Assustado…? Entre a pornografia e o apocalipse
- Marcos Nicolini
- Jan 24, 2022
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Conta a narrativa bíblica que Noé fez da uva o suco e, então, se embriagou com a fermentação deste. Não nos caberia aqui perguntar o motivo definitivo desta suposta intemperança, deste excesso e encontrar, por esta via, a conclusão inequívoca. Mas

podemos conjecturar, supor, dizer precariamente. Talvez sua embriaguez foi motivada pelo degustar de uma experiência inusitada; talvez para exceder mimeticamente, depois dos excessos divinos (acompanhados de arrependimento, digo, de Deus); talvez por que após a reclusão prolongada e monótona há de vir a festa; talvez o humano é norma e anormalidade, razão e desrazão; talvez tantos outros talvez… O fato é que a narrativa inclui este momento inquestionável de ir além da ordem, d racional.
Em contínuo se lê que sua embriaguez se faz acompanhada de seu desnudamento. Noé, a tipologia do homem (aqui falo deste homem, mas poderia estar falando da humanidade, poderia ser uma mulher, ou o que seja), da experiência vivida inusitadamente, o homem excessivo, o homem festivo, normal/anormal sem ser dual que se desnuda. O humano imantado, com seus polos e linhas de força. O inusitado vivido intensamente, o excessivo, o festivo, o anormal, a experiência da arracionalidade seria, quem sabe?, a experiência do desnudar de um humano sempre ocultado sob o véu, sob as roupas, sob o tecido, o texto objetivo, positivo, normativo. O êxtase de Noé e sua nudez nos assustam em sua quase, pseudo-pornografia. Como pode o humano estar nu?
Aqui me lembro de Jacques Derrida nu diante de seu gato nu enquanto pergunta: o gato está nu e não o saberia, mas eu estando nu, posso estar de fato nu? (O animal que logo sou). A nudez enquanto a experiência do excessivo, para quem lhe escapa a própria nudez. Não seria, aqui, Tereza D’Ávila chamada a nos dizer algo? Não nos deixemos avançar além do texto, certo desnudamento por excesso de linhas de fuga e, puxando linha a linha desfazermos do tecido que nos cobre.
Noé nu sem sentido, sem consciência, pela embriaguez. Embriagado pela experiência excessiva. Embriagado pela mimética a Deus excessivo, extra-ordinário. Nisto seu filho Cão/Cã olha para a nudez de seu pai. Cão percebendo, apreendendo o excesso do pai, excede o pai, mirando-lhe a arracionalidade, a embriaguez, a anormalidade. Se nós nos permitirmos uma hermenêutica excessiva, avant lá letre, poderíamos sucumbir à ideia de que Cão excede o pai em certo sentido de ruptura, excedendo como racionalidade, lucidez e normatividade excessiva. Enquanto o pai tendo vivido a experiência extrema se embriaga na inconsciência da nudez impossível, Cão lúcido excede na falácia do desnudamento que se faz como pornográfico.
Entenderemos o pornográfico (posto ser uma hermenêutica excessiva) como a nudez objetivante, tomar o outro como objeto e tal objeto ser desnudado, e deste desnudamento apreender, controlar, normatizar e prescrever condutas e procedimentos visando o benefício do sujeito pornográfico. O pornográfico como rito-gráfico, simulação de gozo, a estética de um desnudamento falacioso que oculta a violência da objetivação do outro. O pornográfico como a objetivação do observado com vistas ao desejo de um sujeito violento, digamos assim. O pornográfico não é a nudez, mas a violência do assujeitamento do outro tomado como objeto para o prazer de si, digo, do sujeito. O pornográfico é a mentira do desnudamento que encobre a violência extrema do humano feito objeto.
A relação entre Noé e Cão está na ordem do incomensurável. Em Noé nos deparamos com a experiência do excesso, do festivo, do místico, do anárquico, caso possamos pensar estas categorias sem as limitarmos à nossa objetivação, isto é, sem esgotarmos as possibilidades deste ir além dos limites da razão. Em Cão estaríamos diante do pornográfico, da normatividade, do controle, da dominação, no patricídio, do assassinato da experiência que escapa ao racional, tendo em vista a violência do controle e prescrição dos atos e comportamentos. O pornográfico como o olhar objetivante que toma a coisa em sua apreensibilidade, controlabilidade e prescritibilidade do comportamento futuro, para satisfação do sujeito que olha.
Certamente que colocado nestes termos, ou seja, de um Noé exclusivamente excessivo, seríamos catapultado ao mundo da apologia do excesso excessivo, das rupturas niilistas de toda ordem e esqueceríamos do Noé construtor de barcos, que ouviu a ordem de Deus e não hesitou em dizer sim, a despeito da aparente alucinação de quem ouve vozes falando no mais íntimo do íntimo e chama o falante de Deus. Noé é um humano de umbral, vivenciando extremos extremamente: de um lado o homem que não se deixa titubear faceando um tempo sombrio e uma ação por dever, sem a evidência prévia do ocorrer, do acontecimento escatológico; de outro um humano da embriaguez do excessivo, do festivo, da nudez inconsciente. Noé não é a porta, contudo, mas uma existência no portal da existência da fé (mais um escorregão desta hermenêutica do absurdo).
É a porta e não o estar constante e exclusiva no excesso ou na norma, que nos conduz a um assustar com Noé. Mas, retornemos à nudez inconsciente e à normatividade.
A nudez assustaria? Não seria a própria nudez o excesso e como tal repudiada, como se ouvíssemos: “que o homem não veja a nudez do homem”. A norma não seria aquela: “você não pode ver diretamente, mas de soslaio”. O que dizer, então, do pescador que vendo seu amigo sobre o barco, desnuda-se por completo e se lança intrepidamente em direção a ele? Que ato intempestivo, desviante, herético deste neo-Noé (homem das águas e da nudez excessiva) que, num excesso de embriaguez (não mais a embriaguez do mosto, mas da experiência limítrofe com a vida), perde a consciência de sua condição de humano nu e diz “amigo, eu te amo.” De Jesus não se ouve reprimenda, de Pedro não se diz ter vergonha, pois é o narrador quem não transmuta o excesso em pornografia.
Estamos, agora, diante de um narrador que nos conta, a terceira pessoa do narrador é a primeira pessoa da narração obliterada: eu, João, vi Pedro desnudar-se incontinente e lançar-se às águas, sem dar-se conta de seu ato de desnudamento excessivo. Não há pornografia alguma, apenas filigrafia, amizade narrada, excesso e transparência.
Se Jacques Derrida não pode afirmar sua nudez diante do gato nu, pois sempre está vestido pelo tecido de textos que impõem o encobertamento de um excesso em ordem, Pedro também não pode dizer nada sobre sua nudez, pois não se viu nu, mas em excesso, em êxtase, em experiência limítrofe. Se Derrida tenta narrar sua nudez encontrando uma aporia, ou melhor, esgotando-se no paradoxo, Pedro tem em seu amigo um narrador de seu acontecimento indiscernível e indiscritível em primeira pessoa. João olhou sem a volúpia pornográfica de Cão. Apenas ante-viu o humano no portal entre o normativo e o experiencial.
Podemos, assim, permanecer neste lugar de um olhar que hora é pornográfico, hora é experiencial. Hora olha a nudez em um ímpeto violento que toma a coisa como recurso para a imposição de certo ordenamento, pelo controle, pela prescrição normativa de ideais, pela força de lei. Hora olha a nudez como a experiência do humano de portal, no qual agem as potências da razão e da fé, da empiria e do indizível, do tempo e do eterno, do medo e daesperança, do ordenamento e do amor.
Que lugar haveríamos de ir no qual olharíamos o pornográfico e o portal? Quem nos levaria até este lugar último? O fim do último é o véu rasgado que desnuda o desnudamento e nos mostra a assustadora vergonha pornográfica e o olhar do portal? Assim como Derrida nos permitiu ver os limites da nudez imposta pelo texto impossível de finalidade, enquanto João nos levou até à experiência de um abandono do tecido que acoberta diante da experiência face ao indizível, não poderiam eles nos levar até o escathos do pornográfico e o portal infinito?
Deixemos Derrida nos mostrar o lugar da placa que apontaria para a porta, melhor, desnudaria a violência. Apocalipsis, diz o Franco-argelino, é a palavra que se usava para descrever o ato de desnudamento de uma prostituta. Revelar é retirar o véu que oculta o pornográfico, que desnuda a violência do violento: da Grande Babilônia, filha de Cão. Apocalipsis seria, por esta via, o desnudamento da pornografia, do desnudamento que toma o outro como objeto apreensível, controlável, submetido à norma, força de lei que prescreve comportamentos. O humano escatológico estaria diante de um desnudamento da violência que trazendo a promessa do gozo, jamais a realiza, postergando o gozo e atualizando a violência. Apocalipsis é este modo de dizer verdade, quando se realiza domínio. Apocalipsis é a pornografia em estado puro, é olhar a nudez da Grande Meretriz e não se deitar em sua cama, não se enlambuzar de seus amores pornográficos. A revelação desnuda a pornografia sem se deixar tornar-se pornográfica.
A revelação a João seria, outrossim, o desvelamento da violência e da sedução com que a Grande Meretriz enreda os humanos. A Babilônia, a Grande Meretriz com seus amantes, em cuja cama desnuda-se apenas para torná-los seus, para tecê-los como fios deste tecido fúnebre que cobre suas chagas mortais. João olha o apocalipsis e recebe a revelação da violência da nudez sedutora e falaciosa com que se realiza a dominação. Isto é, a promessa de desnudamento jamais realiza a possibilidade de ver que sob o véu da promessa há a violência do controle e da prescrição, da nudez jamais realizada. A Babilônia, filha de Cão, objetiva a nudez apenas como método imposição de uma necessidade trágica: submeter o outro a objetividade que expropria dele a vitalidade suprindo apenas às paixões efêmeras do prazer dos gozos imediatos e insuprimiveis.
O que me assusta, então? Simplesmente a nudez apocalíptica de quem se deitou com a filha de Cão, embora jura amores a outra. Com seus lábios dizem “vinde a mim todos…”, mas em seus corações gritam “olho por olho…”. Também me assusta a propensão a me deixar seduzir pela violência do olhar de Cão, esperando olhar para o outro segundo meus ideais e não como Sem e Jafé que, sabendo de si, não ousaram olhar e nem ser olhado, cobrindo a nudez do pai diante do olhar do Cão. O que me assusta é sair da porta e ir a uma loja comprar microscópios.



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