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Narciso indignado

  • Marcos Nicolini
  • Sep 7, 2022
  • 5 min read

Democracia, ou democracias?


Caso estejamos falando de democracia liberal, então estaremos tratando de dissenso, de confronto de ideias, de pontos de vista, de visões de mundo, de projetos (de poderes: político, econômico, cultural e até mesmo religioso). A democracia liberal se funda em certo relativismo: no plano fundamental toda e qualquer opinião, pensamento, expressão, projeto, etc. têm valor equivalente, devendo ser julgado pelos indivíduos. como diria Tim, “vale tudo, só não vale…” destruir a democracia liberal. A democracia é o meio pelo qual

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um grupo, uma parte, um partido (como diriam os gregos, haeresis) se expressa em vista a ser um poder, isto é, um meio de estender-se no outro, fazer-se presente no outro, o outro ser um si mesmo, representar-se.


Aqui cabe um parênteses. Norberto Bobbio diz que há três formas de representação política, a saber: 1 - quando alguém se representa, apresenta sempre seus interesses, quando um indivíduo se faz representante de si mesmo. Temos assim a representação de interesses pessoais, como os Calheiros, os Sarneys, etc.; 2 - quando alguém representa interesses de grupos, de parcela da sociedade, como as bancadas (haeresis) sindicais, religiosas, culturais, econômicas, etc.; 3 - quando alguém representa os interesses nacionais, como por exemplo… Bobbio toma como referência John Lock, para quem o poder advém da sociedade e os representantes representam interesses desta sociedade, ou de grupos ou indivíduos. O que me parece é que Bobbio finge esquecer de Maquiavel e que poder é fazer-se presente no outro, é extensão de si, é, como diria Montaigne, inspirado por Aristóteles, a respeito do amigo: um eu mesmo no outro. O poder é se fazer presente, re-presentar-se no outro. Deveríamos, então dizer que há a quarta forma de representação: deixar-se representar pelo outro em si, deixar-se afetar pelo poder alheio, isto é, aquele que escolhe um “representante” está representando um poder que se estende em si.


A democracia liberal é um modelo onde os diversos poderes fazem representações. Indivíduos e grupos têm a possibilidade de estenderem a si mesmos em parcelas crescentes da população, de serem representados, de ampliarem os espelhos. A democracia liberal é um salão com múltiplos espelhos, nos quais quem olha para algum deles não se vê, mas olha para o representado. O ponto de partida da democracia liberal é a de que todos os espelhos se equivalem, devendo a escolha ser feita pelos indivíduos que olhando para os espelhos escolhe aquele que melhor apresenta uma imagem idealizada de si. É o reino da imagem e do desejo. A política é agônica, é guerra por outros meios (Foucault). A política luta por se estender a si no outro, ocupar o espaço imagético e ideológico no outro, o qual se identificará com o representado.


Temos, entretanto, outras democracias. Uma delas é aquela em que há um único espelho, o espelho da unidade, do consenso, da classe/raça “única”. É a democracia dos intelectuais, isto é, quando os intelectuais dizem representar a classe/raça X, mas que de fato trazem um projeto de poder que passa em produzir nos indivíduos uma homogeneidade universal de uma arquitetônica de classe/raça. Ou seja, é o trabalho de produção artificial de uma linha de montagem, no qual a matéria prima é a tábula rasa, a causa eficiente é o Intelectual, a causa formal são as ideologias e os mitos com suas imagens e a causa final é a dominação sem resistência. A diferença entre a democracia liberal e a de classe/raça única está no fato de que enquanto na democracia liberal se quer tomar o poder e não se logra êxito no consenso, sempre havendo dissenso, na democracia monocrática das elites, há a eliminação de dissonâncias e a imposição de um único ideal, que Se quer homogêneo e universal; rompe-se com o relativismo e os dissidentes são tratados como menos humanos. Também na democracia liberal a tomada de poder se faz pela sedução e representação - no que entendemos como tal - enquanto a democracia da homogeneização universalizável a tomada de poder pode ser também por golpe e revolução.


Esta democracia se funda sobre a metafísica, chamemos de mito da igualdade em torno de conceitos de classe, de raça, de religião, etc. Qualquer indivíduo que não se deixar representar, não se identificar com tais ideais intransponíveis será como um Homo Sacer, alguém eliminável, alguém cuja assassinato não será considerado um ato sujeito a punição.


A democracia também pode ser apenas de fachada, como por exemplo a tendência brasileira nos anos do regime militar e dos anos 2008 a 2012, quando as oposições ao regime serviam apenas como marionetes ao poder. Por vezes estas marionetes rompem os cabos que as movem e produzem uma imagética que transborda o poder. Mas, por ora, não é o caso.


Tendo definido estes termos, poderemos ver que a diferença crucial entre uma democracia multi-ideológica-mítica e uma democracia mono-ideológica-mítica não está na intensão dos agentes de poder, isto é, sua pretensa causa final, a saber: ser o poder hegemônico, único, soberano, aquele que determina quais as crenças e valores permitidos e quais as condutas morais justificadas. A diferença está em que a primeira se funda no relativismo fundamental a ser suplantado por uma das partes que se quer perene e única e a segunda que tendo logrado êxito na tomada de poder, impõe seu conceito ideal à toda sociedade: sua imagética, seus mitos e sua ideologia torna-se a única permitida pelo poder, pensar e agir apenas de e para o poder.


Com isto em mente podemos pensar na produção, distribuição e controle da informação. A democracia multi-ideológica descansava num mar de tranquilidade informacional. A produção de informação estava restrita à intelectualidade, a qual era submetida a anos de formação em escolas, universidades e centros de pós-graduação. A distribuição destas informações se dava por meio de revistas, livros, jornais, rádios e tvs. O controle da informação era feito desde a formação e ação ideológica horizontal e por meio dos aparelhos de Estado. Mudar o regime de poder exigia ou ação violenta que envolvia guilhotinas, campos de extermínio e paredões, ou, um projeto de longo prazo de tomada de controle da produção, da distribuição e dos controladores. Tudo que não passasse por esta máquina informativa era subversivo e passivo de eliminação por força.


Uma grande mudança neste regime de informação que se engendrava com o regime de poder (o cetro e a espada) se deu com as redes sociais digitais. O que podemos perceber ao longo destas últimas décadas é que, de um lado, a produção, distribuição e controle já não são exclusividade dos intelectuais e da força pública (judiciário e polícia), mas estão diluídos em miríades de pontos exegéticos (que não interpretam apenas textos, mas qualquer imagem, palavra, fato); por outro lado, um esforço hercúleo dos antigos detentores de poder em recuperar à força o monopólio perdido. As novas produções são tachadas de a-cientificas, fake News, politicamente incorretas, crime, etc., enquanto os novos produtores se proliferam em fazem proliferar novas leituras de mundo. Mais do que isto, estes não caminham pelos espaços determinados pelo poder, pelos que se querem representados, antes, abrem novas trilhas e solapam as existentes.


Os produtores, distribuidores e controladores de informações que continuam a trilhar as rotas da democracia agônica, cuja causa final é o monopólio ideológico-imagético, sistematicamente procuram produzir terror nos que agem fora do poder, transcendendo a lei que se petrifica em um mundo que já não é mais. Isto não quer dizer que a polêmica está definida em favor da democracia pluri-modal, mas que o poder que se quer hegemônico, soberano não tardará em regular e controlar as possibilidades de produção e difusão de informações pelas redes sociais digitais. Cabe a nós nos anteciparmos e inventarmos novas formas de expressão de si que causam indignação em Narciso.

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