinho solitário e mandou seu único filho para mostrar que a separação foi abolida. O Natal não é apenas o momento em que o Logos se faz carne, que o incontinente se contém, que Deus se limita a um corpo de animal, tal qual prometido no Gênesis. O Natal é o momento em que o Unigênito abre a porta para que sejamos todos primogênitos. O Natal é o acontecimento que marca a adoção do animal humano como filho de Deus: não éramos e passamos a ser, como escreve Paulo aos Efésios.
A relevância do Natal está para além desta fé que verifica em Jesus, o Cristo, a promessa cumprida. O Natal, com o Emanuel, é o acontecimento que desfaz a dicotomia que separava as esferas do sagrado e do profano, que deslegitima os poderes do céu que se impõem sobre os vulneráveis da terra, que retira das mãos dos dominadores as chaves de acesso aos recursos mais preciosos. O Natal é quando entendemos que dar a César é oferecer-lhe o direito de expropriar e violentar, é lhe pagar o tributo injusto, enquanto dar a Deus é reconhecer que o reino é justiça, paz e alegria nos reconhecimentos recíprocos que nos tornam uma unidade de diferentes.
O Natal é rasgar os véus das separações, das segregações, das dissimetrias, das violências, dos sacrifícios, das hierarquias, e permitir acesso irrestrito a todos os que têm sede e fome de justiça. O Natal é a possibilidade de nos sentarmos à mesa, trocarmos víveres e dialogarmos sem que os poderosos nos digam quais as palavras devem e podem ser ditas. No Natal aprendemos que para aqueles que pagam tributo a César, há os que governam e os que se dão ao domínio, mas para os que pagam tributo a Deus não há tais coisas, antes somos todos amigos, e entre amigos não há servidão.
Muito podemos dizer, mas o Natal é esvaziamento (kenosis) do ego como centro cósmico, enquanto o limitado transborda de amor incontinente, a fim de que nós que somos limitados e contidos, permitamo-nos romper com a tragédia de nossa animalidade e transcendermos nossos limites, desta jaula de aço que nos retém, abrindo-nos ao incontinente. O incontinente da graça amorosa que se fez carne e que quer nos levar além de nossa carnalidade e solidão. O Natal é o rompimento com as fronteiras e formas, os sacrifícios de nós mesmos. O Natal é o reconhecimento de nossa kenosis, nosso vazio, que se torna lugar de transbordo do incontível: da graça amorosa que reconhece o outro como lugar privilegiado.
O Natal é o reconhecimento de que não sendo criado à imagem e semelhança de Deus, fomos todos reconhecidos como filhos adotados em caráter de primogênitos iguais, mas como tal não contemos o incontinente. O Natal é o acontecimento que nos abre ao reconhecimento de nossa experiência de liberdade de espírito, mas nos coloca faceado pela realidade material de nosso corpo. Somos, a partir do Natal em nós, filhos adotivos em carne. Somos diante do outro que nos transcende. Somos diante daquele que não é contido por ninguém e revelado em todos.



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