Da morte, o pecado: Origenes e Pelágio contra Agostinhoָ
- Marcos Nicolini
- Jul 16, 2023
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Os três primeiros capítulos do livro de Gênesis sempre me intrigou. Principalmente a partir do Gênesis 1: 26 até o 3:24. Basicamente penso nestas palavras continuamente. O embate entre a materialidade e a poesia, entre a descrição e a alegoria, entre pré-anunciação de Cristo e o advento do humano, entre o unigênito do Pai e os filhos por adoção das encíclicas. Intriga-me a identificação do Gênesis 1: 26 com o Gênesis 2:7. Inquieta-me a teoria arrogante que diz que eu (o indivíduo e a espécie humana) sou a imagem e semelhança de Deus. Desconcerta-me a hipótese de que o pecado original é a

desobediência e deste adveio a morte. Adoece-me a verificação do edifício de violência que se ergueu a partir destas crenças e que, a despeito de serem religiosos ou seculares/laicos, ordenam um mundo indiferentemente impiedoso.
Já não é a primeira vez, mas a enésima vez que me deparo com instigantes proposições de Giorgio Agamben e que me permitem confrontar, ainda que não decidir, teses tradicionais advindas da religião cristã ocidental que fundam e suportam o edifício político e econômico. Doutra vez, por exemplo, percebi o movimento léxico-semântico em torno da palavra grega “oikonomia”, isto é, a ordem doméstica, ou a ordem da casa, segundo Agamben relata em “O Reino e a Glória”. Paulo, o Apóstolo, usa a palavra “oikonomia” (ao escrever uma carta à Igreja em Éfeso) para significar o conjunto de ações de Deus na história a fim de culminar, fazer cumprir sua Emunah (suas palavras-promessas), com o advento do Cristo-Jesus como aquele que salva a humanidade. No entanto a patrística (os líderes e escritores cristãos após o século II) passa a adotar a “oikonomia” de modo aproximado ao que fez Aristóteles, para descrever um conjunto de instituições que representam uma ordem superior (hierarquia: princípios sagrados) e que trazem ao mundo a salvação de Deus.
Então me deparo com outro livro de Giorgio Agamben, O reino e o jardim (N-1 Edições, 2022) por meio do qual traz algumas leituras sobre o Paraíso. A tese do livro é que há outras possibilidades de ler o Gênesis 2, que, adotando proposições não hegemônicas que se tornaram ortodoxias, permitem outro mundo possível. A tese correlata a esta é que o Ocidente secular e laico repousa sobre crenças religiosas não confessas. As instituições políticas e judiciárias têm fundamento, não confessos, nas elaborações teológicas feitas nos primeiros séculos do cristianismo ocidental. Por exemplo, quando dizemos que o pecado original, a desobediência, trouxe a morte, podemos perceber o eco desta proposição na estrutura crime-castigo. Mas se invertermos esta causalidade e dissermos que a morte produziu o pecado, será que não nos depararemos com uma arquitetura ainda mais problemática?
Não cabe a este momento dizê-lo. Aqui me presto apenas a apresentar esta diferença entre a teologia de Agostinho (a desobediência-pecado trouxe como consequência a morte) e a teologia de Orígenes e Pelágio que nos permitem dizer que a inclinação da vontade para a morte produz a servidão ao pecado que submerge-nos a mais morte: como alguém que decidindo atravessar um campo com areia movediça, cai na armadilha e ao tentar se desvencilhar da morte, debatendo-se ali, afunda-se ainda mais, precipitando sua morte. Em suma, é o exercício da vontade livre que fez o humano escolher a morte e desta se tronou servo do pecado. Vamos seguir com parcimônia.
Tendo sido agraciado com a vontade livre, mesmo que em estado de inocência, ou seria melhor dizer, em face ao estado de inocência infantil e dotado de uma vontade livre, conquanto naïve, o homem habitava um jardim de delícias, no entanto fechado e murado (paraíso: pairi que significa “em torno” e daeza cujo significado é “muro”, ambas palavras advindas do iraniano de milênios atrás).
Ali e naquela inocência, ingenuidade infantil, restritiva e limitado, o homem tomou consciência de sua morte, de ser mortal, quando lhe foi dito: o fruto de sua morte brotará de sua escolha e ao comê-lo experienciará a morte que mata, o fruto que germinará em inclinação inexorável para a morte.
Tomando consciência de ser um ser mortal, aquele que foi solo (adamá) fértil, Adão (adám), tornar-se-á deserto e como tal haveria de empreender esforço para suprir, não mais sua vontade livre, a qual de agora seria serva da morte, mas satisfazer seus desejos desejantes, enquanto rasteja a terra em busca de si na identidade, não com o homem livre que haveria de ser, mas na identidade falsa entre o Humano e o Húmus, entre o corpo e a matéria, entre morte que produz morte por meio de desejos desejantes.
A inclinação da vontade livre para a morte produziu o pecado, ou seja, sua inclinação subserviente à materialidade insaciável como desejo. Assim, podemos entender não mais o pecado original, mas a escolha livre original pela morte que frutifica morte desejante. Não seria a desobediência (o pecado) que levaria à morte, mas a escolha pela morte que desviaria o caminho humano lançando-o num deserto mortal do desejo.
Assim, o mortal que deseja desejos, em seu ímpeto de cavar covas para cobrir defuntos, sacraliza o mundo (ao que chamamos de tragédia) e diviniza o homem (que é o ímpeto prometeico). Este coveiro de si mesmo no afã e esforço de Sísifo apenas renova, em cada escolha servil à morte o fruto de sua escolha renovada e mantida.



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