top of page

Em nome da Vontade Geral exterminemos os traidores da pátria

  • Marcos Nicolini
  • Aug 16, 2023
  • 8 min read

Hoje acredito (ainda que amanhã possa já não mais dar crédito a esta crença) que haja um jogo de forças entre valor e fato, isto é, entre crenças e formas de vidas, entre as referências primárias e nossa interação na sociedade. Há em mim um duplo jogo de forças, em que de um lado há o Self (o EU-forte que é agente de escolhas) e o eu-como-um-outro (o EU-fraco que é a presença do externo em mim). Nem sou determinação e nem sou dissipação, antes, jogo de forças que de um lado busco ser pela via mística e de outro me perco enquanto encontro as ferramentas e o espaço para ser. Contudo, obliterando, falseando esta relação cambiante, dinâmica e conflituosa, querem fazer crer que tudo se dá como presente e como resultante do comunitário, onde não há sujeito a não ser sujeito coletivo, isto é, um trabalho de dissipação, extermínio do EU-forte em nome de um EU-fraco sempre dado no social, no comunitário.


ree

Desde que li Roberto Espósito que entendi como a necropolítica (embora não me lembre do uso deste termo pelo referido autor) se dá como sanitarismo, como política sanitária, ainda mais após a Covid-19. Este pensador italiano apresenta a relação íntima entre imunidade e comunidade a partir da palavra latina “múnus”, a qual significa o dever obrigatório de um indivíduo (no sentido duplo da palavra, quer seja o sujeito descartiano, quer seja o sujeito rousseauniano), o encargo, a obrigação, a tarefa. A comunidade implica um dever, uma obrigatoriedade que pesa sobre cada indivíduo diluído no grupo homogêneo, ou homogeneizado, aquilo que sobrecarrega o grupo, que o perpassa e o informa; uma forma obrigatória de comportamento do coletivo sobre cada uma de suas partes. A comunidade age no sentido de dissipar o indivíduo a fim de fazer valer apenas o coletivo.


Por sua vez a imunidade traz consigo dois modos de tratar esta obrigação, este dever, este encargo a partir da imposição de uma comunidade, sob a égide comunitarista. Esta dupla impostura (as quais se imbricam e se interpenetram numa pornografia erótica e luxuriosa como nas imagens de acasalamentos de serpentes que se engruvinham) se abre e se complementa no prefixo “in” (também advindo do latim) que tanto significa movimento para dentro, como negação. Produzir imunidade (de rebanho, e isto se aplica perfeitamente à crença comunitarista e imunológica) tanto implica em exterminar elementos nocivos à comunidade, quanto dissipar a individualidade e fazer valer apenas o comunitário. O indivíduo imune é aquele que, como todos os demais, apresenta um passaporte que o identifica com todos e pode, assim, participar como qualquer outro, indistintamente, da comunidade. Enquanto aqueles que não portam as pré-condições comunitárias devem ser exterminados pois são potencialmente portadores do mau. Há uma identidade entre o in (negativo) com o não-ser, o mau radical, o qual coloca em risco a comunidade e os que de modo “voluntário” se deixaram imunizar (o in positivo).


Claro que eu, aqui, apresento uma perspectiva dura própria de um anacoreta, de alguém que prefere os desertos aos desfiles cívicos. Mas, por certo, que devemos nuançar este viés e perceber que a comunidade que trato acima é uma específica e que está em formação neste tempo que vivemos perigosamente, em que as liberdades são sinônimo de golpismo. Enfim, tendo marcado esta preferência, devo dar continuidade.


A necropolítica, cabe ressaltar, se ancora no coletivo, no comunitário, na imunização (neste jogo de interioridade e negação). Para ir mais além desta apropriação da política sanitária pela política de Estado, devo lembrar de Giorgio Agamben, a partir de sua leitura sobre a pandemia (Em que ponto estamos? A epidemia como politica; N-1 Edições, 2021). Nestes escritos o filósofo, também italiano, vai ler a pandemia, a suspensão da lei e a instauração do estado de exceção, o que me permite pensar na produção de uma comunidade por meio da imunização, isto é, da necropolítica, por ele chamada de biossegurança. O estado de exceção, isto é, a suspensão da lei em nome da segurança política, das razões de Estado, que é decretado pelo poder soberano e que, nas constituições atuais, não tem prazo de término. Ainda que este dispositivo legal tenha sua originalidade no direito romano, rompe com sua limitação temporal, pois ali o estado de exceção tinha prazo, enquanto o se passa agora, segundo Agamben, é um estado de exceção permanente. Não apenas extensivo temporalmente, como ampliado desde a Alemanha Nazista, a URSS Stalinista, a China Maoísta. A lógica sanitária permite que o estado de exceção se transforme em uma necropolítica permanente para a produção de comunidades imunes.


Até aqui caminhei pela via da necropolítica como política sanitária caricaturada em estado de exceção, que visa a produção de uma comunidade imune que extermina qualquer individualidade dissidente, quando esta coloca em risco a hegemonia do coletivo: Razão de Estado. Neste sentido a necropolítica se distingue da biossegurança, pois enquanto esta se atém ao uso do dispositivo do estado de exceção para fins da manutenção do poder, aquela tem a ver com o uso do estado de exceção que inclui a imunização com vistas à comunidade, isto é, um Estado que não tolera a exceção, fazendo da exceção a norma. Imuniza-se contra o indivíduo diferenciado em vista de uma comunidade imune homogênea e dócil. Não me parece ser sem propósito o fato que todo e qualquer jogo de futebol (um momento de lazer e festa) comece com 1 minuto de silêncio em nome de algum morto: primeiramente os mortos do Chapecoense, depois as vítimas da Covid-19 e hoje em nome de Pelé. Precisamos pensar na unidade sem marcas ou fendas que esta necropolítica visa.


Como dissemos desde o início, a necropolítica visa a eliminação dos EUs-fortes e a produção de uma comunidade de um EU-fraco, cuja presença forte se atém ao elemento aglutinador que tanto imuniza (elimina os EUs-fortes) quanto imuniza (cria anticorpos para o EU-fraco se identificar como comunidade). O sujeito da necropolítica é o comunitário, o coletivo que extirpando a individualidade visa a paz dos cemitérios. O coletivo é, desta forma, o sujeito que se identifica como poder soberano. O poder soberano, como lembra Agamben as palavras de Carl Schmitt, é aquele que pode decretar estado de exceção. O estado de exceção é um estado, uma situação em que a lei está suspensa em nome da Razão de Estado. A necropolítica é o movimento que visa a produção de comunidade (não apenas com-múnus, com também, com-um, uma unidade indiferenciada, indiferenciável) sob a égide do estado de exceção permanente. Neste a lei vale até o momento em que o poder soberano anteveja o risco de dissolução da unidade produzida por contágio. Diante de tal risco, suspende-se a lei e aplica-se a imunização legítima.


A ideia de um sujeito coletivo reporta-se à formulação da Vontade Geral preconizada por Rousseau, assim como o fato da extirpação dos traidores da pátria (aqueles que se colocam fora e contra a Vontade Geral) também encontra nele sua elaboração teórica. Na Revolução Francesa de 1789 realizou-se na guilhotina, com Stalin se realizou no assassinato de todos que o poder soberano identificou arbitrariamente como burgueses e com Hitler efetivou-se sobre aqueles que foram chamados de judeus. Em todos estes casos a presença de uma Vontade Geral (o sujeito coletivo) e a necropolítica se deu em sincronicidade.


Chegamos assim à possibilidade da leitura de Faith of the Faithless (fé dos sem fé) de Simon Critchley (Ed. Verso, 2012) do qual destaco as primeiras palavras do capítulo 3, Mystical Anarchism, Carl Schmitt:The political, ditatorship and the importance of original sin. Devo dizer, antes de passar às palavras do autor, que sua tese é schmittiana, a qual vamos remontar abaixo, à que se soma a tese de que os que se dizem sem fé de fato creem em algo (a fé dos sem fé). Não haveria ausência de fé, mas fés diferentes. Assim, passo a apresentar as referidas palavras de Critchley:


“Carl Schmitt declara em seu Teologia Política que ‘todos os conceitos significantes na moderna teoria do estado são conceitos teológicos secularizados.’ [...] O Deus onipotente da cristandade medieval tornou-se o monarca onipotente – como por exemplo o Deus Mortal do Leviatã de Hobbes [...] a vontade geral foi um termo teológico da arte que se referia à vontade de Deus. Em 1762, no Contrato Social, a vontade geral foi transformada na vontade do povo e a questão da soberania havia transladado da divina para a popular. Isto explica porquê Rousseau acreditava que a vontade geral, tal qual a vontade divina, não poderia errar. Certamente que a plenitude da vontade do povo é sempre virtuosa, e quem se opunha a ela deveria ser legitimamente eliminado como mal. A politização de conceitos teológicos nos leva inelutavelmente a atentar para a purificação da virtude através da violência: a sequência política que começou com o jacobinismo francês em 1792, até o terrível excesso de violência política do século XX o qual pode ser sumarizado pelos nomes de Lenin, Stalin e Hitler [...]” (pgs 103-104)


A vontade geral é o prenúncio de uma necropolítica que tem na política sanitária seus slogans e métodos (conquanto também se funda em uma teologia medieval), fornecendo uma linguagem apropriada para o enfrentamento da questão da traição à pátria, legitimando o extermínio do diferente, do antagonista, daquele que coloca em causa uma unidade artificial da comunidade de imunes. A religião (soberania, vontade geral e salvação por meio da unidade original), o sanitarismo (a imunidade e a comunidade) e a política como necropolítica (o estado de exceção e a legitimação do uso da violência para extirpação do diferente: o indivíduo que não se deixou coletivizar), articulam-se plenamente.


É assim que os revolucionários franceses a partir de 1789 passam a identificar seus opositores como traidores da pátria e como tais, passíveis de assassinato legítimo. Mais uma vez posso retomar a um conceito trabalhado por Agamben, por meio do qual abre à compreenção da legitimação do assassinato político realizado a partir da premissa da suspensão da lei. Agamben analisa o que em Roma se chamava de homo sacer, ou seja, aquele indivíduo cuja vida nua e crua podia ser eliminada sem que com isso seu assassino viesse a sofrer sanções legais. Um indivíduo que podia ser morto por qualquer um. No caso da necropolítica este assassinato não se faz a partir desta vida nua e crua, mas em nome da imunização de rebanho. Não se trata de uma possibilidade, mas um dever de assassinar, uma legítima defesa da pátria que está sendo traída por este vírus. Legítima Defesa da Pátria, em nome dela que se tem a obrigação, o dever, o múnus do assassinato.


A produção, a construção desta comunidade imunizada passa, acentuadamente, por um processo de ressignificação dos valores, das crenças partilhadas tendo como sentido a emergência de um estilo de vida que seja homogêneo e transpassado pelo estado de exceção como estado de normalidade. A emergência do mal como a presença do EU-forte, o atestado da inimizade, a certificação da legítima da extirpação deste mal como um benefício à comunidade e a efetivação de ações de eliminação por meio da violência destas diferenças é um processo lento e inexorável diante da ausência da coragem de ser.


É assim que, a partir desta tradição que remonta à Roma e a Roussenau, se faz uma revolução em nome da Vontade Geral, isto é, do sujeito coletivo que nada mais é do que uma abstração intelectual, o desenho arquitetado por uma intelligentsia que engendra um homem que apenas existe em ficções partilhadas por esquizofrênicos e psicopatas. Fechados em seus laboratórios mentais e compartilhando ecos narcisistas de cartas repetidas por todos e por cada um, modelam tipos ideais, sobre-humanos, sujeitos coletivos, classes vanguardistas. Tanto mais se perdem em discursos sem quaisquer referências em possibilidades factuais e verídicas, verificáveis, mais formulam discursos desprovidos de veracidade e empiricidade, conquanto sejam coerentes com teses, hipóteses, partículas ad hoc, ideologias e crenças sacadas sem assunção.


A Vontade Geral preconizada pela intelligentisia se funda no medo de morte violenta que se faz perpassar toda a sociedade: medo de ser eliminado, medo de ser contagiado, medo de ser confundido, medo de não-mais-ser.

Comments


Obrigado por Subscrever

  • Facebook
  • Twitter
  • YouTube
  • Pinterest
  • Tumblr Social Icon
  • Instagram
bottom of page