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Estupro

  • Marcos Nicolini
  • Jun 6, 2016
  • 6 min read

Quando pensamos o estupro a partir da referência do poder e não da força, abrimos espaço para o debate para além do conceito primário da violência que o macho pode vir a causar na fêmea. Poderemos dizer que o poder é certa potência de mover o outro no sentido

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pretendido por aquele faz mover, sem o uso da força. Longe disto ser uma definição ou um conceito de poder, antes, é uma imagem, diríamos, retirada da física aristotélica e também da newtoniana, que nos serve de metáfora. O poder, a potência de mover o outro no sentido pretendido, pode ser legitimado pela paternidade, pela ciência, pela tradição, pela justiça, pela competência, mas ali onde entra a força, esta aponta para o fato que o poder já não mais tem a potência de fazer mover, esgotou sua legitimidade. O vazio de legitimidade do poder pode resultar em uso de violência, de força, como meio de garantir a permanência do movimento, que agora não mais ocorre como que numa continuidade entre pretensão e movimento. A força é utilizada ali onde há impotência, numa tentativa de manter o poder, pelo menos a estética do poder.


Uma sociedade que por séculos, milênios foi estruturada a partir da legítima do poder masculino (diríamos que na passagem do neolítico para as cidades e o poder dos reis –masculino-, sobre os produtores –femininos), percebe a emergência da violência contra a mulher quando a crença fundamental que legitimada esta estrutura é questionada e mostra sua obsolescência, sua perda de legitimidade. O poder masculino já não move a mulher a uma posição subalterna, submissa. A sociedade passa a questionar o “falopoder” que a penetrava e a organizava.


A violência contra a mulher emerge como uma tentativa brutal de manter uma ordem que já não mais se sustenta legitimamente, pela crença numa hierarquia tradicional dada pelos deuses da cidade. Quando a legítima do poder masculino estruturante apreende o solapamento a que está submetido, fazendo emergir a impotência masculina face à autenticidade do feminino, a tentativa de manter a ordem prévia, deslegitimada, pode se dar pela violência. A tentativa de manter esta ordem obsoleta e arcaica, pelo lado masculino, se dá pela força, e pelo lado feminino pela construção de um artifício de identidade, que, por vezes, aponta para além da simetria e, assim, para a troca de posições de poder. O machismo e o feminismo, então, podem vir a ser os dois lados de uma mesma moeda, que buscam fixar pela força a identidade do macho e da fêmea. Esta identificação se dá como polos de um imã, cada qual definindo-se como o polo positivo, que negativa o outro, o que implica que o machismo e o feminismo dependem um do outro na fundação narrativa.


Estamos no campo onde a força assume espaço diante da perda da potência, estruturante legítima, isto é, a hierarquia social a partir do conceito de homem e na emergência, lembrando Freud, de uma negatividade do masculino que ponta para a identidade da mulher. A deslegitimação da estrutura fundada sobre o masculino, acarreta na impotência do homem como conceito e pode redundar no uso de força como meio de preservação do que já não mais é. O estupro como força é um fenômeno que aponta para a impotência masculina, do indivíduo impotente que já não mais encontra sua própria identidade conceitual, sua legítima de homem na modernidade tardia. É a angústia, isto é, a ausência de um fundamento de um homem que vaga no vazio, mas que busca violentamente manter a estética do poder. O poder, assim, é o referente que a força procura restaurar e garantir, mas que se esvai no momento mesmo de sua eficácia. O uso da violência no momento do estupro ratifica o despoder do homem, da ilegitimidade do homem como identidade conceitual. Mas se a identidade conceitual do homem se esvai, também a da mulher.


Até aqui nos ativemos à passagem de um poder fundado na estrutura social na legítima masculina. A perda deste fundamento primário, deste conceito fundamental, aliado a um esforço pela manutenção da ordem prévia, aponta para o uso da violência. A legitimidade do poder masculino fundado na tradição e no pátrio poder torna-se obsoleto. A perda de legitimidade do poder tradicional não apenas leva ao estupro, como faz emergir respostas igualmente violentas e que evidenciam a falência do macho como conceito, isto é, a castração masculina como resposta ao estupro é uma resposta violenta que aponta para a inversão do polo de dissimetria: passando do macho à feminização da sociedade. Contudo, a castração é tão eficiente quanto a pena de morte, ou melhor, há certo paralelismo em dizer: “bandido bom é bandido morto, mutatis mutandis, tarado bom é eunuco.” A força e a violência a ela atrelada são apenas manifestações da impotência, da incapacidade de legitimar uma ordem nova, de legitimar novos arranjos, que possam dissolver o poder concentrado e fazê-lo diluir em espaços de simetria.


Podemos perceber, portanto, que o poder, tomado como referência para o estupro, torna esta questão ainda mais complexa, pois o poder não é força, como dissemos, antes, onde se apela para a força é sinal que o poder já não mais vigora. O poder é o que faz o outro se mover no sentido, ou, de acordo com as intenções daquele que move. Há aqui algo que nos faz lembrar o Motor Imóvel de Aristóteles, o deus do filósofo grego, aquele que move sem ser movido por nada, a causa primeira. O poder legítimo é aquele que produz o movimento sem o uso de força, como dissemos, pois a força é uma ação própria da ausência de poder.


O poder legítimo produz movimento como se este fosse “natural”. O que é levado a mover-se executa o movimento como se este fosse seu intento autônomo. Aqui que o poder se mostra potencialmente violento, quando, contudo, usa da força ou da coação, assim, revelando uma face sinistra e se torna mais problemático. Tomemos um exemplo que nos parece apontar para a violência deste poder de simular autonomia: Monica Lewinsky.


Todos conhecemos a história da estagiária, então com 24 anos de idade, da Casa Branca que protagonizou um escândalo sexual envolvendo o presidente dos EUA, Bill Clinton, um dos homem mais poderosos sobre a Terra. Deixando de lado os detalhes deste relacionamento, podemos nos perguntar se foi uma relação de fato consensual ou se ela foi movida pela representação imagética do símbolo do poder político global. Isto é, podemos nos perguntar se o poder de Bill Clinton moveu a estagiária ao sexo, simuladamente consensual, como se ela mesma, autonomamente, tivesse compartilhado desde movimento mútuo. Em outras palavras, perguntamo-nos se Bill Cliton não teria estuprado Monica Lewinsky a partir de um poder despido de força, mas violento. Duas coisas nos chamam a atenção: primeiro a dissimetria entre a imagem de poder do presidente dos EUA e da estagiária da Casa Branca; segundo, da dissimetria de juízo que recaiu sobre estes dois indivíduos depois das revelações: Bill Clinton continuou presidente e, depois do término de seu mandato, continuou como um homem poderoso, influente, enquanto a estagiária foi banida da sociedade estadunidense, indo morar na Inglaterra. A inversão nos sugere a violência do poder.


Para que não fiquemos apenas nesta representação, devemos nos lembrar do experimento de Stanley Milgran, quando, intrigado pelos atos de pessoas comuns sob a influência do nazismo, pesquisou a respostas de cidadãos comuns nos EUA. Sob a orientação de um cientista, pessoas comuns “aplicavam” choques mortais (os choques eram simulados, mas estes indivíduos não o sabiam) em alguém quando este errava a resposta a certas perguntas. O fato é que, estimulados pelo cientista, ou, sob a influência de um cientista, estas pessoas comuns “aplicavam” choques até que o outro viesse a falecer. O cientista tinha o poder de fazer com que pessoas comuns conduzissem um experimento que redundava na morte de alguém. Este experimento indica-nos o quanto o poder pode ser violento em fazer alguém agir contra a ética. O poder pode ser violento sem o uso da força, fazendo mover o outro como se este fosse um movimento espontâneo.


Estaríamos, assim, face a uma outra forma de perceber o estupro, não mais a partir da força, esta que pode ser percebida com ameaças (com uso ou não de armas), com aprisionamento, com uso de drogas, inúmeros artifício que impeçam a reação e o ato em si. Estaríamos diante do estupro a partir do poder, do exercício do poder, que se difere da sedução. Pois, enquanto a sedução parte da simetria e da troca de papeis constante entre quem seduz e quem é seduzido, o poder é dissimétrico, implicando e fazer mover o outro no sentido de um interesse do que faz mover. Bill Clinton e Monica Lewinsky é um exemplo desta simetria de um poder violento que implicaria em estupro.


Esta forma de violência implica na absorção do outro num mundo submetido pelo poder violento. O que está sob o poder move-se como um astro que gravita ao redor de um sol, o qual tem movimento derivado da ação do astro rei. Se a força substitui o poder, isto é, age-se com uso de força quando o poder já não mais vigora, esta outra forma de estupro se vale da manutenção de uma legítima obsoleta. A submissão ao poder violento do outro, a absorção à esfera do poder se dá face a um poder que se esvai e luta por sua permanência. A preservação de uma forma de poder, que agoniza, é o que move a despotência. Bill Cliton teria, se levarmos a sério esta leitura, estuprado Monica Lewinsky a partir de um poder não legítimo, isto é, o presidente dos EUA não tem o poder legítimo de fazer com que uma estagiária da Casa Branca se envolva sexualmente com o homem que está no cargo.

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