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Dias de luto: Escrever para não morrer

  • Marcos Nicolini
  • Jan 9, 2023
  • 17 min read

Há uma diferença sutil que concerne ao método e não ao objetivo, entre a extrema direita, confundida com o fascismo e hitlerismo e a extrema esquerda confundida com o comunismo e stalinismo-maoismo. E, por extensão, o neoliberalismo e o progressismo imbricado com gramscismo, os quais não poderiam ser tomados como político se não fosse o compartilhamento do objetivo e algum diferimento de método. Antes, compartilham o mesmo fundamento epistemológico. Lembra-nos a Medusa, de cuja cabeça saem pequenos monstros em forma de serpentes peçonhentas.


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Estes monstros ainda estão entre nós, agora como fantasmas que possuem (no sentido religioso do termo, o que implica em dizer possessão de espíritos malignos cuja libertação exige exorcismos) corpos atuais, mas que não anulam tais atualidades, posto necessitarem de ocultamento e adoção de linguagens apropriadas para um tempo sempre presente. Os fantasmas ocupam corpos mortificados como se ainda fossem vivos, fazendo-os expressar falas e comportamentos fundados nesta malignidade primária e final.


Podemos dizer que desejam tais demônios é assumir a posição de Satanás, entendendo-o hoje de modo secularizado, um corpo atual em decomposição. Portanto, ao atualizar o discurso o significante e o signo Satanás são eclipsados, mantendo o significado de um anti-ser, cuja ação tem como finalidade impedir o ser de realizar-se desde o passado em vista da esperança. O que é esta coisa a que chamavam no passado de Satanás? Esta é uma coisa que tende a nada, isto é, deseja se identificar a nada, mas que jamais logra êxito em seu esforço absoluto. É o anti-princípio maligno que se alimenta de sacrifícios, ou seja, de morte religiosamente sacramentada. A sua incapacidade de êxito está em que a vida resiste como santidade. A morte aqui entendida como o não-lugar, nada (quando posso retiro o artigo de nada, uma vez que o artigo substantiva e torna nada em uma coisa, e as coisas são o que estão entre o ser e nada). Satanás é um não-ser que tende a nada sem nunca estabelecer identidade. Aí está seu ressentimento, pois nem a nada logra se identificar, requerendo um empurrãozinho de Deus para tanto. A vida Mais adiante falaremos da vida como Zoe-Bios), por sua vez, ainda insiste em ser-ai temporalizado, mesmo diante de nada em seu movimento violento (como sagrado), cujo fim é desertificar o que antes se dava como vida (Zoe-Bios). Não-ser nada é o paradoxo sobre o qual esta coisa-nada se funda, pois realizar-se e extinguir-se: o suicídio, a morte radical.


Estas coisas acima citadas – fascismo, hitlerismo, comunismo, stalinismo, maoismo, neoliberalismo, gramscismo, progressismo, etc. – são como demônios que lutam para ocupar o lugar de Satanás, antes, identificarem-se com este não-ser-virtual, esta coisa que tende a nada: coisa-nada. Cada uma destas coisas historicamente realizadas funda-se nesta coisa-nada que tem como objetivo a morte. Mas, cada uma delas deseja o desejo de cada uma das outras, isto é, a hegemonia sobre o morticínio, por meio da identificação com a coisa-nada, que chamamos aqui de Satanás e que funda o método mais produtivo e eficaz de tornar a vida em nada.


O inferno é este campo de guerra no qual os demônios digladiam entre si a fim de demonstrar a maior produtividade e eficácia em tornar-se idênticos à coisa-nada. E a produtividade traduz, aqui, o conceito de velocidade de avanço (que passa pela percepção da vida a ser tragada pela morte e a ação de desertificação) e a eficácia o conceito de percepção da totalidade do mundo e a transformação do mundo em nada. Cada um destes demônios se diferencia pelo método (produtividade e eficácia), ou seja, pelas armas de produção de morte, mantendo a identidade no desejo compartilhado em tornar-se um com a coisa-nada que tende infinitamente a nada, isto é, compartilhando o objetivo.


Uma vez que nos aproximamos do objetivo comum que há entre os habitantes do inferno - onde os demônios travam uma guerra sagrada tendo em vista a hegemonia do desejo comungado, a saber, a identificação com a coisa-nada que deseja a identidade com nada, isto é, o desejo dos demônios é representação por imitação de segunda ordem do desejo sagrado de Satanás, a identidade-nada – então podemos nos aproximar dos métodos, os quais pouco ou nada se diferenciam entre eles. A literatura e o cinema nos oferecem instrumentos analíticos riquíssimos.


Antes, porém, devemos olhar a morte como o olhar à Medusa (já citada anteriormente): midiatizado, de modo indireto, impreciso, opaco como se fizéssemos um espelho de cobre, este que significa a técnica como linguagem. Como a górgona da mitologia grega, a morte tem, como se fossem cabelos, serpentes peçonhentas que saem de sua cabeça. O olhar direto à Medusa petrifica o sujeito. A morte é plural e as técnicas, diferente do mito proteico imbricado neste de Perseu, não oferecem alternativas para dela escapar, antes, apenas aprofunda seus efeitos deletérios. A morte parece ter um procedimento técnico simples: confronta a vida (a vida nua, a vida essencial, “noúmeno”, Zoe) e busca reduzi-la à dimensão limitante da vida material (aquém de Bios). A vida que deveria ser aquela dada pela relação Zoe e Bios (fenômeno dado pela relação entre seres nos quais flue Zoe) é submetida ao modelo material que obliterando Zoe reduz esta a uma heurística cujo viés é exclusivamente um Bios modelado; este decréscimo, esta degeneração da relação Zoe-Bios em uma imanência modelar limitante da quantificação de Bios, petrifica a vida em sua materialidade vazia, insensível, brutal.


Como diria Eagleton (em seu livro Sobre o Mal) citando Milan Kundera: “A morte tem duas faces. Uma é o não ser; a outra é o ser material horripilante que é o cadáver.” O que nos lembra Max Weber (na Ética Protestante e o espírito do Capitalismo) quando nos diz que “neste último estágio de desenvolvimento cultural, seus integrantes poderão de fato, ser chamados de ‘especialistas’ sem espírito, sensualistas sem coração, nulidades que imaginam...”.


A petrificação da vida como modelo-heurístico-Bios exclusivo que expurga a possibilidade de relação Zoe-Bios, apresenta-se como se fosse a manutenção desta relação, agora substituída pela relação de corpos vazios e nulos entre si como estátuas num cemitério que olham para o vazio de nada enquanto cultuam cadáveres. Assim, entendemos modelo-heurístico-Bios exclusivamente como as relações entre humanos em sociedade e de humanos com o mundo a partir de leis-modelos-necessários: entre corpos de coisas que exercem influência material entre si. A imanência radical e limitadora do modelo-heurística-Bios é o olhar direto de e para Medusa, que transforma o transcendente-imanente em corpos rígidos e petrificados na imanência trágica e única, ainda que tenham aparência de vida, oferecida, sobretudo, pela razão materialista técnico-científica, as quais longe de restituir aos humanos a Zoe-Bios, os reduz a estátuas petrificadas. Em termos técnicos, de agora a morte identifica-se com o momento em que um dispositivo deixa de ser útil. O momento da morte é o do abandono do dispositivo em seu uso produtivo e eficiente. Assim choramos o corpo morto como aquele que não mais está ativo na rede de dispositivos úteis. Não mais choramos a morte enquanto ruptura da relação Zoe-Bios, pois somos insensíveis e indiferentes à vida. A morte como o sacrifício exigido pelo sagrado, o corte que prometendo vida separa e segrega as partes, entregando aos deuses sanguinários: Zoe (o ser), o qual se eclipsa sob as sombras do mal e aos humanos a modelo-heurístico-Bios que se petrifica em corpos vazios. Neste sentido os demônios são as pequenas serpentes que se apressam em dar o bote mortal que rasga a relação vital e lança os corpos no vazio da materialidade imanente e faz esquecer o ser como mito obliterado pela razão material.


A morte tem várias faces, ou, muitas peçonhas, contudo é sobre os corpos que se manifesta, esvaziando-os de seu noúmeno e utilizando-os em sua coisidade. Suas ações distintas guardam métodos concorrentes e que concorrem para um objetivo comum: nada. Lembremo-nos de alguns.


As três mortes de Primo Levi (tomamos como referência dois de seus livros: Isto é um homem?; Os afogados e os sobreviventes). Este homem esteve preso em um dos campos de extermínio hitlerista ao fim da segunda guerra. Procurou escrever os horrores ali sofridos como forma de levantar um memorial ao que estava prestes a ser esquecido por ser absurdamente irreal. Um momento importante de seus relatos se dá quando relembra a transformação de homens em coisas, em corpos vazios aos quais chama de muselmann: corpos mortos que ainda tinham aparência de vida, mas que não mais se relacionavam com o entorno, adentrando no vazio da existência nula, não apenas a Zoe lhes era inascessível, como a Bios fora quase que plenamente sacrificada em nome da razão de seu espaço-tempo.


O segundo momento de seus relatos se dá quando a guerra acabara, retorna à sua cidade para próximo de seus amigos e parentes, aqueles que não sofreram esta experiência extrema diretamente. Entre os seus (Bios) procurava lembrar e contar tal fato, mas aquelas pessoas para quem dirigia primariamente aqueles relatos, hora não criam no absurdo, hora não queriam ouvir do mal na presença da paz. A experiência de quase-morte lhes parecia absurda, incrível, e o olhar deve dela se desviar. De fato, a experiência de quase-morte de Primo Levi havia transposto as fronteiras e muros de arames farpados dos campos de extermínio e penetrado na sociedade supostamente livre que de agora se dedicava ao gozo da liberdade em seus corpos, sem recorrer às prisões e constrições. Quem vive a morte não pode lhe encarar de frente, a morte como o não-ser extremo. A experiência de quase-morte de Primo Levi não foi apenas aquela circunscrita no espaço de um campo de extermínio, pelo tempo que ali esteve, mas foi dar-se conta que a sociedade estava mortificada para a vida, isto é, tornaram-se insensíveis e indiferentes ao outro em sua agonia e angústia. Não apenas os egressos dos campos de extermínio, mas àqueles que estariam às margens do gozo da paz presente. Aqueles que deveriam se solidarizar com seu sofrimento voltavam-se ao esquecimento do passado e uma entrega radical ao dia de hoje e a festejar o presente.


A indiferença, a insensibilidade diante do mal. Uma indiferença para com a dor tal qual aquela de um meteoro quando cai em uma área plena de vida, trazendo morte física sem lhe escapar uma lágrima; ou um tsunami que varre sem aviso uma vila matando todos e destruindo tudo, indistintamente e sem suspiros ou remorsos; de uma leoa que sufoca um gnu, enquanto outros do bando o dilaceram. A morte de um muselmann é similar à morte como indiferença e insensibilidade diante da dor e do sofrimento alheio. Assim como o muselmann é indiferente ao mundo no qual está e se entrega a um fechamento sobre si mesmo, um estar no corpo, também o mal banal recorta o tempo como presente e o mundo como fechamento em sua materialidade. Assim podemos entender a banalidade do mal que nos fala Hannah Arendt (Eichmann em Jerusalém). Não apenas foram mortos os prisioneiros dos campos de extermínio, como também aqueles que desejando exterminar os próprios campos de extermínio (sua facticidade e memória), tornaram-se insensíveis e indiferentes à dor e ao sofrimento alheio, fechando-se em corpos vazios de tempo e de esperança.


Enfim, em um terceiro momento da leitura deparamo-nos com o ato da indiferença e insensibilidade para com o próprio Primo Levi, o qual foi posto sub judice e sentenciado à morte pelo silêncio e tentativa de esquecimento do inesquecível. Não apenas o horror intracampo e a morte do muselmann, como a morte dos “libertos” que agora se tornam insensíveis, e a extensão desta mortandade, deste movimento nadificante que sombreia Primo Levi, o qual deveria ser insensível e indiferente a si mesmo, renegado a um corpo sem memória, sem dor, sem sofrimento. Contudo, Primo Levi lançou mão da vida (Zoe) ao escrever (Bios) suas memórias, aquelas que estavam em vias de esquecimento violento, olhando com esperança. A vida brotou no deserto: escrever para não morrer, escrever com paixão para viver.


Um filme fascinante que apresenta a questão da morte e do esquecimento como o exilio para o nada é o Voltando para casa de Zhang Yimou, o qual se passa na China continental nos anos da Revolução Cultural imposta pela tirania de Mao Tse Tung. Muito embora este regime espúrio tenha assassinado milhões de pessoas, podendo apenas ser comparado aos regimes de Hitler e Stalin, o filme não trata deste tipo de nadificação, assim como os textos de Primo Levi não tratam das câmaras de gás. A história se dá em torno da relação de um casal, Lu Yanshi e Feng Wanyu, que em 1970 vivenciou a Revolução Cultural sob as garras pesadas e monstruosas de Mao. Lu fora enviado a um campo de “reeducação”, enquanto sua esposa Feng permaneceu em casa aguardando seu retorno. Passados os anos em cárcere e ao fim da dita Revolução é liberado podendo retornar à sua casa. Entretanto, chegando ali, sua esposa não o reconhece, enquanto permanece no aguardo da volta do marido. O drama se dá em torno da tentativa daquele homem em ser reconhecido pela mulher, o que nunca ocorre.


Podemos aqui sugerir duas linhas de interpretação. A primeira pouco há que possamos articular no âmbito de nossa presente análise, qual seja: poderíamos interpretar pela via religiosa da esperança messiânica e seu retorno sem o reconhecimento dos que o deveriam reconhecer. O messias retorna, mas seu retorno é infrutífero, pois não é reconhecido pelos que dizem aguardá-lo. Abandonemos por hora esta perspectiva. A segunda linha interpretativa exige que olhemos para os dois personagens: o homem e a esposa, assim como o tempo que marca uma diferença entre o antes e o depois do mútuo exílio. O hiato brutal da Revolução Cultural marca diferentemente o homem e a mulher. A Revolução Cultural é o experimento social que toma referência na maleabilidade do sujeito e seu assujeitamento pelo e para o poder. É um gramscismo avant la lettre, que demonstra sua força distópica e brutalidade.


Enquanto o homem vivenciou a violência da “reeducação” no interior de um campo de prisioneiros, mantendo sua vitalidade na esperança do reconhecimento e da atualização de sua vida com sua esposa (Zoe-Bios); a mulher viveu fora do campo esperando o retorno do passado, marcando pelo corpo de seu marido e sua referência a esta imagem representativa de quem haveria de retornar. Aqui haveria um diálogo com o texto não ficcional de Primo Levi diante de seus parentes no vivenciamento do hitlerismo, isto é, ele ansiava por reestabelecer as relações vitais após viver a experiência de quase-morte nos campos de extermínio, enquanto seus parentes buscavam retornar a um tempo de idílico e hedonista que fora rompido pela guerra. Lu Yanshi exposto ao experimento de reeducação procura manter a memória de um amor por sua esposa, o qual é suficiente para prevalecer sobre a quase-morte imposta pelo sistema reeducativo que o expõe à nadificação por meio da violência extrema do modelo maioista. Enquanto isto Feng Wanyu aguarda o corpo do marido que foi e não o homem que retornou. Ele olha para a esperança e ela olha para o passado congelado pela memória: as coisas que já não são. A suposta liberdade da mulher, ou, os efeitos da reeducação fora dos campos do poder, foram impostos com maior eficácia sobre a mulher que se torna indiferente e insensível ao marido que retorna. Sua quase-amnésia é uma submersão no nada que sonega à experiência vital que se dá no conjunto da experiência temporal como transformação na passagem do passado para a esperança. A “amnésia” é uma quase morte da atualização da memória diante da esperança da vida, é uma forma de indiferença e insensibilidade diante do movimento da vida que se dá como amor e esperança.


Tanto no caso dos textos de Primo Levi, quanto no filme de Zhang Yimou a ênfase que desejamos dar está na eficiência e produtividade de um método de nadificação que se encontra não naqueles que estão diretamente expostos ao mal, mas naqueles que sofrem o mal de maneira banal, cotidiana, sem a ação direta da violência extrema. No caso de Primo Levi, seus parentes se tornaram insensíveis e indiferentes ao mal por um apelo e apego à paz e tranquilidade, da normalidade, do retorno à vida ao que ela deveria ser, em sua banalidade brutal. Há uma ruptura com os anos de guerra e conflito, de perigo e ansiedade, ao preço de uma entrega incondicional a uma materialidade insensível e indiferente. Enquanto em Zhang Yimou a insensibilidade e indiferença se dá na negação do tempo e do ser. Os parentes de Primo Levi se apegam ao tempo presente, sempre agora, cuja novidade e progressividade circular anula o tempo passado; Feng Wanyu se apega ao passado, identificando passado e presente sem o fluxo temporal. Ambos negam à vida sua vitalidade, mudanças e esperanças, estando presos num fechamento sobre o corpo que é aqui, sempre agora. Ambos, Primo Levi e Lu Yanshi não se entregam à morte. Antes, pela via da esperança, embora tenham se aproximado à quase-morte e ao extermínio dos campos de concentração de corpos, apegam à vida , isto é, amam a vida que está além do modelo-heurístico Bios tão somente, estendendo-se à Zoe-Bios.


Uma abordagem da nadificação da existência na forma de documentário, encontramos em Gulag, a história dos campos de concentração soviéticos. Aqui nos importa menos a experiência de quase-morte dos prisioneiros e prisioneiras, o que em si já é um tema relevante, e mais nos importa a justificativa do poder para aprisionar estes indivíduos. A justificativa é a técnica de linguagem (produto da inteligentcia) que permite que não olhemos diretamente a Medusa, enquanto nos deixamos ser inoculados com as peçonhas de seus cabelos. Este documentário nos apresenta duas justificativas para a nadificação destes indivíduos em campos soviéticos, as quais podem ser aplicáveis a outras experiências, extremas ou banais.


A primeira justificativa, mais direta, é a de que estes indivíduos eram considerados sub-humanos e a sub-humanidade de tais era decorrente da irracionalidade. Ser racional é compreender uma verdade inexorável como lei e a tal lei (da necessidade) se submeter livremente. Ser livre é dizer sim à Razão. Uma vez que tais indivíduos não se submetiam passivamente ao regime de uniformização do modelo-heurístico-Bios como universalização das formas de relacionamento entre corpos úteis permissíveis, estes eram considerados como loucos, isto é, indivíduos carentes de razão. Os loucos, isto é, indivíduos que não reconhecem a lei da necessidade como verdade, são sub-humanos. Os loucos devem ser afastados da sociedade, pois em nada são úteis, antes, colocam em questão a ordem, introduzindo a desordem do individualismo enlouquecido. Esta é a primeira justificativa: a Razão é a Verdade cuja à lei inexorável devemos nos submeter livremente, somente os loucos não se entregam docilmente, portanto, são sub-humanos.


A segunda justificativa é de ordem econômica. Tais loucos e loucas, contudo, têm corpos, ainda que não tenham razão, e são úteis à produção, tem valor de uso: como um burro de carga, por exemplo. Os campos soviéticos se proliferaram como lugar de trabalho àqueles e àquelas que estavam reduzidos a corpos sem razão. Mais uma vez vemos que tais homens e mulheres, considerados loucos (ou seja, cuja vida era não apenas reduzida ao modelo do poder, à utilidade produtiva, como estavam submetidos a um regime de degeneração aquém da vida), são reduzidos a um corpo útil, segundo o modelo técnico-econômico de utilidade. Neste documentário ainda ficamos sabendo que a desgraça de uma mulher era ter nascido com um bonito corpo, pois que além do trabalho útil, ainda serviam a dar prazer a seus algozes.


Aqui entendemos como a não-vida, o ser-nada e seus demônios buscam não penas degradar toda a vida à materialidade dos corpos vazios, como extirpar a esperança reduzindo a experiência vital a um carpe-diem e indo aquém, tomando como louco todo aquele que ousa enfrentar a lei da necessidade que é universalizada a partir das ciências físicas (desde Newton, por exemplo) e penetra as relações sociais como princípio de submissão voluntário, produzindo a uniformidade de corpos dóceis e úteis. Devemos notar, como enfrentamento da indiferença imposta pelo mal, como o mal odeia o ser, a escolha.


Ainda sob a sombra do soviético, lembremos do julgamento de Bukharin, como nos conta Slavoj Zizek em “Alguém disse totalitarismo?”. Bukharin toma a palavra no Comitê Central em 23/02/1937 e diz que pensa em suicídio, mais ainda, que pensa em morrer. Esta sua fala causa profunda indignação nos ouvintes, dentre eles Stalin, que o interpelam sobre a ousadia de tomar uma decisão por si mesmo. Um dos camaradas, Voroshilov diz: “Seu Canalha! Cale a boca! Isso é golpe baixo! Como ousa falar desse jeito?”. Isto é, como ousa decidir por si? Decidir por si coloca em questão não apenas a sua individualidade, como o poder nadificante do todo sobre a vida: a vida (Zoe-Bios) está obliterada pela técnica de poder que retém os corpos em sua utilidade. Como dirá Zizek, “Em tal universo, é claro, não há espaço nem sequer para o mais formal e vazio direito de subjetividade...”. Mais adiante do texto de Zizek estaremos defronte às palavras de Bukharin: “Toda tragédia de minha situação consiste nisto, em que Piatakov e outros como ele envenenaram tanta a atmosfera, e a atmosfera cresceu de tal modo que ninguém acredita nos sentimentos humanos – nem nas emoções, nem nos impulsos do coração, nem nas lágrimas. (Risos.) Muitas manifestações do sentimento humano, que antes representavam uma forma de prova – e não havia nada de vergonhoso nisto -, hoje perderam sua validade e força.” O texto nos permite dizer que Bukharin foi desautorizado a qualquer forma de suicídio, isto é, de produzir até mesmo a morte em si por si, sendo sentenciado à morte por conspirar contra o mal. O mal é um sim ao Grande Outro e um não a si, isto é, a instância Assim podemos fazer eco às palavras de Zizek: “Para o Comitê Central, a maior forma de traição é a própria adesão ao mínimo de autonomia pessoal [...] de acordo com as críticas dos membros do Comitê Central a Bakhurin, ele não era suficientemente rude, conservava traços da fraqueza humana, tinha ‘coração mole’.” O erro crucial dele foi manter-se humano quando o mal exige a submissão integral e inquestionável a seu movimento nadificante. Quem é você para ter uma decisão humana?


Mas nos restam ainda duas outras leituras ficcionais. A primeira é de 1984, de George Orwell. O texto nos fala de um indivíduo que questiona o Grande Irmão e passa a ter vontade. Uma ousadia! O jogo de rato e gato se direciona para um fim: o fim do indivíduo e a superabundância de um Todo insensível e indiferente. Melhor dizendo, um Todo que sabe que o mundo não é insensível à dor, mas que tal sensibilidade é tal que é capaz de, voltando-se contra si, fazer todo e qualquer um confessar sua negação: negar-se a si mesmo e confessar-se nada. O mal toma esta força que é fraca, enquanto a fraqueza é a fortaleza e a faz operar contra si mesma até que o indivíduo sucumba e imploda restando, não sua fraqueza e fortaleza, mas o vazio de nada. O fim do mal é a total e inquestionável insensibilidade e indiferença do indivíduo para consigo mesmo e para com os outros, como o é uma gota de espuma movida por uma onde de um tsunami que consome como morte a vida costeira. O mal é esta violência injustificada que se sustenta no vazio absoluto de nada.


O progresso do mal é este progressismo que opera contra tudo e todos que fundam sua existência em algo outro que não o vazio. O progressista é alguém que olha o que está estabelecido e lança sua crítica até que possamos ver que “o rei está nu”. Ele é um pessimista ressentido que não enxergando no seu mundo nada mais do que a insensatez, a indiferença à dor, a insensibilidade diante do sofrimento, quer universalizar a insensatez, a indiferença e a insensibilidade. Levantando a bandeira do “o hoje melhor do que o ontem e o amanhã é melhor do que o hoje”, de fato quer dizer: abaixo tudo o que é sólido, isto é, a solidez é nada! Um ódio profundo a tudo que é vida, em nome da morte (Nietzsche fez o diagnóstico correto ao moribundo errado). Toda cultura progressista é cultura da morte, do vazio, do nada: parte do ódio à vida e finaliza na materialidade da morte, por meio de uma modelagem distópica do aquém-Bios, como dissemos acima.


Enquanto a vida é uma profunda e irredutível paixão, um amor pelo ser existente, ao ponto de perceber, buscar compreender a razão do mal nele instalado, e a partir desta percepção e compreensão (mesmo que incompleta e frágil), agir de modo apaixonado para suplantar o mal pelo bem: mais vida. No entanto a morte é um profundo e irredutível ódio, um desprezo pela vida, ao ponto de agir violentamente, sem razão e sem finalidade de tal modo a degenerar tudo e todos a esta uniformidade universalizada do nada. Este movimento de ódio pelo ser pode, por uma via tomar as feições do progressismo, da mente Progressista (ou seja, pessimista, tendo em vista que os olhos do Progressistas tudo é mal e é sobre o mal que o nada age), mas também da mente neoliberal.


O Progressista é um pessimista, adotando uma tese anti-Rousseauista que herda uma antropologia pseudo-agostiniana: o homem é mal e as instituições o salvarão, fingindo esquecer, no entanto, que, segundo dizem, as instituições são produções históricas da humanidade. Devemos dizer, as instituições de Estado, aquelas que, segundo a real politik, advém de Maquiavel, Hobbes, Hegel, Marx, Lenin, Mao. Claro, separam o humano, o indivíduo, e a humanidade, este ente que surge pelas e para as instituições, este constructo conservador. O Neoliberal é um otimista adotando uma tese semi-Rousseauista que herda uma antropologia pseudo-pelagiana: o homem é bom e a ciência o redimirá. Como nos fala George Simmel, as utopias são senhas para a barbárie e o mal radical, posto que em nome de um mundo melhor toda e qualquer violência contra as oposições são legítimas e justificadas. Para o neoliberal tanto o homem quanto as ciências são bons e sobre este tripé – bondade, ciência e homem – se edifica um utopia.


Se há algo indiferente e insensível à vida é a Ciência. A Ciência, cujo fundamento é o materialismo moderno (como nos diz Hugh Lancey em Valores e atividade científica), não porta em si nenhum valor (ético, moral), enquanto é um conjunto de métodos que visa determinar uma descrição tal de fenômenos que permitam compreendê-los em linguagem humana, isto é, por meio de cálculos e quantificações, e projetar estados futuros dos corpos expostos a este método. Tudo se passa em torno de controle e projeção de estados futuros das relações entre corpos. Se há um conjunto de saberes, de tecnologias, de modos de aplicar a ciência à sociedade, às relações entre corpos materiais, este é o que chamamos de economia neoliberal. O Liberalismo e o fantasma atual do Neoliberalismo definem o humano como um agente econômico: homo economicus. Este agente econômico é aquele que faz trocas (estabelece relações de trocas, isto é, age no mercado) a fim de maximizar a utilidade, o bem. Bem aqui não é justiça e nem bem-estar, mas algo que tenha valor econômico. Este agente econômico não é altruísta, mas egoísta, o que quer dizer que é insensível e indiferente a tudo que se passa fora de si.


O mal: o monismo materialista niilista que suporta todos estes modelos.

(obs.: estava terminando este “escrever para não morrer” quando soube dos atos esquisitos em Brasília em 08/01/2023. Prefiro terminar aqui, pois sei que o que está acontecendo entres nós é a tese central de meu pensamento: o poder político e econômico não são fundados em outra coisa senão o nada e para que não olhemos para o rei, pois ele está nu, fazem uso do único modo de realizar-se: a violência. A política é a guerra por outros meios, já disse Foucault, e o Brasil tem atestado esta tese. Dias de luto, em que a única espada que temos é a liberdade de pensar e escrever, para não morrer)

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