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Fé e razão: aproximação e desprorporção

  • Marcos Nicolini
  • Jul 26, 2020
  • 5 min read

Para o autor da epístola aos Hebreus, no Novo Testamento da Bíblia, “a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam”. Podemos ressaltar nesta proto-definição as palavras fé, fundamento e esperança. Sendo o fundamento o elo que liga a fé ao esperado.

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O fundamento, por sua vez, ao ser firme, enseja a imagem do sólido, do tangível, da dureza e substancial.


Para mim, antes disto, a solidez e dureza do fundamento da fé reclama um referenciamento, sem apontamento, desde o início no Gênesis: “não havia forma na terra, apenas o vazio e o abismo, e o Espírito estava sobre este fluxo insondável” (perdoem-me os ortodoxos pela liberdade poiética).


Estas palavras do Gênesis me lembram as de Kierkegaard quando diz que a fé é um salto no escuro. Tertuliano, por sua vez fala em “credum quia absurdum”. Paulo, então, disse que a fé, ou seja, a palavra da cruz traduzida como evangelho, é loucura e escândalo. Estes homens aproximam a fé ao inapreensível, ao que escapa à razão dos filósofos, em outros termos, ao que não tem fundamento sólido, substancial, não existe como dado empírico ou lógico fundacional, como querem os gregos para quem o conhecimento é crença verdadeira fundamentada. A fé nada conhece, nos termos da filosofia e da theoria. O conhecimento da fé é de outra ordem.


O que está em questão, não apenas no Gênesis bíblico, como também em Kierkegaard, Tertuliano, Paulo é uma certa certeza que se fia não em um lugar externo a si, mas uma confiança na confiança. A fé é abissal. Em outras palavras, a fé é a firmeza de andar sobre um lugar sem fundo, sobre o abismo, no sem fundo do aberto e confiar no absurdo de saber-se intragável. A fé é o andar em um lugar sem fundo e não se deixar tragar pela ausência de fundamento externo, apreensível. A fé não espera no que é dado fora de si, no que se pode ver, mas a fé espera que seja sua confiança o bastante para, no aguardo, guardar o estar sobre o abismo. A fé é dada por este Espírito pairante.


A fé é movimento sobre o abismo, com o Espírito que paira, que se move sobre a face das águas, do abismo. As águas que são o lugar sem fundo, movediço, que engole a vida a partir de sua fluidez e falta de fundamento, fundo e solidez. A fé é mover-se, mas um mover com um Espírito que pontifica as margens do abismo. A fé é um mover-se sobre o sem fundo do abismo a fim de unir as partes que estão separadas pela morte. A fé é estar no espaço da morte a fim de unir o que foi separado pela morte. A fé é o movimento de profanação da morte, que se quer soberana. A fé é o movimento sobre o abismo a fim de unir o que até então segregou-se. Juntar partes distante a partir de um salto sobre o abismo.


Contudo, a fé não é religião, pois a religare (unir partes, erguer pontes) não é o ato de fé. A fé não ergue pontes, antes, lança-se sobre o abismo, assume o absurdo da ausência de solidez. Sobretudo, a fé não é religião, pois a religere (oferecer sacrifícios, cortar, separar a fim de agradar os deuses e satisfazer os homens) é segregar, fender, manter a separação, instituir a distância e garantir a diferença.


Assim, a fé para mim é um movimento abissal em direção a um outro, é Pedro, vendo Jesus sobre as ondas, dizer: deixe-me ir contigo. O fundamento da fé é um lançar-se no vazio do abismo da auteridade, da diferença, do ir ao encontro do outro. A esperança deste lançar-se no vazio é a mesma de Ester, quando diante da potência da morte, disse: “se perecer, pereço”.


A fé, antes de ser uma convicção de receber algo, de se apropriar de algo que nos é exterior, de obter o desejado, é um movimento de esvaziamento destas certezas e intenções e se deixar projetar no vazio do incomensurável e, se for o caso, vir a ser consumido ali. A fé é poder estar faminto ou saciado, nu ou vestido, é poder estar em quaisquer situações e não se deixar consumir por tais. Não se deixar conter ou reter pela morte potencial que está neste apelo ao exterior. A fé é uma dinâmica em que o crente está posto à morte, mas não se deixa aterrorizar por ela, pois nem a morte e nem a vida podem ser fundamento sólido para o humano. O humano de fé não vive para a morte, antes, para o acolhimento, para o encontro, para o salto no absurdo, para o escândalo e loucura. Antes de ser para a morte, é o ser para o outro. A fé é uma práxis de andar no sem fundo abissal e não se deixar paralisar ali, antes, manter o movimento de ir em direção a um outro.


Voltando ao Gênesis, retornando ao lugar onde o andar sobre o sem-fundo abissal é a referência, à qual se agrega a impotência cognoscente, o mover-se em direção a um outro lugar que também não nos oferece a possibilidade do antevisto. É aqui que a fé se contrapõe ao exercício theórico do conhecimento, conforme dito acima, como exercício da crença verdadeira fundamentada. A fé não é theoria, não é a objetivação dada a um sujeito que vê o objeto posto diante de si. A fé é a ação prática do mover-se sobre o abismo que separa e segrega, objetivando o reconhecimento e acolhimento.


O conhecimento, por sua vez, é a pretensão do olhar de deus, a divinização do humano que se coloca ali como aquele que, supostamente, pode apreender, desnudar, desvelar, explicar, controlar e impor ao objeto um interesse humano. No Gênesis, após o “pecado original”, lemos que Deus diz: “agora o homem é como um de nós, conhecedor do bem e do mal.” Não é o conhecimento que, aqui, se torna problemático, mas a pretensa divinização do humano. O projeto humano de obter o pleno e total conhecimento sobre tudo, cobrindo o abismo com a laje do saber. O sobre-humano prometeico que se quer igual a deus sem Deus.


Neste sentido que a fé difere da razão: a fé assume o abismo e a impotência, associada ao risco de morte, diante do abismo, faceado pela dependência a um outro, a fim de que o aparente não consuma a certeza invisível; a razão crê na ilimitação de sua potencialidade, na soberania de sua individualidade e no poder de suas competências, suficientes para suplantar o que o inibe. A razão é arrogante, como diria Agostinho, enquanto a fé é humilde.


O confronto entre razão e fé se dá, portanto, no campo da arrogância e humildade, no campo da distância e sujeito ao objeto e na proximidade do que se expõe a si mesmo à morte. A fé é a dimensão do esvaziamento e acolhimento do outro, no reconhecimento de nosso mútua humanidade; a razão é a dimensão da hipertrofia do ego pela autarquia e a tirania do sujeito que submete tudo como coisa apropriável. A fé é um risco absurdo dada a loucura, enquanto a razão é cálculo de poder de dominação.

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