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Babel e Pentecostes

  • Marcos Nicolini
  • Jul 3, 2020
  • 4 min read

Ao ler os sermões de Meistre Eckhart, místico medieval (século XIV) alemão, percebi com alguma clareza o sentido que Platão permitiu que a filosofia impregnasse o cristianismo.

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Deus era, para homens como Eckhart, a unidade que esta por traz da multiplicidade. Dito em forma matemática (metáfora esta que não se encontra diretamente neste místico alemão), o que todos os números têm em comum (1, 2, 3, o Pi, o Neper, o i, etc) é que eles são únicos (só existe 1 número, por exemplo, Pi e não há nenhum outro número que não seja o Pi que possa ocupar o lugar do Pi), ele é idêntico a si mesmo (Pi=Pi) e é imutável, constante (o Pi sempre será Pi). Deus é esta comunidade que se traduz como unidade, identidade e constância. Cada ente na multiplicidade dos entes traz em seu ser este atributo do Ser: unicidade, identidade, eternidade.


Então veio a produção da morte de Deus, a propagação de um discurso pós-metafísico. Nietzsche em A Gaia Ciência dirá: agora não há mais acima e abaixo, para frente e para trás, giramos no vácuo (ele não diz exatamente isto, mas algo parecido, não importa). Nietzsche é o grande teórico do niilismo e niilismo é isto: a unidade, a identidade e a eternidade se dissolvem em fragmentação, mutabilidade e temporalidade, assim como em relativismo.


É como na torre de Babel (aqui me atrevo a ler Jacques Derrida em Torres de Babel): os violentos construtores erguiam um edifício que pretendia igualar os homens a Deus. Todos falavam a mesma língua e tinham o mesmo modo de falar, usavam tijolos na construção e os uniam com um mesmo material pegajoso. Babel, a Casa de deus, era o projeto metafísico que pretendia não apenas reunir todos sob a mesma chibata, como colocar os ideólogos (discurso correto sobre as ideias verdadeiras) no mesmo nível que Deus.


Preciso avançar um pouco e lembrar o profeta Isaias (leio um pouco do Velho Testamento). Em algum momento o profeta se volta para o Prícipe da Babilônia e lhe diz: quem colocou em você esta vontade de colocar seu trono acima do trono de Deus? Você vai cair de cara no chão e rastejar. (os biblistas que me perdoem, mas minha lembrança do texto vai até aqui).


Babilônia é a Babel que procurou restar. Babel teve seu trabalho parado não porque houve uma revolução, não porque houve enfrentamento, uma guerra civil, lutas. Babel foi paralisada porque os trabalhadores começaram a usar palavras fragmentárias, cuja semântica e gramática já não mais se determinavam pelo poder dos construtores. A obra parou pois os trabalhadores voltaram-se a um afazer determinado não pelo Filósofo-Rei, mas para um fazer que era o de cada um. Neste sentido é que a dispersão foi divina. Deus viu o que os Políticos, os Militares, os Ricos e os Intelectuais, unidos a partir de uma mesma intensão, um mesmo projeto, faziam e multiplicou as línguas dos homens e mulheres comuns. Aquilo que o poder dizia já não mais reverberava na obra dos que trabalhavam sob o domínio. A obra simplesmente foi abandonada.


Deus disse: chega de metafísica! E a vida passou a florescer e as pessoas passaram a buscar projetos que lhes dava sentido. Abandonaram o projeto que se lhes impunha o poder legitimado e justificado nas Academias.


No Pentecostes (cristão) há um segundo movimento divino que atrapalha o uso útil da língua e desconstrói a produção do edifício do poder. Em Pentecostes se questiona os alicerces do poder: não mais a Lei, não mais a sabedoria dos livros, não mais a espada e a escravidão da dívida. Deus torna a visitar o homem e vê que ali o projeto Babélico fora retomado sob o nome de Roma: a cidade eterna, a unidade que perpassaria à multiplicidade, a cidade única. O projeto da Polis travestida de Lei. Deus olha a Babel do século I e causa um reboliço.


Novamente a violência divina (como propõe Walter Benjamin), sem armas, sem guerras, sem imposições: apenas um convite, do tipo: eis que estou à porta e bato. Escândalo e loucura. Na economia divina, na marca divina deixada na temporalidade há um movimento de oposição e resistência à violência política. Deus opera contra os filhos de Caim, de Ninrode, contra Babel, Babilônia, Nínive, Grécia, Roma, Leviatã, etc. Mas a violência divina contra estas cidades entregues à noite, ao abandono, às baratas, escorpiões, ratos e covis-19m não é a mesma violência que Ninrode faz contra seus inimigos.


No Pentecostes cristão a língua que se fala, o cosmopolitismo que agrega, une, mas não identifica as pessoas, é o ágape. Recolham as espadas e as transformem em grelhas para que o alimento seja abundante a todos. Dos escudos façam-se telhados para que sob estes habitem os sem teto. O discurso do Pentecostes cristão não é o mesmo da Babilônia, que oprime, deisindentifica, rompe o indivíduo em si mesmo e o transforma em uma unidade produtiva que beneficia os arquitetos (arche-tekton: a técnica fundamental). Como dirá Paulo, a respeito disto: nossa luta não é contra espada, mas contra os archés, o Impérium, contra os violentos em conluio: política, economia, academia espúria e as armas. Nossa luta é contra o princípio que moveu a fala de Francis Bacon: saber é poder, isto é, o uso do conhecimento para dominar.


Pentecostes é a liberdade de se saber sem dívida, de se saber produtor de linguagens, de se saber arquiteto de sua vida, de conhecedor de seus caminhos, de abertura para o outro, de reconhecimento da múltipla dependência que temos não apenas dos demais humanos, como do cosmos. Pentecostes é o florescimento da vida a partir do amor.

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