Vinde a mim
- Marcos Nicolini
- Dec 5, 2016
- 6 min read
Certa vez ouvi de um professor de filosofia, até onde sei ele era ateu, que a tradição judeu-cristã é a única que produziu uma religião a partir dos interesses das periferias, dos

vulneráveis, dos excluídos, daqueles que não detinham o poder civil ou político. Citando o Budismo, o Taoísmo, o Xintoísmo, as religiões da Grécia antiga e de Roma, apontou para o fato singular daquela tradição. Se isto é um fato, ou se é exagero, não sei. Este seria um trabalho para os historiadores das religiões.
Tal tradição faz mover o olhar do centro do poder, para a periferia, para aqueles cujo poder é minimizado. Assim devemos ler o Êxodo judeu, desde o Egito até Canaã, e também aquele movimento chamado de igreja primitiva, seu comunismo sob a supervisão de Pedro, o apóstolo. Mas, também, o cristianismo de Paulo, o pequeno.
O movimento do centro para a periferia vulnerável implica em lembrar dos esquecidos. A tradição judeu-cristã produz a questão: “...mas tal decisão afeta de que maneira os mais vulneráveis?”. Paulo, o pequeno, apóstolo do primeiro século, dirá, em ressonância a este centro de interesse: “A natureza geme na expectativa da manifestação dos filhos de Deus.” Enquanto a antropologia greco-romana coloca o homem (isto é, aquele que tem o Logos, a Razão) como centro do cosmos e medida de todas as coisas, a antropologia cristã favorece os desfavorecidos, humanos e não-humanos.
Não queremos aqui discutir como o cristianismo das mulheres, dos escravos, das crianças, dos estrangeiros, dos párias, dos leprosos, etc., se tornou a Religião única do Ocidente, desde que os perseguidos começaram a sincretizar as cartas e os documentos comuns aquelas comunidades, com a tradição filosófica grega e o direito romano. A questão posta é sobre a origem e o original da tradição judeu-cristã, e não sua degenerescência.
O cristão perguntará sobre a vulnerabilidade do mais precário e o direito que tem o mais forte em dispor deste, a fim de satisfazer seus interesses. Quanto mais vulnerável e quanto menos reconhecimento tem um indivíduo ou grupo, mais o cristão se coloca como agente que busca desfazer esta dissimetria. O cristão não é o representante e voz destes vulneráveis, mas é o agente de reconhecimento da vulnerabilidade, promovendo o espaço da liberdade de fala para tais. O cristão questionará a legítima de uma ação daquele que tem os recursos materiais para agir sobre os que não têm o poder de reagir.
É neste sentido que a homossexualidade foi condenada por Paulo, o pequeno. O apóstolo não estava condenando a relação livre entre dois indivíduos adultos de mesmo sexo, condenação esta que os romanos faziam. Paulo, o pequeno, estava condenando a legitimidade cultural e legal que impingia uma dissimetria. Lembramos que enquanto a cultura e a lei romanas condenavam a relação entre dois cidadãos romanos de mesmo sexo, sobretudo entre dois homens, valorizavam relações sexuais entre um cidadão adulto e um escravo impúbere, isto é, entre um adulto livre e uma criança que ainda não tivesse os pelos pubianos e fosse escrava. O que os escritos paulinos vão condenar é este conjunto de dissimetrias, cidadão x escravo, adulto x criança, pois seu olhar privilegiava não o cidadão-adulto, mas o escravo-criança.
O que é questionado pelo apóstolo são os fundamentos que legitimam a cultura e a lei, e a possibilidade de universalizar o princípio latente. O que fundamentava tal relação dissimétrica entre um cidadão adulto ativo e um escravo impúbere passivo, era a liberdade, como ausência de coação, de um, e a ausência plena de liberdade (múltiplas coações: a escravidão e a impuberdade) do outro. A legitimação deste hábito encontrava fundamento em certa segregação social, que distinguia o cidadão do pária-não-cidadão. Sabemos que uma criança não era considerada cidadã, não tinha o status jurídico-político-social igualado a um cidadão romano (caso tivesse algum estatuto cidadão reconhecido), mesmo que fosse um filho legítimo (com uma matrona) de um cidadão. Uma criança escrava não contava nem mesmo com a potencia, a possiblidade futura de uma cidadania plena, estando sob a condição de um humano em situação aproximada de uma animal de carga.
Estas múltiplas segregações não encontravam simpatia da comunidade cristã do primeiro século. Para estes não havia diferença entre homem e mulher, criança e adulto, judeu, grego ou bárbaro, livre ou escravo, rico ou pobre, sábio ou ignorante, todos tinham o mesmo estatuto humano diante de Deus e da comunidade. As dissimetrias não eram legitimadas no cristianismo e os vulneráveis passavam a ter prioridade nestas comunidades. Há, com o cristianismo, um deslocamento ético do centro do poder, para a periferia e sua pluralidade.
O que se há de notar é a ausência de legitimidade, de fundamento para as segregações, as quais passam a se apoiar em regimes de lei, pela força do mais forte, a qual se faz acompanhar do que Paulo chamará de sofismas: construções pseudo-lógicas, falaciosas que visam suportar práticas violentas. A falácia das segregações está fundada na hierarquia de humanidade, isto é, considerar alguns humanos mais humanos do que outros. O conceito de genocídio nos fornece um exemplo radical, extremo, enquanto nos possibilita perceber a operação destas distinções.
O genocídio começa com uma distinção entre o nós e o eles; num segundo momento nós somos a excelência e eles são os párias, os vermes, os causadores dos males. A partir deste momento a sociedade se organiza a fim de legitimar a extirpação dos sub-humanos e a organizar a forma de extermínio. Vimos isto com Hitler, com os fascistas, e vimos isto nos países sob influência do marxismo leninista e maoísta. Não é difícil eliminar aqueles sujos, fedidos, feios e ignorantes, que promovem e difundem os males.
O nós e o eles, que segregam e justificam de maneira a legitimar uma distância (artificiosa) entre o humano e o sub-humano, encontramos em discursos aparentemente concorrentes. Há em John Locke o nós proprietários (homens de negócio, sacerdotes e homens de letras) e o eles não-proprietários; há em Karl Marx uma inversão que mantém e reforça tais segregações, por meio da qual de um lado temos a classe trabalhadora e de outro os que não são trabalhadores (burguesia em geral); há em Nietzsche o além-do-homem, os aristocratas e os outros homens; etc. Estes exemplos nos colocam diante de relações nós-eles que não reclamam, de imediato, o genocídio (a forma mais extremada e radical de segregação), mas funcionam como portais, convites a tais violências.
O que os ensinos de Jesus fazem é convidar a olhar os feios, a feiura, a dar de comer a quem tem fome, a beber ao que tem sede e a vestir o nu. O cristianismo move-se no sentido de reconhecer aqueles que estão sendo penalizados por metafísicas segregacionistas falaciosas, e prioriza os que sequer podem expor suas causas. O cristão reconhecerá o mais fraco, aquele que sob as condições prevalecentes não pode expor sua causa. Se alguém está sob uma condição tal que não pode ou não consegue (contingencialmente, temporariamente ou permanentemente) se fazer reconhecer, o cristianismo pensa em proteção e capacitação. O cristianismo, antes da filosofia e do direito, foi um movimento de inclusão e não de exclusão. Nietzsche estava correto ao afirmar que a democracia moderna é filha do cristianismo (“Para além do bem e do mal”).
É neste sentido que o cristianismo se mostra contra o aborto, por exemplo, pois prioriza o mais vulnerável, aquele que, circunstancialmente e temporariamente não tem condições de tomar a decisão sobre a continuidade de sua vida biológica. A ausência da possibilidade de expor sus causas e razões, de ver reconhecido seu direito inalienável à vida, como qualquer outro humano, não legitima a violência de quem deveria protegê-lo. O cristianismo olhará para o feto como a parte vulnerável, mais frágil e que não têm condições de dizer, “quero viver”, e é assassinado antes de poder se fazer reconhecido. Embora a autopropriedade de si não seja explicitável, é reconhecida por aqueles que têm consciência de sua autopropriedade de si e passaram pelo tempo em que estavam vulneráveis e incapacitados de fazerem-se reconhecidos.
Por outro lado, a justificativa com sentido de legitimação do aborto passa pelo estágio inicial do genocídio, isto é, em primeiro lugar segregam o corpo sadio da mãe e o aliem que a habita, segundo, transforma este objeto estranho em um mal passível de ser extirpado, eliminado, morto. O feto é transformado em corpo estranho e o corpo estranho é entendido como nocivo, alguém que é aquém-do-humano e que coloca em risco os interesses de seu hospedeiro. Os interesses individualistas daquele corpo que hospeda o objeto estranho, o câncer, impõe-se sobre a precariedade e vulnerabilidade daquele indivíduo que, temporariamente haveria de ser acolhido e protegido. O feto é autoproprietário de si que ainda não consegue fazer-se reconhecido. Dizer oposto a isto é legitimar formas de genocídio, ou, de dissimetrias que legitimam o direito do mais forte em impor-se sobre os vencidos.
Como dissemos acima, o cristianismo traz consigo aquela originalidade de ser uma religião
que partiu da periferia, dos vulneráveis e se volta sempre para estes: os feios, os disformes, os esquecidos, os assassinados e os que são vítimas de ideologias de segregação e que abrem espaços para os genocidas. O cristianismo é um “vinde a mim todos” e “ide e apresenteis as novidades” aos que estão à margem, o resto é filosofia.



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